Quando Bob Dylan ganhou o prémio Nobel da Literatura no final do ano passado, “por ter criado novas formas de expressão poéticas no quadro da grande tradição da música americana”, a Academia Sueca responsável pelo galardão surpreendeu o mundo com uma atribuição nunca antes vista. A literatura aos escritores, a música aos cantores, discutia-se em outubro de 2016.
Sete meses depois, porém, o discurso de Dylan para a aceitação do prémio soa, para alguns, a algo já visto anteriormente. A história, porém, não é nova e os déjà vu que a obra do músico norte-americano tem provocado vêm de longe. É que as acusações de plágio - ou inspiração profunda - não são tão inéditas quanto o prémio.
Abril de 2017
Estamos em Estocolmo, na Suécia. Depois de não ter estado presente na cerimónia de atribuição do Nobel da Literatura, em dezembro, por ter mais que fazer, Bob Dylan, entre dois concertos na cidade sueca, recebe a medalha e o diploma que o junta a nomes como José Saramago, Gabriel García Márquez, John Steinbeck e Jean-Paul Sartre - este último, porém, recusou o prémio, em 1964, por ter decidido nunca aceitar prémios.
A entrega do prémio deu-se sem as objetivas dos fotógrafos. Sem os planos das câmaras. Sem as perguntas dos jornalistas. Deu-se sem a imprensa a assistir, quase quatro meses depois da cerimónia oficial, a que Dylan enviou Patti Smith em representação.
Já sete meses depois desse 13 de outubro que crismou um músico como nome maior da literatura em 2016, no passado dia 5 de junho, a Academia Sueca publicou na sua página a palestra de Dylan. O músico tinha até 10 de junho para a entregar e poder, assim, receber os 824 mil euros do prémio monetário. A cinco dias do limite, cerca de meia hora de palestra refletem e demonstram a ligação entre as canções que compôs e a literatura que leu, discorrendo longamente sobre três obras em particular: "A Oeste nada de novo", de Erich Maria Remarque, "Odisseia" de Homero e "Moby Dick", de Herman Melville. E é aqui que começam os problemas.
Preparar uma palestra sobre qualquer coisa implica saber qualquer coisa sobre essa tal coisa. E os saberes sobre todas as coisas sempre se encontram na Internet. Não é, por isso, de estranhar que Dylan tenha feito exatamente isso - ir à Internet, neste caso a uma plataforma de partilha de apontamentos académicos, procurar inspiração. E encontrá-la.
A denúncia surge na revista digital Slate. O escritor Ben Greenman, cita a publicação, viu um Dylan tão inspirado que começou a inventar citações. Mais uma vez, nada de novo. No passado, Bob Dylan pôs na boca de Abraham Lincoln palavras que o 16.º presidente dos Estados Unidos nunca disse. Todavia, estas novas citações são apenas o ponto de partida para uma história com uma raiz mais profunda.
Como num incêndio, onde há fumo, há fogo e onde há ideias, há inspiração. E a cada citação há de corresponder uma ideia de verdade. Foi essa ideia que a repórter da Slate Andrea Pitzer encontrou num resumo da obra publicado online.
“Alguns homens feridos são levados para Deus, outros são levados para a amargura”, citou o laureado, que estaria a citar um pregador. Esta frase, porém, não aparece em lado algum da obra de Melville. Pitzer, todavia, encontrou-a noutro lado: no SparkNotes.
São ao todo vinte as frases que se assemelham às do resumo disponível na Internet. Vinte frases num total de 78 dedicadas a "Moby Dick". Para Dylan, todos estes livros, bem como outros clássicos, deram-lhe “uma certa perspetiva de encarar a vida, um conhecimento sobre a natureza e uma medida para todas as coisas”.
No entanto, as perspetivas parecem surgir-lhe de outros lados também. Mas nada disto é novo. No primeiro álbum, explica Andrea Pitzer, o músico norte-americano incluiu 11 covers e apenas duas peças originais. Quando começou, Dylan absorvia as influências dos artistas que ia conhecendo, compondo e recompondo sobre as bases que lhe iam apresentando, naquilo a que Pitzer chama uma acumulação "caótica, um malabarismo de poesia de um homem de truques disposto a deixar cair a bola de vez em quando."
Às influências literárias junta a reverência a uma figura tutelar: o músico Buddy Holly, que morreu aos 22 anos num desastre de avião. “Ele era o arquétipo”, escreveu Bob Dylan, “Tudo o que eu não era e queria ser”.
Depois desenvolveu um estilo único, que combinava precisamente todas estas influências. Do ponto de vista lírico, precisamente aquilo que lhe granjeou o Nobel, Dylan reconhece marcas dos autores que leu, mas avisa: “Escrevi sobre todo o tipo de coisas nas minhas canções. E não me vou preocupar com isso, com o que significam”. A mescla eclética fê-lo crescer, ganhar nome e por fim ganhar o mundo. A obra original e versátil de Dylan invocava um pouco de tudo.
“Nos últimos anos”, escreve Pitzer, “Dylan parece ter expandido a sua apropriação”. Em 2004 o músico americano publicou o livro de memórias "Chronicles: Volume One". Livro que usa samples de outras obras, como se fosse uma composição de hip-hop ou um pastiche literário de um veterano do rock que se apropria dos espíritos alheios para os refundar.
Nada disto é inédito. Tampouco condenável no mundo da Internet em que hoje vivemos. Basta olhar para a forma como as comunidades online se apropriam de conteúdos e lhes atribuem novos significados, criando ideias completamente diferentes (e por vezes opostas) da fonte.
Inspiração e absorção
Em 2003, um fã de Dylan estava a ler o livro "Confissões de um Yakuza", publicado em 1991 por Junichi Saga. Algo, porém, lhe saltou à vista. Saltou porque familiar. Porque nas páginas do livro havia frases que estavam nos versos do álbum de 2001 “Love and Theft” - Amor e Roubo, em português.
“No folk e no jazz a citação é uma tradição rica e enriquecedora”, disse Dylan em 2012 à Rolling Stone. “Estou a trabalhar dentro da minha forma de arte. Só isso. Trabalho dentro dessas regras e limitações. Há figuras autoritárias que podem explicar melhor essa forma de arte do que eu. Chama-se escrever uma música. Tem a ver com melodia e ritmo, e depois disso, qualquer coisa serve. Tornas tudo teu. Todos o fazemos”, dizia o artista à revista norte-americana especializada em música.
“O senhor Dylan não estava a fingir apresentar pesquisa original sobre a cultura dos yakuza, os gangsters japoneses”, escrevia, então o New York Times. “Nem estava a desbravar caminho nos livros da música”. “Ao contrário dos Led Zeppelin, que finamente mascararam a “Killing Floor” dos Howlin’Wolf como “The Lemon Song” “e ficaram com o crédito da escrita, “Dylan não estava a cantar a música de ninguém como se fosse sua”.
É célebre a ideia de que copiar de uma só pessoa é plágio, copiar de muitas é pesquisa. Fazer uma colagem de ideias, ou tecer um manto de referências, citações, apropriações, reconstruções, reinterpretações dessa tal grande tradição lírica americana talvez não seja copiar, mas antes um compêndio dos pormenores da vida americana que compõem, no plano geral, o retrato do que é ser Bob Dylan.
E não será isso, em si, uma forma de cultura? E se o for, a quem pertence? Logo que uma obra é exposta, deixa de pertencer ao seu autor, já que os espetadores (ou ouvintes, ou leitores, ou utilizadores) vão dela tirar sensações, ideias e pensamentos. Esta confusão entre quem é dono do quê “é um sintoma de um crescente desentendimento sobre a propriedade da cultura e evolução, um desentendimento que se tem acelerado com a migração da tradição oral para a internet. Não é suposto as ideias ficarem gravadas na pedra e deixadas invioladas; elas são feitas para estimular a próxima ideia e a seguinte”, escrevia, em 2003, Jon Pareles acerca desta polémica.
Pensemos numa lenda tradicional. Em Cárquere, freguesia do concelho de Resende, no topo norte do distrito de Viseu, tem um pequeno Mosteiro de granito castanho, de origens mais antigas que a própria nacionalidade. Numa das salas geladas do edificado, que se encaixa na vertente umbria do Montemuro, está, pendurada de uma parede, a pele de um sardão. Um bicho enorme, diz a lenda que há de ter ameaçado matar uma mulher e o filho, que vinham de Rossas, aldeia próxima.
O bicho queria comê-la. Aflita, a mulher, que levava um cesto com novelos de lã, pediu auxílio à santa daquele lugar, que lhe deu uma ideia: dar os novelos de comer ao sardão, mas manter uma das pontas de cada fio. Depois, puxou pelos fios e o bicho morreu sufocado.
Do outro lado dos montes, há um outro santuário, mas um mesmo sardão, ou crocodilo. Estamos agora em Sernancelhe e no Santuário da Lapa e a lenda é tal e qual a de Cárquere. E por ser tal e qual, e por ser sardão também, lá está, exposto no santuário, o crocodilo, cujos registos, fora da lenda, remontam a 1711.
A quem pertence o legítimo sardão? Quem é o dono da verdadeira lenda? A história de Confissões de um Yakuza vem dos relatos que um gangster contou a Saga. E por isso não é uma criação dele. Dylan, remistura as samples, ou excertos, dessa obra numa outra obra.
A transposição destas histórias para produtos culturais comercializáveis leva a que as fontes se dispersem, os detalhes se alterem. E as versões se multipliquem. “Com a internet a pôr uma enorme fatia de património cultural à mão, [as grandes empresas e artistas] querem colher os dividendos ou bloquear acesso” a estas peças, explica Pareles.
“O artista absolutamente original é uma criatura extremamente rara e possivelmente imaginária, a viver nalguma ilha isolada onde nenhuns trabalhos ou tradições prévios deixaram qualquer impressão. Como virtualmente qualquer artista, Dylan mantém uma contínua conversa com o passado”. E é nessa contínua conversa com o passado que Dylan constrói o porvir.
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