Aquando do lançamento de "Tranquility Base Hotel + Casino" (2018), um coro de vozes se levantou mais alto do que as outras. Mas o que é isto? Onde estão as guitarras? Porque é que as bandas não podem soar exatamente ao que soavam quando eu comecei a gostar delas? Esse álbum, que significou um ponto de viragem na carreira dos Arctic Monkeys, mostrou um som mais adulto, uma tentativa de Alex Turner e comparsas em mostrar que os britânicos não eram apenas a banda de 'Brianstorm', 'I Bet You Look Good On The Dancefloor', '505' e todas essas canções que fizeram as delícias da juventude indie do início do milénio. 'There'd Better Be A Mirrorball', single lançado esta semana, ainda os deprimiu mais – e as comparações com estrelas da composição pop como Burt Bacharach não ajudaram.
Quer dizer: não ajudaram se se olhar para os Arctic Monkeys, única e exclusivamente, como essa banda de guitarras. Se formos (demasiado) conservadores na forma como consumimos música e uma banda em particular, é normal que as nossas reações sejam negativas assim que essa mesma banda decide alterar a sua sonoridade. Se o valorizarmos, ou melhor, esperarmos (e se formos melómanos strictu sensu, isto é, não nos contentarmos em escutar apenas este ou aquele género), então aquilo que os Arctic Monkeys fizeram em "Tranquility Base Hotel + Casino", com Alex Turner a entrar na sua fase Gainsbourg (o fato, a classe, a música polida) é bem capaz de ser dos melhores trabalhos da sua carreira.
Escrevemos assim, em 2018, quando o grupo atuou no NOS Alive: «Não são já os putos com sangue na guelra à procura de safar mais uma conquista sexual pela calada da noite, mas sim os poetas românticos que mais depressa cantam preliminares que penetração». Teremos de voltar ligeiramente atrás nesse raciocínio para falar deste seu regresso a Portugal, desta feita pelas mãos do MEO Kalorama. Agora que os Arctic Monkeys estão em fase de finalização de um novo álbum (do alinhamento fez parte a ainda inédita 'I Ain't Quite Where I Think I Am'), o que têm vindo a apresentar nos palcos é uma mistura dessas suas duas facetas, a adolescente e a mais adulta. O alinhamento em modo best of a isso obrigou, e não houve quem não voltasse atrás no tempo quando 'Brianstorm' (quinze anos, já?) se fez ouvir logo à segunda cantiga. Aquela bateria nunca poderia ter sido tocada por um homem já mais aburguesado, e sim por alguém com ganas de mudar o mundo, quer este queira ou não.
Se o MEO Kalorama registou a maior enchente da sua edição de estreia com os Arctic Monkeys (aliás, este dia esgotou), foi porque nessas canções mais roqueiras ainda existe uma centelha daquilo que foi e poderia ainda ser, se não existissem contas por pagar ou filhos por cuidar. Porque a realidade fala sempre mais alto, 'Snap Out Of It', em toada jazzy, trouxe o conforto da sensualidade e não da sexualidade, algo que 'Teddy Picker' procurou inverter. Que tenha havido gente a fazer videochamadas durante a sua performance é prova de que é nas canções mais antigas que muitos ainda encontram a sua verdade pessoal.
'Potion Approaching', com Alex Turner de óculos escuros e ar gingão, colocou em palco uma certa vibe 'Nightclubbing', com todo o respeito a Iggy Pop; o crooner Turner voltaria a dar um ar de sua graça no final de 'Cornerstone', quando até o «obrigado, Lisboa!» entoou de forma melódica. Escutamo-lo nesta sua ambição (ser crooner é mais respeitável que ser estrela rock) e pensamos no estranho paradoxo dos Arctic Monkeys de hoje em dia: são uma banda de estádio, mas o seu vocalista procura o íntimo. Num concerto que poderia ter beneficiado de um som mais bojudo e de um ambiente diferente (uma sala fechada, grosso modo), bem como de um público que pagasse bilhete para apreciar o espetáculo e não para conversar, os Arctic Monkeys mostraram-se sobretudo num limbo, tateando entre o frémito e a pausa, mostrando as duas facetas sonoras que os compõem sem se terem conseguido decidir por uma ou outra. Não é uma crítica: ter dúvidas é bom e ajuda-nos a crescer. A ainda dolorosa '505' (but I crumble completely when you cry...) antecedeu um encore onde 'Arabella' contou com um segundo e meio de 'War Pigs', dos Black Sabbath, e 'R U Mine?' mandou toda a gente para casa com os corações não ao alto, não em baixo, mas ao meio, que é onde se encontra a virtude. Foi bom, mas já só se quer é ouvir o que aí virá.
Ainda o sol descia e já uma bateria se fazia ouvir, ao longe. Eram os Blossoms, que arrancaram com o objetivo de fazer a ponte entre o rock n' roll de Legendary Tigerman e a britishness dos Arctic Monkeys. A sua pop gingona não salva vidas, e tampouco é original; é uma sonoridade que ocupa um outro ponto no tempo, apresentando-se-nos desmesuradamente retro para que possamos dali retirar grandes coisas.
Como os Blossoms já ouvimos dezenas de bandas, algumas melhores, outras bem piores, e o mesmo parece ter sentido o público que já só aguardava pelos Arctic Monkeys, que só aqueceu verdadeiramente com palmas a pedido. Do seu concerto guarda-se uma versão de 'Don't You Want Me', dos Human League, e o final com 'Charlemagne', de facto uma belíssima canção.
De canções é feita Jessie Ware, e muitas delas boas. A cantora britânica fez esperar os fãs no Palco Colina, ao fim de tarde; houve primeiro que dar as boas-vindas a um dançarino vestido de negro, enquanto uma voz no PA nos recordava que black is love. Depressa se lhe juntam outros três, e a própria Jessie Ware, todos entrando no ritmo do velhinho disco e arriscando uma espécie de dança do ventre contida, conferindo um grau de espetáculo visual a 'Spotlight'.
As coreografias eram simples, mas resultavam extraordinariamente bem – a julgar, pelo menos, pelas reações do público presente sempre que um braço se contorcia, sempre que um corpo se baixava, sempre que uma anca meneava. Com trocas de indumentária pelo meio, Ware trouxe temas como 'Wildest Moments', a delícia house de 'Free Yourself', uma remistura algo dispensável de 'Running' (para quê estragar o que é perfeito?) e a estética sadomasoquista de 'What's Your Pleasure', fazendo do cinto um chicote. O final apoteótico com 'Save a Kiss' deixou agradados os que não perderam pitada dos 45 minutos de concerto.
Nos Moloko, Róisín Murphy era uma verdadeira força da natureza: basta ver um dos muitos vídeos do já mítico concerto no neerlandês Pinkpop. Fora dos Moloko, Róisín Murphy continua a ser uma força da natureza. Pontapeia o ar, arrisca um curioso jogo de pernas, conquista-nos logo ao primeiro verso de 'Something More'. E depois há aquela pose em palco, os olhares sensuais que vai deitando ao público, o casaco no ombro enquanto desfila. Não é possível não nos apaixonarmos por esta mulher, vista a roupa que vestir (e vestiu várias ao longo da atuação), cante o que cantar (até o 'Malhão, Malhão' seria capaz de tornar sexy). Felizmente para os apaixonados, cantou não só originais como alguns temas da banda com que conquistou o mundo entre 1994 e 2004. 'The Time Is Now', com os presentes a explodirem de alegria aos primeiros acordes da guitarra, foi uma delas.
A música é repetitiva, simplista, eletrónica quase minimal à qual vai acrescentando languidez gutural. Faz-nos dançar como se não existisse um amanhã, apresenta-se sempre com a dose certa de groove. Róisín Murphy aprendeu muito bem como se faz uma canção house e um espetáculo em torno dessa mesma canção, ou canções: 'Forever More', também dos Moloko, fê-la envergar uma juba leonina, sob um manto de visuais psicadélicos que foram filmados por telemóveis até mais não (e que contou com um mini-twerk). O momento noise a finalizar fez a ponte para 'Overpowered', até entrar em cena essa excelsa canção – e esta, sim, salva vidas – que dá pelo nome de 'Sing It Back', mesmo que em modo mais sonolento. Perto do final ainda se escutaria 'Murphy's Law' para nos deixar atolados em certezas; onde Róisín estiver, é ela quem faz as leis.
As queixas têm sido constantes: o Palco Colina não tem apresentado uma qualidade de som digna de um festival tão grande como o é o MEO Kalorama (ou qualquer outro festival grande, valha a verdade). Bonobo, que se apresentou com banda, sofreu disso mesmo. Iniciando com uma eletrónica suave e cinematográfica, o músico britânico procurou fazer-se ouvir por cima da batida, que ocupava demasiado o espaço. Tanto ele, como a vocalista que o acompanhou, que há de ter cantado alguns versos extremamente bonitos – se se tivesse entendido uma palavra que fosse. Arruinado o ambiente, foi o lado mais dançável de Bonobo a salvar um pouco as honras da casa, mas não de forma a fixar-nos no local. Da próxima será melhor. Mantenhamos a fé.
O MEO Kalorama termina este sábado com concertos dos Ornatos Violeta, Nick Cave & The Bad Seeds, Peaches e Disclosure, entre outros.
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