Para que é que aquele membro da elite intelectual do Peru, José Durand Flores, lhe teria ligado? Tinham-lhe dado o recado na venda do seu amigo Collau, que era também um quiosque de revistas e jornais, e por sua vez ele também ligou, mas ninguém

atendeu o telefone. Collau disse-lhe que fora a sua filha Mariquita, com poucos anos, quem recebera o recado, e que talvez não tivesse entendido os números; voltariam a telefonar mais tarde. Então aqueles animaizinhos obscenos começaram a perturbar Toño porque, dizia ele, perseguiam-no desde a sua mais tenra infância.

Para que é que ele lhe teria ligado? Não o conhecia pessoalmente, mas Toño Azpilcueta sabia quem era José Durand Flores. Um escritor reconhecido, ou seja, alguém a quem Toño admirava e detestava ao mesmo tempo, pois estava lá no alto e era referido com os adjetivos de «ilustre letrado» e «célebre crítico», os elogios habituais que tão facilmente ganhavam os intelectuais que neste país pertenciam àquilo que Toño Azpilcueta denominava «a elite». O que é que aquela personagem tinha feito até então? Tinha vivido no México, é claro, e fora nada mais, nada menos do que Alfonso Reyes, ensaísta, poeta, erudito, diplomata e diretor do Colegio de México, a fazer o prólogo da sua célebre antologia Ocaso de sirenas, esplendor de manatíes, que lá lhe editaram. Dizia-se que era especialista em Inca Garcilaso de la Vega, cuja biblioteca tinha conseguido reproduzir na sua casa ou num arquivo universitário. Era bastante, claro, mas também não era muito e, afinal de contas, era quase nada. Ligou outra vez e voltaram a não atender. Agora eles, os roedores, estavam ali e continuavam a mover-se por todo o seu corpo, como de cada vez que se sentia excitado, nervoso ou impaciente.

Toño Azpilcueta tinha pedido na Biblioteca Nacional do centro de Lima que comprassem os livros de José Durand Flores, e apesar de a menina que o atendeu ter dito que sim, que assim fariam, nunca chegaram a adquiri-los, de modo que Toño sabia que se tratava de um académico importante, mas desconhecia porquê. Estava familiarizado com o seu nome por uma coisa estranha que atraiçoava ou desmentia os seus gostos forâneos. Todos os sábados, no jornal La Prensa, publicava um artigo em que falava bem da música crioula e até de cantores, guitarristas e tocadores de cajón como Caitro Soto, acompanhante de Chabuca Granda, coisa que fazia com que Toño sentisse alguma simpatia por ele. Em contrapartida, pelos intelectuais requintados que desprezavam os músicos crioulos, aos quais nunca se referiam nem para os elogiar nem para os crucificar, sentia uma enorme antipatia — que fossem para o inferno.

Rui Cardoso Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 17 de julho, uma quarta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu novo romance "As melhoras da morte", editado pela Tinta-da-China.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

Saiba mais sobre o autor e obra aqui.

Toño Azpilcueta era um erudito na música crioula — toda ela, a costeira, a serrana e até a amazónica —, à qual tinha dedicado a sua vida. O único reconhecimento que tinha obtido — dinheiro não, já se sabe — era ter-se convertido, sobretudo desde a morte do professor Morones, o grande homem de Puno, no maior conhecedor de música peruana que existia no país. Tinha conhecido o seu mestre quando ainda estava no colégio de La Salle, pouco depois de o seu pai, um emigrante italiano de apelido basco, ter alugado uma casinha em La Perla, onde Toño viveu e cresceu. Depois da morte do professor Morones, ele converteu-se no «intelectual» que mais sabia (e mais escrevia) sobre a música e as danças que compunham o folclore nacional. Estudou em San Marcos e obteve o seu título de bacharel com uma tese sobre a valsa peruana que o próprio Hermógenes A. Morones dirigiu — Toño tinha descoberto que aquele «A» com um pontinho escondia o nome de Artajerjes —, de quem foi ajudante e discípulo predileto. De certa forma, Toño também tinha sido o continuador dos seus estudos e averiguações sobre as músicas e as danças regionais.

No terceiro ano, o professor Morones deixou-o dar algumas aulas e toda a gente esperava em San Marcos que, quando o seu professor se aposentasse, Toño Azpilcueta viesse a herdar a sua cátedra. Ele também assim julgava. Por isso, quando concluiu os cinco anos de estudos na Faculdade de Letras, continuou a investigar para escrever uma tese de doutoramento que se intitularia Os Pregões de Lima, e que, naturalmente, seria dedicada ao seu mestre, o doutor Hermógenes A. Morones.

Lendo os cronistas da colónia, Toño descobriu que os chamados «pregoeiros» costumavam cantar em vez de dizer as notícias e ordens municipais, de forma que estas chegavam aos cidadãos acompanhadas com música verbal. E, com a ajuda da senhora Rosa Mercedes Ayarza, a grande especialista em música peruana, soube que os «pregões» eram os barulhos mais antigos da cidade, pois era assim que os vendedores ambulantes anunciavam os «rosquetes», o «bizcocho de Guatemala», os «reyes frescos», o «bonito», a «cojinova» e os «pejerreyes». Eram esses os sons mais antigos das ruas de Lima. Já para não falar dos da «causera», do «frutero», da «picaronera», da «tamalera» e até da «tisanera».

Pensava nisso e abrasava-se até às lágrimas. Os filões mais profundos da nacionalidade peruana, esse sentimento de pertencer a uma comunidade unida pelos mesmos decretos e notícias, eram impregnados de música e cantos populares. Essa seria a nota reveladora de uma tese que tinha alinhavado numa carrada de fichas e cadernos, todos guardados zelosamente numa malinha, até ao dia em que o professor Morones se aposentou e o informou com cara de enterro de que San Marcos tinha decidido, em vez de o nomear a ele para lhe suceder, encerrar a cátedra dedicada ao folclore nacional peruano. Tratava-se de uma cadeira facultativa e a cada ano, de forma inexplicável, inaudita, tinha menos inscritos na Faculdade de Letras. A falta de alunos sentenciava o seu triste final.

A fúria com que Toño Azpilcueta ficou quando soube que nunca seria professor em San Marcos foi tal que esteve quase a rasgar em mil pedaços cada ficha e cada caderno que armazenava na sua mala. Felizmente não o fez, mas abandonou por completo o seu projeto de tese e a fantasia de uma carreira académica. Só lhe restou o consolo de se ter convertido num grande especialista na música e nas danças populares, ou, como ele dizia, no «intelectual proletário» do folclore. Porque é que Toño Azpilcueta sabia tanto de música? Não havia ninguém nos seus antepassados que tivesse sido cantor, guitarrista e muito menos dançarino. O pai, um emigrante de uma aldeiazinha italiana, empregado nos caminhos de ferro da serra do centro, tinha passado a vida a viajar, e a mãe tinha sido uma senhora que entrava e saía dos hospitais devido a muitos males. Morreu num ponto incerto da sua infância, e a recordação que dela guardava vinha mais das fotografias que o seu pai lhe tinha mostrado do que de experiências vividas. Não, não havia antecedentes na sua família. Ele começou sozinho, aos quinze anos, a escrever artigos sobre o folclore nacional quando percebeu que devia traduzir em palavras as emoções que os acordes de Felipe Pinglo e dos outros cantores de música crioula lhe causavam. Teve bastante êxito, aliás. Enviou o primeiro artigo para uma das revistas de vida efémera que se publicavam nos anos cinquenta. Intitulou-o «O meu Peru», porque tratava, precisamente, da casinha de Felipe Pinglo Alva em Cinco Esquinas, que ele tinha visitado com um caderno na mão que encheu de notas. Pagaram-lhe por esse texto dez sóis, que o levaram a acreditar que se tinha transformado no melhor conhecedor e escritor sobre música e danças populares peruanas. Gastou logo o dinheiro, juntamente com outras poupanças, em discos. Era o que ele fazia com cada solzinho que chegava às suas mãos, investi-lo em música, e assim a sua discoteca não tardou em tornar-se famosa por toda a Lima. As rádios e os jornais começaram a pedir-lhe discos emprestados, mas, como raramente lhos devolviam, teve de se tornar um sovina. Depois deixaram de o incomodar, quando trocou a sua valiosa coleção por materiais para fazer uma casinha em Villa El Salvador. Não fazia mal, disse para si mesmo, continuava a trazer a música no sangue e na memória, e isso era suficiente para escrever os seus artigos e perpetuar a linhagem intelectual do célebre natural de Puna Hermógenes A. Morones, que em paz descanse.

Livro: "Dedico-lhe o Meu Silêncio"

Autor: Mario Vargas Llosa

Editora: Quetzal

Data de Lançamento: 4 de julho de 2024

Preço: € 18,80

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

A sua paixão era única e exclusivamente intelectual. Toño não era guitarrista nem cantor, e nem sequer dançarino. Passava muitos apuros quando era jovem, com isso de não saber dançar. Às vezes, sobretudo nas peñas ou tertúlias aonde ia sempre com um caderninho de notas no bolso do fato, algumas senhoras puxavam-no e ele, assim como assim, dava uns passinhos na valsa, que era mais simples, mas nunca nas marineras, nos huainitos ou nessas danças nortenhas, os tonderos piuranos ou as polcas. Não tinha coordenação, os pés enredavam-se-lhe; uma vez ou outra até caiu — um papelão —, e por isso preferiu cultivar a má fama de não saber dançar. Ficava sentado, mergulhado na música, observando como homens e mulheres muito diferentes, vindos de toda a Lima, se fundiam num abraço fraterno que, tinha a certeza, confirmava as suas intuições mais profundas.

Apesar de os intelectuais peruanos que ocupavam cátedras universitárias ou publicavam em editoras de prestígio não lhe darem valor ou nem sequer saberem da sua existência, Toño não se sentia menos que eles. Talvez não soubesse muito de história universal nem estivesse a par das modas filosóficas francesas, mas sabia a música e a letra de todas as marineras, pasillos e huainitos. Tinha escrito uma série de artigos em Mi Peru, La Música Peruana, Folklore Nacional, esse repertório de publicações que só chegavam ao segundo ou terceiro número e que depois desapareciam, muitas vezes sem lhe terem pagado o pouco que lhe deviam. Um «intelectual proletário», que remédio!

Talvez não despertasse o respeito e nem sequer o interesse de intelectuais como José Durand Flores (para que é que estaria à procura dele?), mas sim o dos próprios cantores ou guitarristas interessados em serem conhecidos e promovidos, coisa que Toño Azpilcueta tinha passado anos a fazer, como testemunhavam as centenas de recortes que armazenava na mesma mala onde ganhavam bolor as notas da sua tese. Nalguns desses artigos restava a memória das peñas crioulas que, como La Palizada e La Tremenda Peña, dois locais que ficavam na Puente del Ejército, lá em Miraflores, tinham desaparecido. Felizmente, Toño fora testemunha dessas tertúlias. Frequentava todas as de Lima desde muito novo. Começou com quinze anos, quando ainda era quase um menino, e evocava-as para que a importante função que tinham cumprido não fosse esquecida. Por vezes um ou outro jornalista que queria escrever uma crónica de Lima procurava-o, e então ele marcava encontro no Bransa da Plaza de Armas para tomar o pequeno-almoço. Esse era o seu único vício, os pequenos-almoços do Bransa, que às vezes tinha de pagar pedindo dinheiro emprestado a Matilde, sua mulher.

Obtinha o seu verdadeiro salário dando aulas de Desenho e Música no colégio do Pilar, de freirinhas, em Jesús María. Pagavam-lhe pouco, mas educavam gratuitamente as suas duas filhas, Azucena e María, de dez e doze anos. Trabalhava ali há já vários anos e, embora não gostasse de ensinar Desenho, dedicava a maior parte do tempo à música, e, é claro, à música crioula, com a qual realizava esse trabalho pedagógico fundamental que era inculcar o amor pelas tradições peruanas. O único problema eram as enormes distâncias de Lima. O colégio do Pilar ficava muito longe do seu bairro, o que significava que ele e as suas duas filhas tinham de apanhar dois transportes todos os dias para lá chegarem; mais de uma hora de viagem, se não houvesse greves pelo meio.

Tinha conhecido a sua mulher pouco antes de ambos terem construído a sua casinha no descampado enorme que naqueles dias era Villa El Salvador. Quem haveria de dizer então que aquele bairro pobre veria chegar grupos de senderistas a querer deslocar os líderes daquele setor para controlar os habitantes? Inclusivamente os líderes esquerdistas, como María Elena Moyano, uma mulher corajosa que há apenas dois meses, depois de denunciar a arbitrariedade e o fanatismo dos senderistas, tinha sido assassinada de forma muito brutal num dos estabelecimentos do bairro. Desde que chegaram à zona, Matilde ganhara a vida como lavadeira e cerzideira de camisas, calças, vestidos e todo o tipo de roupas, um ofício que lhe dava os poucos centavos que lhes permitiam comer. A união com Toño funcionava mais ou menos bem e dava, se não para ter uma vida intensa, ao menos para subsistir. Tinham tido os seus momentos bons, sobretudo no princípio, quando Toño julgou que poderia partilhar com ela a sua paixão pela música. Apaixonara-a enviando-lhe acrósticos nos quais plagiava os versos mais inflamados das suas valsinhas preferidas, e chegou a pensar que aquelas palavras que brotavam da sensibilidade popular mais profunda tinham submetido o seu coração. Muito rapidamente, porém, se apercebeu de que ela não vibrava como ele com os acordes das guitarras, nem ficava com o fôlego entrecortado quando Felipe Pinglo Alva cantava com a sua voz de veludo aquelas estrofes que falavam de amargos sofrimentos devidos a amores mal recompensados. Convencido de que ela, em vez de vibrar com a música e fantasiar com vidas melhores e mais fraternas, se aborrecia, deixou de a levar às peñas e tertúlias, e com os anos começou a fazer a sua vida sozinho, sem lhe contar sequer o que fazia nem aonde ia aos fins de semana. Eram umas saídas geralmente castas, em que se entretinha só a conversar, a ouvir música crioula, a descobrir novas vozes e novos guitarristas — anotava tudo ao pormenor nos seus livrinhos —, e a continuar a admirar dançarinos e as suas figuras excêntricas. Já não bebia como outrora, sobretudo agora que tinha feito cinquenta anos e o álcool lhe arruinava o estômago. Apenas uma mulita de pisco ou — grande loucura — de cañazo. Nesses ambientes, Toño sentia exercer a sua autoridade porque normalmente sabia mais do que os outros e, quando lhe dirigiam perguntas, fazia-se um silêncio como se as respostas que dava fossem a voz de um catedrático numa universidade. Apesar de não ter publicado nenhum livro e os seus esmerados artigos apenas terem despertado a curiosidade de uns quantos, nunca dos insignes letrados, naquelas casaronas escuras decoradas com gravuras de tapadas limeñas e réplicas de varandas, onde se apalpava o verdadeiro Peru, o seu aroma mais puro e autêntico, ninguém gozava de maior prestígio do que ele.

Quando precisava de levantar o ânimo, dizia para si mesmo que acabaria o livro sobre os pregões de Lima e faria o doutoramento, e certamente encontraria uma editora que quisesse pagar-lhe a edição. Esse pensamento — que repetia às vezes como uma espécie de mantra — fazia-lhe subir o moral. Tinha saído para caminhar pelas ruas de terra de Villa El Salvador e já via a sua casa ao longe e, diante dela, a tasca e o quiosque de jornais do seu compadre Collau. Quando avançou mais uns cinquenta metros, avistou Mariquita, a filha mais velha dos Collau, que vinha ao seu encontro.

— O que é que se passa, meu amor? — disse Toño, dando-lhe um beijo na face.

— Estão a querer falar consigo ao telefone outra vez — respondeu Mariquita. — O mesmo senhor que ligou ontem.

— O doutor José Durand Flores? — disse ele, desatando a correr para que a chamada não caísse antes de ele chegar à venda de Collau.

— É mais difícil encontrá-lo a si do que ao presidente da República — disse uma voz bem confiante ao telefone. — Estou a falar com o senhor Toño Azpilcueta, não é verdade? 

— O próprio — confirmou Toño no aparelho. — É o doutor Durand Flores, não é? Peço desculpa por não me ter encontrado ontem. Liguei-lhe, mas penso que Mariquita, a filhota de um amigo, assentou mal o número. Em que posso ajudá-lo?

— Aposto que nunca ouviu falar de Lalo Molfino — respondeu a voz no auricular. — Estou enganado?

— Não, não… Lalo Molfino, foi o que disse?

— É o melhor guitarrista do Peru e talvez do mundo — exclamou com segurança o doutor José Durand Flores. Tinha uma voz firme, compulsiva. — Estou a ligar para o convidar para uma tertúlia esta noite, onde Lalo Molfino tocará. Não deixe de vir. Tem onde apontar a direção? Será em Bajo el Puente, perto da Plaza de Acho. Está livre?

— Sim, sim, claro — respondeu Toño, intrigado e surpreendido por um músico, supostamente tão talentoso, ter escapado ao seu radar. — Lalo Molfino… Não, nunca o ouvi. Irei com todo o gosto. Diga-me a direção, por favor. Por volta das nove, então, esta noite?

Toño Azpilcueta decidiu ir, mais interessado em conhecer o doutor Durand Flores do que o tal Lalo Molfino, sem imaginar que aquele convite lhe revelaria uma verdade que até então só intuía.