Façamos o seguinte exercício: peguemos num qualquer livro, entre os vários existentes, sobre a cena grunge, os seus artistas e as figuras que se destacaram dentro do movimento, folheemos esse mesmo livro de uma ponta à outra, e tentemos encontrar uma frase sobre Courtney Love que não se encontre impregnada de rancor. De todas as personalidades que fizeram os anos 90 rock n' roll, Courtney foi, provavelmente, a mais polémica. Quem com ela privou de perto tende a refrear-se no que ao uso de palavras simpáticas diz respeito ou, quando os elogios acontecem – sobretudo à sua criatividade e à sua ambição – vêm quase sempre acompanhados por um asterisco, um “mas” que coloca em causa o que tiver sido dito anteriormente. E isto quando a artista não é simplesmente equiparada a um animal caprino.
E, no entanto, Courtney é uma sobrevivente – já o era antes do grunge, e continuará a sê-lo independentemente das manchetes que, ano após ano, ajuda a construir, com declarações bombásticas e dedos acusatórios (numa das suas últimas diatribes no Instagram, acusou Dave Grohl de exploração e Trent Reznor de abusos sexuais, antes de apagar a publicação e pedir desculpas). Essa propensão para o caos tornou-a, inevitavelmente, odiada. Mas há que ter em mente que estamos a falar de uma mulher com uma infância atribulada, que ao longo de toda a sua carreira foi alvo de toda a espécie de rótulos por parte do público e da imprensa (mesmo o rótulo grunge só faz sentido pela associação a Kurt Cobain), e que mesmo assim persistiu, tornando-se num exemplo de self-made woman, num sonho americano de sucesso.
Courtney Love tem muitas facetas. Existe a filha de pais divorciados, que foi expulsa da escola por mau comportamento e que foi presa na adolescência por roubo. Existe a stripper que, ainda antes de fazer 18 anos, conseguiu ir sozinha para Liverpool, onde se misturou com a cena pós-punk local. Existe a viciada em heroína, que no regresso aos Estados Unidos decide tentar uma carreira no cinema, mundo no qual alcançaria um estrelato (ainda) maior. Existe a líder das Hole, banda que deu ao rock n' roll alternativo um grau maior de crueza e uma perspetiva feminina sobre a dor, a raiva e (lá está) a sobrevivência. E existe a viúva de Kurt Cobain, que só anos depois da morte deste conseguiu, por fim, realizar o seu luto. Cada uma delas mereceria um livro por si só, mas é no mundo da música que o seu legado se mantém intacto. Mesmo depois de todos os escândalos. Numa altura em que se discutem os malefícios de uma alegada “cultura de cancelamento”, eis uma mulher que não foi outra coisa que não “cancelada” – e que ainda aí anda a contar as suas histórias.
"I feel so alone and I wish I could die"
Não é como se Courtney Love tivesse propriamente nascido num berço de latão. A sua mãe, Linda Carroll, é uma psicoterapeuta conceituada nos Estados Unidos, ao passo que o pai, Hank Harrison, trabalhou como publicista e como road manager dos Grateful Dead; o baixista do grupo, Phil Lesh, é seu padrinho. Nascida em 1964, Courtney passou os primeiros anos da sua infância imiscuída na cena hippie de São Francisco, mas paz e amor era tudo o que não tinha em casa. Os seus pais divorciaram-se em 1970, com Linda a acusar Hank de ter drogado Courtney Love com LSD, era esta ainda bebé, e de a querer raptar e levar para um país estrangeiro. O pai negou tudo, mas os tribunais acabaram por não lhe conceder a custódia da filha.
Em 1972, Courtney muda-se com a mãe para a Nova Zelândia, onde foi inscrita numa escola só para raparigas, e da qual foi expulsa por mau comportamento. Reenviada para o estado do Oregon, onde viveria os primeiros anos da adolescência com o antigo padrasto, foi presa após roubar uma loja em Portland, e acabou à guarda do estado até se emancipar legalmente, em 1980. Pelo meio, consumiu drogas pela primeira vez, ouviu discos de Patti Smith e das Runaways – que a inspiraram a formar a sua própria banda – e declarou, nos seus diários, posteriormente publicados sob o título “Dirty Blonde”: «O amor entre raparigas não existe. Todas as miúdas fixes são umas cabras competitivas».
Talvez por isso Courtney Love tenha acabado rodeada de homens, quer aqueles que a miravam com olhos lascivos de cada vez que subia ao palco, no seu trabalho de stripper, quer aqueles que, nos bares homossexuais que frequentava, lhe davam o carinho que até então não tinha tido. É por esta altura que adota igualmente o apelido Love, por oposição ao Harrison com que foi batizada. Em 1981, recebe uma considerável quantia de dinheiro dos seus avós maternos, que a permitem viajar para Dublin, Irlanda, onde o seu pai residia, e onde acaba por conhecer Julian Cope, dos Teardrop Explodes, figura de ponta do pós-punk britânico.
Julian Cope oferece-lhe um espaço para morar, na sua casa em Liverpool, e Courtney acaba na cidade dos Fab Four como «mascote» (palavras suas) de artistas como os Teardrop Explodes ou os Echo & the Bunnymen. O seu regresso à pátria-mãe dá-se em 1982, onde grava algum material (que não resultou em nada) com os então emergentes Faith No More, partindo logo a seguir para a Ásia, trabalhando em Taiwan e Hong Kong. Na então colónia britânica, consome heroína – a droga que a marcaria por quase toda uma vida – pela primeira vez, voltando a Portland para formar a sua primeira banda com a amiga Kat Bjelland: as Pagan Babies, que gravaram apenas uma maqueta. «A Kat foi a melhor coisa que me aconteceu», afirmaria mais tarde.
O underground norte-americano ia-se então compondo com as muitas bandas pós-hardcore que, fruto dos contactos e itinerários que construíram, ajudariam anos depois o grunge a firmar-se, como os Big Black (influência enormíssima para as Hole) ou os Butthole Surfers, mas para Courtney o apelo imediato foi o do cinema. Inscreve-se no San Francisco Art Institute, onde trabalha com o realizador George Kuchar, tem aulas de teatro com Whoopi Goldberg e acaba com um pequeno papel em “Sid & Nancy”, biopic sobre o casal mais famoso do punk – sem sequer imaginar que ela própria formaria, com Kurt, o casal mais famoso do grunge. Em 1987, consegue um papel principal em “Straight to Hell”, ao lado de Joe Strummer, dos Clash, e desperta a atenção de Andy Warhol e dos Ramones, participando no videoclip para 'I Wanna Be Sedated'.
"Ugly from the back"
Porém, a fama obtida enquanto atriz não a fascina. Nos seus diários, expressa o seu desejo de ser, primeiramente, uma rockstar. «Espero que, quando for famosa, não seja incompreendida», pode ler-se. Courtney acaba primeiro no Alaska, para se abstrair de tudo, e mais tarde em Los Angeles, onde forma as Hole após colocar um anúncio numa fanzine a pedir colaboradores. «As minhas influências são os Big Black, os Sonic Youth e os Fleetwood Mac», escreveu então. O guitarrista Eric Erlandson, com quem mais tarde manteria uma breve relação, é dos primeiros a responder, seguindo-se a baixista Lisa Roberts, sua vizinha, e a baterista Caroline Rue, que conheceu num concerto dos Gwar. Continua, ao mesmo tempo, a trabalhar como stripper, de forma a juntar dinheiro para comprar equipamento e uma carrinha de transporte. Os ensaios das Hole dão-se num estúdio de Hollywood, que lhes foi emprestado pelos Red Hot Chili Peppers.
Faltava uma editora. Uma carta publicada em “Dirty Blonde”, dirigida «ao tipo certo da 4AD», à altura uma das mais conceituadas editoras independentes (lançando álbuns de artistas como os Bauhaus, Dead Can Dance ou Cocteau Twins), revela um misto de ambição com auto-depreciação, duas características que resumem bem a sua personalidade. «Fui vocalista dos Faith No More, o que é uma coisa um bocado azeiteira da qual se ter orgulho, mas farei de tudo para que tenhamos [Hole] um LP numa editora simpática como a vossa – incluindo ter orgulho em coisas azeiteiras». Não se sabe se a 4AD respondeu (ou se se arrependeu mais tarde), mas Courtney e as Hole acabariam a editar o seu primeiro single pela Sympathy for the Record Industry, uma pequena label de Olympia, em 1990.
Thurston Moore, que juntamente com os Sonic Youth era uma espécie de guru da fixeza underground, descobre por esta altura as Hole, e decide ajudar a banda como podia: apresentando-a aos chefões da Sub Pop, que estava em franca ascensão dentro do circuito independente. Bob Whittaker, que antes de ser manager dos Mudhoney trabalhou na Sub Pop, recorda em “Our Band Could Be Your Life” uma mensagem deixada por Thurston Moore num quadro de avisos, nos escritórios da editora: «Ouçam esta banda de Los Angeles». Não tardou para que a Sub Pop aceitasse lançar o segundo single das Hole, até pela insistência de Courtney Love. «A energia e a ambição dela eram muito intensas», admite Megan Jasper, ex-rececionista da Sub Pop, em “Everybody Loves Our Town”. 'Dicknail', segundo single do grupo, sai com o selo da Sub Pop em 1991.
Os Sonic Youth ajudariam ainda, de outra forma, Courtney Love e as Hole, na figura de Kim Gordon, baixista dos nova-iorquinos. Sendo sua fã, Courtney queria que Gordon produzisse o seu álbum de estreia, e escreveu-lhe uma carta nesse sentido. «A minha primeira resposta foi um não», confessa Gordon na sua autobiografia, “A Miúda da Banda”. «Conseguia perceber que ela ou tinha uma personalidade ambígua, ou outra espécie de energia louca e contagiante, e eu estava a tentar evitar essa espécie de drama na minha vida. Por outro lado, eu não tinha muita experiência como produtora. Mas acabei por mudar de ideias, considerando que ela estava a fazer uma coisa interessante».
Gordon descreve a sonoridade dos primórdios das Hole como “confusa”, e poder-se-á fazer uma comparação com a no wave onde os Sonic Youth cresceram (como músicos, e como fãs de música), em Nova Iorque. Em “Hey Ho Let's Go”, biografia dos Ramones escrita por Everett True (que, enquanto crítico musical, foi também ele uma das personalidades mais notórias do grunge), Eric Erlandson revela que as Hole começaram mais coladas aos Ramones, e que isso se alterou assim que as L7 apareceram no meio. «A dada altura, a Courtney decidiu que iríamos ser uma banda livre de Ramones, provavelmente uma reação ao pop punk pastilha-elástica das L7. Despediu todo e qualquer membro do grupo que fosse apanhado a mascar pastilha em palco, ou a usar sapatilhas sujas da Converse... A nossa antiga baixista sugeriu tocar uma versão da 'Carbona Not Glue' e, no dia seguinte, desapareceu», narra.
"Doll eyes, doll mouth, doll legs"
“Pretty On the Inside”, o álbum de estreia das Hole, é lançado a 17 de setembro de 1991 – uma semana antes de “Nevermind”, dos Nirvana. É um álbum onde a crueza das letras se mistura com a sujidade das guitarras, onde Courtney Love, mais que os exorcizar, chama todos os seus demónios para que a auxiliem a gritar o seu negrume interior ao mundo. Exemplo disso, a abertura com 'Teenage Whore', onde em pouco menos de três minutos a artista discorre sobre a sua (não-)relação com a mãe, que depois de a deixar à sua sorte tentou comprar o seu afeto com presentes vários. O álbum, com o selo da Caroline / City Slang, foi de imediato aclamado pela crítica especializada, «um caldeirão de negatividade», como lhe chamou Simon Reynolds no “The New York Times”.
Nada mau, para um disco que foi gravado e misturado em apenas uma semana. «Tenho a certeza de que a Courtney pretendia um som mais polido na sua entrada no mundo da música, mas o resultado foi um som cru. Ela tinha uma grande voz para punk rock», escreve Kim Gordon em “A Miúda da Banda”. Mas o mero facto de Courtney ter nomeado Gordon ou, melhor dizendo, a baixista dos Sonic Youth para produzir o seu álbum, indicava outra coisa: que Courtney tinha perfeita noção daquilo que queria ser e o que fazer para lá chegar. «Senti desde o início que a Courtney me convidou unicamente porque tinha interesse em que o meu nome estivesse associado ao álbum. Sentia que, no estúdio, ela estava a encenar um espetáculo para nós».
Hoje em dia, “Pretty On the Inside” é visto como um álbum essencial para a construção de um discurso feminista dentro do rock n' roll, e influência para artistas tão díspares quanto Brody Dalle e Scout Niblett («Até então as mulheres eram unidimensionais, fofinhas, doces, etéreas e isso irrita-me», afirmou a cantautora em 2013). Em “The Sex Revolts”, livro que alia uma discussão em torno de questões de género à crítica musical, Simon Reynolds e Joy Press argumentam que o álbum é a tentativa das Hole em mostrar o significado concreto «da ideia de que a beleza é meramente superficial, expondo a verdade mal-apanhada do interior do corpo», dado que essa mesma frase, “bonita por dentro”, «é tradicionalmente utilizada pelas mães como uma forma de consolar raparigas preocupadas com o seu aspeto». É como Courtney indica nos seus diários: «Não estou aqui para que vocês se sintam melhor, estou aqui para que se sintam pior».
E no entanto, assim que “Pretty On the Inside” começou a ganhar estatuto no meio rock de 1991, Courtney Love procurou afastar-se – desprezando, até – o grande movimento feminista que então brotava no underground: as Riot Grrrl. A sua antipatia pelas Riot Grrrl era abertamente expressa, quiçá por não querer que a sua banda e a sua arte fossem enquadradas num qualquer movimento – como aconteceu, também, com o grunge. «Em todas as cenas em que me imiscuí», diz em “Everybody Loves Our Town”, «fui sempre a mais ambiciosa, e aquela que não se enquadrava naquilo que toda a gente estava a fazer. E orgulho-me disso. As Hole não eram grunge. Não me deixaram ser grunge na altura; porque haveria eu de me guetizar agora?».
"Please, make me real"
As Hole começaram por ser grunge não pela sua associação a Seattle, mas pela sua associação a Kurt Cobain. A história de como o casal se conheceu tem várias versões: Courtney Love alega ter conhecido Kurt em 1989, em Portland, após um concerto dos Nirvana, e Everett True, que alimentou essa história, disse mais tarde que era falsa. «O Kurt apoiou essa versão, e eu também, porque não queríamos que ela fosse vista como uma interesseira», afirma o crítico em “Everybody Loves Our Town”. «Eu aceitei, porque achei que tinha piada. Digamos que a Courtney, como todos nós, podia ser ligeiramente generosa com a verdade».
Independentemente da forma como se conheceram, o que é certo é que Courtney não começou por achar a música dos Nirvana particularmente interessante, algo que só mudou com o lançamento de 'Sliver'. «Quando o pus a tocar, fiquei tipo “Oh, meu Deus – eu perdi isto!”», conta no mesmo livro. Durante as gravações de “Pretty On the Inside”, Courtney confessa, àqueles presentes em estúdio, ter uma paixoneta por Kurt Cobain. «O que me arrepiou, fazendo-me desejar que nunca se cruzassem», afirma Kim Gordon em “A Miúda da Banda”. «Toda a gente disse para si mesmo “Oh não, é um acidente à espera de acontecer”».
Em maio de 1991, antes de lançarem os seus respetivos álbuns, Kurt e Courtney encontram-se durante um concerto das L7 em Los Angeles. Charles R. Cross, autor da biografia de Kurt Cobain, “Mais Pesado Do Que o Céu”, descreve esse encontro como tendo estado sob um clima «muito sexual». Acabaram a noite com Courtney a dar a Kurt o seu número de telefone, e a madrugada a ter uma longa conversa por esse meio. Quando Kurt descreveu essa conversa ao amigo Ian Dickson, começou por declarar: «Conheci a miúda mais fixe do mundo».
À altura, Courtney Love namorava com Billy Corgan, dos Smashing Pumpkins, uma relação que mais tarde descreveria como sendo semelhante à de «duas melhores amigas que se amam». Durante a digressão que os Sonic Youth e os Nirvana fizeram pela Europa no verão de 1991, imortalizada em “1991: The Year Punk Broke”, chega mesmo a apresentar Corgan aos elementos das duas bandas, mas o seu coração já só batia por Kurt. Em outubro, visita Corgan em Chicago, e rompe o namoro ali mesmo; na mesma noite, os Nirvana tocavam na cidade, e horas após o concerto Courtney já estava ao colo de Kurt. «O sexo, como Kurt depois descreveu aos amigos, foi sensacional», escreve Charles R. Cross.
A atração foi instantânea porque ambos tinham histórias de vida semelhantes: foram negligenciados pelas suas famílias, passaram por dificuldades na escola, lidaram com a depressão na adolescência e procuram na música um escape. Courtney, afirma Charles R. Cross, «foi a primeira mulher que, ao ouvir-lhe histórias de juventude, lhe respondeu: “Eu consigo superar isso”». Unidos pela tragédia, ao início, e pelas drogas, mais tarde, Courtney e Kurt não começaram por encantar, como normalmente os casais encantam quem lhes é próximo. «Quando a Courtney quis sair com ele, eu opus-me verbalmente», diz Jennifer Finch, das L7, em “Everybody Loves Our Town”. «Venho de um lugar onde, se vais fazer música, não te envolvas com quem queres ser».
"All the boys on the radio, they crash and burn"
Uma das narrativas que mais têm perdurado ao longo dos últimos 30 anos é a de que foi Courtney a apresentar Kurt Cobain à heroína, uma narrativa que é sobretudo contada por quem vê em Courtney Love uma outra Yoko Ono: a segunda destruiu os Beatles, a primeira destruiu os Nirvana. Porém, é uma narrativa falsa. Kurt já tinha sido apanhado pelas malhas da heroína, ao passo que Courtney se tinha reabilitado anos antes. O que não evitou que a droga voltasse à sua vida, desta feita pelas mãos e seringas do seu novo namorado. Uma semana após se envolverem, chutaram juntos pela primeira vez, após um concerto de beneficência. «Não estou a dizer que a culpa foi dele, estou a dizer que foi uma escolha que fiz», afirma Courtney em “Mais Pesado Do Que o Céu”. «Pensei: “Parece que vou voltar a isto”».
Durante nova digressão europeia dos Nirvana, em novembro, com as Hole também a sobrevoar o velho continente, Kurt e Courtney passam noites a falar um com o outro por telefone, e vão enviando fazes com dedicatórias carinhosas. No Reino Unido, os Nirvana são convidados a atuar no programa de televisão “The Word”, e Kurt faz a sua primeira declaração pública de amor – uma que lhe traria problemas a rodos e manchestes desnecessárias nos tablóides britânicos: «Courtney Love é a melhor f... do mundo». Naquilo que uns viam má educação, outros viam audácia, qualidade que Kurt admirava em Courtney. Para Carolyn Rue, baterista das Hole, Courtney passou a cumprir, para Kurt, uma função muito específica: a de o ajudar a resolver a sua agressividade. «Disfrutava indiretamente disso, porque não tinha coragem para o fazer por conta própria. Precisava que a Courtney fosse porta-voz dele. Era passivo-agressivo».
Com o sucesso dos Nirvana surgem também as primeiras investidas contra Courtney Love, que alguns diziam estar a aproveitar-se da fama de Kurt. Quem conheceu ambos, como Mark Arm, dos Mudhoney, diz que «eles claramente gostavam um do outro», apontando o facto de Courtney ter “perseguido” Kurt muito antes de “Nevermind” explodir. Charles R. Cross vai mais além, lembrando que, assim que “Pretty On the Inside” foi lançado, as críticas eram tão favoráveis às Hole quanto o eram aos Nirvana. «Kurt era mais famoso do que ela, e os amigos de Courtney aconselharam-na a não se envolver com ele, para não prejudicar a própria carreira», escreve. «Mas, sendo autoconfiante, ela não considerava isso possível, e esses comentários ofendiam-na. Na verdade, parte da atração que sentiam um pelo outro residia no facto de serem os dois ambiciosos».
Numa viagem de avião rumo ao Havaí, onde os Nirvana dariam dois espetáculos, Kurt e Courtney decidem casar-se. A ideia era a de o fazerem no Dia dos Namorados, mas o acordo pré-nupcial – uma ideia do manager John Silva, que não gostava de Courtney – não foi assinado a tempo. O enlace teve lugar na praia de Waikiki, a 24 de fevereiro de 1992; entre os poucos convidados, sobretudo membros da equipa técnica dos Nirvana, estava Dylan Carlson, líder dos Earth e padrinho de casamento de Kurt. A sua presença foi um pedido específico de Kurt, com algo mais em mente: queria que Dylan lhe levasse heroína.
De fora ficaram Krist Novoselic e a sua esposa de então, Shelli Kyrkas. Krist, que acompanhava Kurt desde o início da sua carreira, não escondeu a mágoa: sentiu que os Nirvana se começavam a dissolver. A sua ausência devia-se ao facto de Kurt suspeitar que Shelli andava a espalhar boatos na imprensa sobre Courtney Love. «O Kurt estava no mundo dele, naquela altura», conta o baixista em “Mais Pesado Do Que o Céu”. «A partir dali, senti-me muito afastado dele. As coisas nunca mais foram as mesmas. Falámos um bocado sobre o futuro da banda, mas, na verdade, a banda não podia ter futuro nenhum depois daquilo». É uma ideia que vai ao encontro daquilo sentido pelo engenheiro de som Craig Montgomery, durante a digressão australiana dos Nirvana, um mês antes da boda: «Havia o Kurt e a Courtney, e havia o resto. A banda estava partida», diz em “Everybody Loves Our Town”.
"Go for credit in the straight world"
Quando casou, já Courtney estava grávida da filha de ambos, Frances Bean Cobain. Porém, não o sabia ainda, e continuou a consumir heroína – colocando em causa, dessa forma, a viabilidade do feto. A verdade só veio ao de cima meses mais tarde, quando Courtney dá uma entrevista à “Vanity Fair”, dizendo ter consumido na mesma noite em que os Nirvana atuaram no programa “Saturday Night Live”, em janeiro.
Foi a entrevista que marcou para sempre Courtney Love e fez o grande público recolher-se, horrorizado. Para além das próprias declarações de Courtney, o artigo citava fontes próximas do casal, que testemunharam o consumo de drogas. Uma dessas fontes foi alegadamente Susan Silver, manager dos Soundgarden e dos Alice In Chains, que à altura estava casada com Chris Cornell. De imediato, Susan tornou-se persona non grata para o casal Kurt Cobain-Courtney Love. «A dada altura, o Danny Goldberg ligou-me em nome deles, para me dizer para deixar de falar com as pessoas», lembra Susan em “Everybody Loves Our Town”. «Foi a primeira vez que alguém arrasou alguém da comunidade [grunge]. Tínhamos uma comunidade boa, coesa, solidária, e apareceu um tornado a destruir tudo».
Susan não foi o único alvo de Courtney, que passou, então, a mirar a sua língua viperina na direção de todos aqueles que estavam envolvidos na cena de Seattle ou que tinham ligações com a mesma. Em “Girls To the Front”, Sara Marcus teoriza que Courtney sentia alguma inveja em relação às conquistas e amizades anteriores de Kurt; os maiores ataques de Courtney Love às Riot Grrrl tinham como alvo Kathleen Hanna e Tobi Vail, das Bikini Kill, uma das melhores amigas de Kurt e a sua ex-namorada, respetivamente. «A Courtney deixou-me uma mensagem incrivelmente abusiva no atendedor de chamadas», acrescenta Susan Silver em “Grunge Is Dead”. «Mais que outra coisa, era patética: nomeou todas as mulheres que tinham sido amigas do Kurt, e que ela sistematicamente removeu da sua vida. Sentia-se ameaçada por ele ter amigas».
A entrevista à “Vanity Fair” não aumentou apenas a paranóia de Courtney, mas também a de Kurt, cada vez mais isolado do mundo devido ao vício. O medo de poder vir a perder a filha deixou-o desesperado, chegando mesmo a pensar suicidar-se. De acordo com Charles R. Cross, o casal havia feito uma promessa: caso Frances fosse levada por assistentes sociais, os dois matar-se-iam juntos. «Courtney estava transtornada com o artigo da revista, mas não a ponto de se suicidar. Tentou chamar Kurt à razão, mas ele estava ensandecido de medo», escreve. Courtney não seria a primeira junkie a ser mãe, mas naquele momento era a mais mediática, e o casal tornou-se conversa de rua não pela música, mas pela sua vida pessoal. Até Axl Rose, que nunca nutriu particular carinho por Kurt ou por Courtney (embora gostasse da música dos Nirvana), se juntou á discussão, dizendo durante um concerto que, caso Frances nascesse deformada, deveriam ambos ser presos.
Frances Bean Cobain acabou por nascer saudável, a 18 de agosto de 1992. Mas os medos do casal concretizaram-se apenas dois dias depois, quando uma assistente da Protecção de Menores do município de Los Angeles os visitou no hospital. A conversa tornou-se imediatamente violenta. O município queria que Frances fosse retirada à família, e que Kurt e Courtney fossem considerados inaptos a tomar conta da própria filha, uma decisão quase toda ela baseada na entrevista à “Vanity Fair”. Quando saiu do hospital, três dias após o parto, Courtney não pôde levar Frances consigo; a bebé teve que ficar sob observação médica e só lhe foi dada alta dias mais tarde, tendo sido entregue aos cuidados de uma ama.
"Slut me open and suck my scars"
Só em março de 1993 é que a Kurt Cobain e Courtney Love foi entregue a custódia total sobre a filha, já depois de o casal se ter mudado para Seattle e depois de Kurt ter sido obrigado a cumprir um programa de reabilitação de 30 dias. O programa de nada serviu; Kurt continuou a consumir drogas, e os seus problemas com a heroína iam aumentando de intensidade. Em junho, Kurt é preso após uma discussão com Courtney, durante a qual a deitou ao chão, provocando-lhe um pequeno arranhão. Acaba detido pela polícia, mas o casal fez depressa as pazes. Um mês após o incidente, Kurt descreveu o seu casamento ao jornalista Gavin Edwards como «uma roda-viva de emoções». «Discutimos e amamo-nos ao mesmo tempo. Quando estou zangado com ela, grito-lhe, e isso é saudável».
Claro que existia amor, e o primeiro single de “In Utero”, 'Heart-Shaped Box', comprovou-o. Influenciado por uma pequena caixa em formato de coração, que Courtney lhe havia oferecido, Kurt fez da sua esposa o primeiro single do sucessor de “Nevermind”, e sucesso imediato nas rádios. De acordo com o website “Genius”, a famosa frase do refrão – Forever in debt to your priceless advice – era bastante utilizada por Kurt nas discussões entre o casal e, já em 2012, Courtney alegou que 'Heart-Shaped Box' se referia à sua... vagina.
Porém, há quem diga que existia um véu enorme a cobrir esse mesmo casamento. Como Kim Gordon, que encontrou Kurt nos bastidores de um concerto dos Sonic Youth em Seattle. O líder dos Nirvana ter-se-á queixado de que Courtney achava que a sua própria filha gostava mais do pai do que dela. «Lembro-me dessa conversa como se tivesse sido ontem, do quão reveladora era, mostrando, em primeiro lugar, como o Kurt não tinha ninguém com quem se sentisse suficientemente confortável para pedir conselhos; em segundo lugar, como a Courtney achava que as coisas só giravam à sua volta; e finalmente, que o Kurt passava, provavelmente, mais tempo com a Frances do que a Courtney», escreve a baixista em “A Miúda da Banda”.
Dan Raymond, amigo dos Melvins, vai mais longe: em “Everybody Loves Our Town”, alega que Kurt Cobain, que estava à altura a produzir o álbum “Houdini”, pretendia divorciar-se de Courtney. Um conselho que Buzz Osbourne, líder do grupo e amigo de longa data de Kurt, também lhe ofereceu na última vez que com ele privou, após um concerto em Munique. «Disse-lhe que o que ele devia fazer era entregar tudo [a Courtney]. Se precisasse de dinheiro, fazia uma digressão a solo, tocava guitarra acústica, e acabava bem. Ele sentia-se preso. Ela envergonhava-o. Ele queria o divórcio».
O que quer que se passasse na cabeça de Kurt Cobain, no que à sua relação com Courtney Love dizia respeito, só ele o sabia. Que se encontrava deprimido, é um facto; foi o que o levou a tentar suicidar-se em Roma, primeiro, ingerindo uma grande quantidade de comprimidos, e em Seattle, pouco depois, apontando uma arma à cabeça. No seu relatório, os agentes que então o visitaram escreveram que Kurt «não estava suicida nem queria magoar-se», acrescentando que o músico «afirmou ter-se trancado no quarto para se afastar de Courtney».
Courtney, a braços com os seus próprios problemas e questões profissionais – tinha voltado a consumir drogas, e estava a trabalhar no sucessor de “Pretty On the Inside”, “Live Through This” – não tinha forma de travar Kurt. «A maioria das conversas entre os dois transformavam-se em discussões. O distanciamento entre o casal fez Kurt privilegiar Dylan, que, pelo menos, não lhe dava sermões», aponta Charles R. Cross. A sua amizade com Dylan Carlson leva-o até a cometer pequenos delitos, como o roubo de um carro. «Eu tinha um marido milionário que andava por aí a roubar carros», lamenta Courtney em “Mais Pesado Do Que o Céu”. Na última intervenção realizada pelos amigos de Kurt para que este deixasse as drogas, o músico acusou-a de estar ainda pior do que ele no que ao vício dizia respeito, e rejeita a oportunidade de a acompanhar a Los Angeles, onde Courtney se iria tratar. «Nem sequer lhe dei um beijo ou tive hipótese de me despedir».
"Now she's fading somewhere in Hollywood"
Dias depois, a relação acabou por ter o final trágico que se lhe conhece, com o suicídio de Kurt Cobain. Na carta que deixou, pede a Courtney que siga em frente com a sua vida, por Frances, «cuja vida será muito mais feliz sem mim», afirmando sem rodeios que as ama a ambas. O choque que a morte de Kurt provocou levou, até, velhos inimigos a fazer oferendas de paz a Courtney, como Susan Silver. «Senti a mesma compaixão avassaladora por ela que tinha sentido por uma estranha, a Yoko Ono. Fiquei de coração partido por ela. Queria fazer ou dizer algo. No funeral, aproximei-me dela para lhe dar o meu apoio, mas ela reparou em mim, virou costas e foi-se embora», conta em “Grunge Is Dead”.
Apenas uma semana após a morte de Kurt, as Hole lançaram “Live Through This”, o seu primeiro álbum por uma grande editora; o timing não poderia ter sido pior – ou melhor, dependendo da pessoa a quem seja feita essa pergunta – mas catapultou Courtney e a banda para o estrelato, sendo considerado um dos melhores álbuns de 1994. Nos seus diários, Courtney escrevia que «nada será como dantes». Estava apenas meio certa: mesmo que agora merecesse algum respeito, solene pela sua viuvez, enorme pelo seu talento, a sua personalidade combativa iria isolá-la cada vez mais da cena grunge à qual esteve ligada, mesmo que não de forma umbilical.
Mark Arm lembra que Courtney ofereceu várias guitarras de Kurt aos membros dos Mudhoney, «como se estivesse a tentar comprar-nos». John Leighton Beezer, guitarrista de Seattle, diz, em “Everybody Loves Our Town”, que Courtney era «uma p*ta da imprensa», apontando o facto de ter andado a oferecer roupas de Kurt meras horas após a morte do marido a qualquer fã que por ali passasse: «Tinha acabado de perder o marido por causa de um suicídio violento, mas gostava da ideia de haver pessoas a querer ir vê-la». Slim Moon, fundador da editora independente Kill Rock Stars, de Olympia, lembra que Kurt «arranjou uma namorada que difamou publicamente os meus melhores amigos e a minha cidade». E Kim Gordon realça, em “A Miúda da Banda”, a agressão de Courtney a Kathleen Hanna após um concerto no festival Lollapalooza: «Isso determinou o tom do resto da digressão: a Courtney era uma pessoa a evitar e a ignorar, mais do que nunca».
Nos meses e anos subsequentes surgiram, de igual forma, as mais variadas teorias da conspiração acerca do papel de Courtney Love no suicídio de Kurt Cobain. Eldon Hoke, líder da banda punk The Mentors, mais conhecido como “El Duce”, afirmou antes da sua morte que Courtney Love lhe havia oferecido 50 mil dólares para matar Kurt Cobain. Ian Halperin e Max Wallace, dois jornalistas que investigaram a morte de Kurt, alegam em dois livros que Courtney mandou matar Kurt por motivos financeiros, relacionados com um hipotético divórcio. Hank Harrison, pai de Courtney, partilhou a sua crença de que esta tinha motivos para matar Kurt. Dois documentários, “Kurt & Courtney” e “Soaked In Bleach”, analisam essas mesmas teorias.
Claro que uma teoria da conspiração nada é sem provas, e no caso da morte de Kurt Cobain a esmagadora maioria das mesmas aponta para suicídio. Todos os artigos, livros e declarações feitas nesse sentido só têm servido, grosso modo, para manter manchada a imagem de Courtney – que pode ser muitas coisas, a nível de personalidade, mas não é uma assassina. Eric Erlandson explica, em “Everybody Loves Our Town”, que Courtney Love faz parte de um arquétipo muito específico de mulher: aquela que destrói, aquela que é uma espécie de Medusa, uma Eva que provoca em última instância a queda do homem (Yoko Ono foi outra). «As pessoas têm tendência a não gostar desse tipo de mulher», afirma. «No fundo, ela é apenas uma pessoa com o seu próprio karma, a sua própria vida e as suas próprias experiências». A baterista Patty Schemel relata que, durante um concerto das Hole, alguém atirou cartuchos de caçadeira vazios para o palco. «Magoou-me, mas nem sequer consigo imaginar o que a Courtney terá sentido», nota. E Kim Gordon, que nos dias que correm não nutre qualquer simpatia por Courtney (que até já a ameaçou de pancada), escreve no seu livro que a artista é, no fundo, um produto dos media: «a princesa punk, excitante e sombria, que se recusava a jogar segundo as suas regras». Ou talvez seja só uma mulher que procurou a fama, encontrou-a, e rapidamente percebeu que havia um outro lado – o lado que faria com que, enquanto existisse, nunca mais pudesse ser uma mera cidadã anónima.
Ao longo de 2021, o SAPO24 publica uma série de artigos focados no grunge, fenómeno e género musical que atingiu o seu apogeu há precisamente trinta anos: “1991: E Tudo o Grunge Mudou”. Acompanhe-nos nesta viagem.
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