Quando começou a coordenar o desenvolvimento do Referencial Gastronómica do Minho, Joana Santos, professora responsável pelo projeto, tinha compiladas “mais de mil receitas” (como revelou no podcast “Vai Dar Uma Curva”), veiculadas pelos 24 municípios da região, quer através de receitas, quer através da indicação de pessoas conhecedoras da gastronomia local, e pela consulta de bibliografia de referência. Depois, as mais de mil transformaram-se em cerca de 500, uma vez que foi necessário analisar as receitas, ingrediente a ingrediente (e porção a porção), de forma a garantir que não existiria duplicação de receitas, embora em algumas situações essa situação exista e até seja desejável, porque trazem "saber fazer" diferentes, que vão variando conforme a localidade, e que contextualizam melhor os sabores regionais.
O Minho é uma das Regiões Gastronómicas da Europa, mas nem só de receitas vive este Referencial Gastronómico. A relação entre a cultura e aquilo que comemos, o regresso às “origens” depois da “febre” da gastronomia de vanguarda, o papel da gastronomia no desenvolvimento local e o papel das ordens religiosas na gastronomia minhota são alguns dos temas abordados no Referencial, que tem como papel valorizar aquilo que de melhor se cozinha (e come) no Minho.
Relativamente às ordens religiosas, cumpre salientar a importância vital que tiveram na preservação do receituário e dos produtos minhotos, sendo que as ordens masculinas estavam mais vocacionadas para o trabalho no campo e viticultura, ao passo que ordens femininas eram mais dedicadas à doçaria, por exemplo. Tal acontecia por múltiplas razões, nomeadamente o facto destas ordens possuírem terras, meios de produção e conhecimento para produzir ou confecionar aqueles que se tornaram alguns dos produtos ou pratos mais emblemáticos da região.
O Referencial Gastronómico tem como objetivos principais dotar os profissionais da área do conhecimento necessário para confecionar e compreender os pratos tradicionais desta zona do país, assim como ajudar quem visita a região a compreender melhor as histórias e origens de cada uma das receitas que compõem este Referencial.
E no que diz respeito a receitas, é difícil falar do Minho sem destacar quatro dos seus ex-líbris: o Bacalhau à Braga, as Papas de Serrabulho, a Posta Barrosã e o Pudim Abade de Priscos.
Quatro pratos que fazem do Minho uma região gastronómica de eleição
Bacalhau à Braga
Uma das curiosidades relativamente ao bacalhau e ao Minho, prende-se com o facto de Viana do Castelo, por possuir o porto mais a norte da costa portuguesa, ter tido desde sempre acesso privilegiado ao bacalhau que chegava dos mares do Norte, o que explica a disseminação do dito pela região minhota.
Por isso, não é de estranhar que o bacalhau seja considerado uma espécie de imperador da cozinha bracarense, pelo que muitos dos restaurantes da cidade possuem pratos em que este peixe tem o papel principal.
O Bacalhau à Braga é talvez um dos mais emblemáticos, sendo a sua receita inspirada no chamado Bacalhau à Narcisa. “Narcisa” é precisamente o nome de uma antiga tasca da cidade bracarense e, segundo os herdeiros da cozinha que o criou, “primava pela qualidade dos poucos ingredientes como um bom bacalhau e o que a terra dava”.
A mudança para de nome para Bacalhau à Braga terá surgido nos anos 80 do século passado por uma razão curiosa: uma vez que muitos restaurantes passara a incluir este prato no seu menu, começaram a mudar-lhe o nome como forma de não promover o restaurante responsável pela sua criação.
O Bacalhau à Braga é frito e servido com batatas fritas às rodelas e uma cebolada por cima, podendo ainda ser decorado com salsa, pimentos ou pickles.
Papas de Sarrabulho
Umbilicalmente ligadas ao inverno e ao ritual da matança do porco, as Papas de Sarrabulho são um dos ícones da gastronomia minhota e um dos pratos mais emblemáticos da região.
O “sarrabulho”, que pode ser definido como sendo algo que é feito com sangue de porco (mas que também significa “desordem” ou “grande confusão”), é também um símbolo do aproveitamento de todas as partes do porco como matéria gastronómica, particularmente nomeadamente as menos nobres e que não podiam ser conservadas (através do processo de salga ou de fumo), onde se incluem as vísceras (pulmões, traqueia, esófago, goela), bem como o sangue cozido que faz parte da constituição original deste prato.
As papas, que basicamente são a mistura destes ingredientes com pão (ou farinha de milho), são utilizadas sobretudo como acompanhamento dos Rojões à Moda do Minho (outro dos pratos emblemáticos da região), ainda que com o passar do tempo o “sarrabulho” se tenha vindo a “enobrecer”, podendo hoje em dia incluir carne de porco, de frango ou de vaca, bem como chouriço.
Posta Barrosã
A raça barrosã é uma raça de bovino de pele castanha-clara e que se distingue visualmente das outras pela sua armadura córnea imponente, que pode chegar quase aos dois metros de envergadura.
Sendo um animal que pode ser utilizado para trabalho agrícola, a verdade é que a sua carne é, nos dias que correm, um dos principais motivos para visitar o Minho gastronómico.
Com uma cor que pode ir de rosada a vermelho-escuro, esta é uma carne tenra e suculenta, a parte do bovino que deve ser utilizada para confecionar a posta Barrosã é a rabada (que muitas vezes é também conhecida por alcatra), que fica localizada na coxa traseira no animal.
Para fazer uma Posta Barrosã de eleição – cumprindo, por exemplo, a receita tradicional de Ponte da Barca, uma das localidades que tem na Posta Barrosã uma das suas referências gastronómicas –, deve ser grelhada na brasa uma posta com três a quatro centímetros de espessura, que depois é passada num molho de azeite, vinho branco, vinagre, pimenta, alho e alecrim, e servida com arroz malandrinho de feijão e hortaliças.
Pudim Abade de Priscos
Manuel Joaquim Machado Rebelo foi um pároco católico e gastrónomo, considerado um dos grandes cozinheiros portugueses do século XIX. A sua paróquia? Priscos, freguesia do concelho de Braga e de onde é originário o famoso Pudim de Abade de Priscos.
Contudo, a história de Manuel Rebelo tem contornos e algum mistério, havendo relatos de que viajava sempre com uma mala de temperos onde estaria também um famoso livro de receitas, que ficou desaparecido durante décadas (recentemente, em 2016, foi publicada uma obra que recupera essas receitas). Adicionalmente, diz-se também que terá sido ele o inventor da famosa francesinha, cuja receita teria sido alegadamente criada depois de uma viagem a Paris com o rei D. Luís.
Mas voltando ao Pudim Abade de Priscos, e apesar de existirem várias receitas minhotas para a sua confeção, é certo que a lista ingredientes para o mesmo contem ovos (nomeadamente as gemas), açúcar, toucinho e vinho do Porto, devendo o pudim ficar com uma consistência gelatinosa, desfazendo-se na boca de quem o come.
Esta é uma das mais ímpares receitas da gastronomia nacional, não só porque contém dois produtos portugueses icónicos (ainda que, à partida, de improvável combinação) como são o Vinho do Porto e o toucinho, mas também porque se trata de um doce com elevada durabilidade, ou seja, pode ser mantido por estabelecimentos comerciais durante vários dias sem perder a qualidade.
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