Não digam que é um meio ultrapassado. Não escrevam que é um regresso ao passado, viagem nostálgica. O filme, a película, é um meio de valor igual aos outros — com as suas particularidades, idiossincrasias, vantagens e desvantagens.
O alerta é de Tacita Dean, artista britânica-europeia que traz ao Museu de Serralves, no Porto, uma série de trabalhos feitos desde 1991 até este mesmo mês de janeiro de 2019. É com esta exposição que o museu de arte contemporânea arranca o ano do 30.º aniversário da Fundação de Serralves.
Se a relevância do analógico é posta em causa pela comodidade do digital, poderá pensar-se se a mesma ideia não pode servir aos museus. De que serve uma salas para pendurar quadros quando a Internet os mostra em todo o mundo?
A Fundação de Serralves, porém, mostra que os museus são mais do que paredes para pendurar quadros. E os números de visitantes, que em 2018 foram quase um milhão, mostram que a relevância dos museus está viva.
Para Dean, a importância do analógico com meio, também é evidente. A criadora falava com os jornalistas na apresentação da mostra com o seu nome, inaugurada esta terça-feira, 29 de janeiro. A artista, que trabalha sobretudo com película, isto é, o filme analógico que se usava (e na verdade ainda usa) nas câmaras “de rolo”, manipula o meio para construir objetos artísticos inovadores — e arriscados.
É o caso de Antigone (2018), um filme de precisão e sincronismo, que explora as possibilidades do analógico para trazer uma surreal experiência visual e narrativa. Um filme de uma hora, que começa a todas as horas e que merece ser visto do início ao fim.
“Ao fazer imagens como um jogador de luz, tenho de reconhecer que a minha preferência pelo filme está ligada à cegueira de que este necessita para que eu possa ver”, disse a artista, citada no roteiro da exposição.
A fragilidade do filme, é também a sua atração. Frágil porque pode facilmente desaparecer. Frágil porque a manipulação da imagem é literalmente feita às escuras, com toda a dificuldade que isso acrescenta.
Durante a sessão com os fotógrafos de vários meios, Tacita Dean atira: “Há aí alguém a usar película?”. Só silêncio. Até que alguém pousa a câmara digital e diz: “Eu”. Esse eu, que por acaso é quem assina este texto, mereceu depois toda a atenção da artista, cujo sorriso se abriu. Apesar disso, porque o filme é filme, e o processo o seu processo, não está aqui (ainda) o resultado dessa experiência.
O que está é a garantia de que a película vive. A película permite construções artísticas plenas de dificuldade e conflito, que, só em si, nesse processo de criação, ganham significado suficiente para conquistar mais o nome de arte ainda. —, bastando só isso para já valer a pena ir a Serralves apreciar a exposição.
Serralves que tem uma relação especial com a artista, que em 2003 realizou um filme ali mesmo. ‘Boots’, que faz parte da coleção da fundação, é constituído por três filmes de 16mm, cada um com vinte minutos de duração e numa língua diferente (inglês, francês e alemão).
Foi inspirado por uma visita da artista à Casa de Serralves, em 2002, que Tacita Dean descreve como o mais belo cenário onde filmou. Neles, a personagem principal, Boots, faz diferentes percursos pela casa cor de rosa, mudando de personalidade consoante a língua que fala. O trabalho foi adquirido em 2005, fazendo agora parte da coleção,.
E em ano de celebrações, a própria coleção protagoniza um momento especial, mostrando-se na exposição “Celebrar a Coleção. Serralves 1989 – 2019”. Celebração marcada também pelo reforço do programa de exposições itinerantes da Coleção de Arte Contemporânea de Serralves, com o objetivo de tornar a coleção de Serralves acessível para além das portas do museu.
Além de exposições da Coleção em instituições parceiras de grande relevância, vão realizar-se exposições em localidades de norte a sul de Portugal, em parceria com autarquias fundadoras, num total de mais de trinta exposições da Coleção fora dos muros de Serralves.
Joana Vasconcelos, Álvaro Siza, Paula Rego e Cabrita Reis em destaque
O ano da celebração das três décadas arranca com Tacita Dean, mas os destaques são vários. A primeira exposição antológica de Joana Vasconcelos chega no dia dos namorados, 14 de fevereiro. “JOANA VASCONCELOS: I’M YOUR MIRROR” [sou o teu espelho] resulta de uma parceria com o Museu Guggenheim de Bilbao e ficará em Serralves até ao final de junho.
A exposição, cujo título é uma homenagem a Nico, a cantora alemã celebrizada pela música “I’ll be your mirror”, da banda nova-iorquina Velvet Underground, é uma retrospetiva da artista portuguesa, incluindo trabalhos produzidos entre 1997 e a atualidade, explica a fundação em comunicado.
“A produção artística de Joana Vasconcelos contém referências à cultura popular portuguesa, entrelaçada com alusões à história da arte, que com um desarmante sentido de humor abordam questões tão sérias quanto a exploração das mulheres, as migrações e os impactos do colonialismo. Em Serralves, a lista de obras será adaptada à escala e às características espaciais das galerias do Museu. Este é também um regresso da artista a Serralves, onde expôs no ano 2000”.
Se a Fundação de Serralves faz trinta anos, o Museu de Arte Contemporânea faz vinte. O autor do edifício, o arquiteto português Álvaro Siza, será homenageado com uma “grande exposição original e crítica” que olha para um percurso criativo de mais de seis décadas. “ÁLVARO SIZA: (IN)DISCIPLINA” procura “explorar o modo ‘(in)disciplinado’ como Siza opera em relação à disciplina da arquitetura e toma como base uma nota escrita do próprio autor num dos seus Cadernos Diários de esquissos e reflexões”, de 1992 — Nome: Álvaro Siza; Disciplina: tão pouca quanto possível.
De regresso a Serralves está ainda Paula Rego. A exposição monográfica, com base nas obras da pintora portuguesa que integram a coleção de Serralves, prolongar-se-á até ao início de 2020.
Também de regresso está Pedro Cabrita Reis, que chega em outubro com uma exposição em nome próprio com “uma mostra antológica especificamente concebida para os espaços do museu, que traduzirá exemplarmente a relação entre a prática artística de Cabrita Reis e a sua reflexão sobre a função dos museus”, explica a Fundação, que recebe o artista precisamente vinte anos depois de uma das suas primeiras exposições no então recém-inaugurado Museu de Serralves.
A ‘jukebox' de Susan Hiller, o multimédia de Joan Jonas e a sociedade de Olafur Eliasson
Para além de Tacita Dean, os destaques internacionais deste ano em Serralves começam com música na galeria central do Museu. A ‘jukebox’ de Susan Hiller é uma instalação interativa que inicia o ciclo de exposições dedicadas à Coleção de Serralves.
“Die Gedanken sind frei” [Os pensamentos são livres], de 2012, convida o público a escolher ouvir, sentado em bancos desenhados pela artista, pela ordem que quiser uma centena de canções de teor político colecionadas por Susan Hiller. “As músicas são originárias de várias geografias e de culturas muito diversas. As letras das canções podem ser encontradas nas paredes que rodeiam a jukebox e também é disponibilizado ao público um livro ‘cancioneiro’ que compila letras de músicas, textos e imagens selecionados pela artista”, pode ler-se na apresentação da obra.
Susan Hiller, cujo trabalho em filme, vídeo e escultura explorou as fronteiras da consciência e do paranormal, morreu aos 78 anos, anunciou esta terça-feira a galeria londrina Matt’s Gallery. A artista, nascida nos Estados Unidos da América mas estabelecida no Reino Unido desde os anos 1960, utilizou várias formas de expressão para investigações que designou como “paraconceptuais”.
A Fundação de Serralves apresentou em 2005 uma exposição monográfica de Susan Hiller – “Revocar. Obras Escolhidas”, 1969-2004.
“A mais completa mostra” da obra de Joan Jonas na Europa chega a Serralves em maio. Com trabalhos desde 1960, a exposição inclui recriações de performances históricas da artista, uma pioneira da videoarte e da performance, hoje considerada uma das vozes mais influentes na arte contemporânea.
A grande exposição do parque ficará este ano a cargo de Olafur Eliasson, conhecido pelas suas instalações de grande escala que empregam materiais elementares como luz, água, humidade ou temperatura, e assim sucede a Anish Kapoor. A obra do artista dinamarquês, que se interessa pelas relações entre o homem e a natureza, a arte e a sociedade, e já expôs tanto na Tate Modern, em Londres, como nos jardins de Versalhes, em França, estará disponível a partir de julho.
Novas visões com a Casa do Cinema Manoel de Oliveira e um passeio pelas árvores
O cinema ganhará um novo espaço com a abertura da Casa do Cinema Manoel de Oliveira, prevista para o primeiro semestre deste ano. Para o primeiro ano, Serralves propõe uma programação “plural e transversal”, que contará com uma exposição permanente e duas temporárias, planeadas em articulação com uma programação regular de cinema, a que se juntam retrospetivas, ciclos temáticos e um programa de edições.
Novidade neste 30.º aniversário será também uma nova forma de visitar o Parque de Serralves. Um percurso elevado, junto à copa das árvores, vai permitir experimentar o espaço de uma nova perspetiva. Chama-se “Tree Top Walk” e quer ajudar também ao estudo da biodiversidade do parque.
Parque esse que contará ainda com o Bioblitz, uma inventariação biológica relâmpago feita com a participação do público, e, no verão, o Há luz no Parque, uma instalação de luz para revisitar lugares irónicos do Parque de Serralves, este ano complementado com a novidade da atividade cores de inverno, um novo conceito de iluminação noturna no parque que incide nos meses de inverno e que convida os visitantes a aproveitar o parque num período de frio.
2018: final do ano em polémica consolida crescimento de Serralves
A exposição de Robert Mapplethorpe, nas salas agora ocupadas pelos trabalhos de Tacita Dean, apontaram todos os holofotes para o museu portuense. A polémica sobre a retirada de obras e o condicionamento do acesso a outras, conduziram à saída do diretor, João Ribas, e a trocas de acusações em setembro de 2018.
Apesar disso, no ano passado Serralves registou o maior número de visitantes de sempre — 946.932 —, um crescimento de mais de 13% face a 2017, segundo os números da fundação. Destes, quase 275 mil foram visitantes estrangeiros, o que representa 28% do total de visitas.
Se acrescentarmos os visitantes às exposições de Serralves fora de portas, nacionais e internacionais, o total de visitantes cresce para os 1,5 milhões.
A presidente do conselho de administração da fundação, Ana Pinho, classificou 2019 como tendo uma “programação muitíssimo ambiciosa, totalmente centrada no aniversário”, salientando também a abertura da Casa do Cinema Manoel de Oliveira e “o desenvolvimento da Coleção Miró”, dando uma renovada atenção ao Parque de Serralves.
Questionada pelos jornalistas no final da apresentação da programação, a 25 de setembro, sobre quando é que Serralves vai anunciar a nova direção do museu, a cargo de Marta Almeida desde a saída de João Ribas, Ana Pinho reafirmou ser “um processo que está a decorrer e dentro de algum tempo [serão dadas] novidades”. Em relação ao Parque de Serralves, cuja direção está igualmente vaga desde a saída de João Almeida, Ana Pinho disse que também haveria novidades para breve.
Sobre se a programação para 2019 se ressentiu da saída de João Ribas, após a polémica com a exposição de Robert Mapplethorpe, que levou à ida das duas partes à comissão parlamentar de Cultura, a presidente do conselho de administração disse que tal não é o caso.
“Realmente acho que não se ressente, mas poderão julgá-lo. Tanto os jornalistas como o público julgará. Acho que é uma programação extraordinária que celebra da melhor forma não só o museu, mas o parque e a Casa do Cinema que é uma nova valência. De facto, como sabem, as programações são sempre pensadas com algum tempo de antecedência e em especial esta que celebra os 30 anos, por isso a nossa programação é exatamente aquilo que gostaríamos de apresentar nestes 30 anos”, declarou Ana Pinho, citada pela agência Lusa.
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