Sobre a bancada, Perpétua Sousa tem várias figuras inacabadas. A mesa da imaginária, que trabalha apesar das excursões que lhe entram loja dentro (literalmente), é uma montra do que há para fazer. Desde que em dezembro do ano passado a UNESCO distinguiu o figurado em barro de Estremoz como património imaterial da humanidade que Perpétua, a irmã e o sobrinho não têm mãos para dar conta das encomendas.
As prateleiras estão nuas. A pedir agora, só lá para agosto haverá boneco. Uma excursão da Póvoa de Varzim entristece-se com a rutura de stock. Uma Primavera, boneca icónica, que Perpétua estava a acabar, fora já reclamada por uma outra turista, ainda as flores lhe não tinham sido pintadas no arco.
A produção de figurado em barro de Estremoz integra o inventário nacional de património cultural imaterial desde 2014, mas foi desde o final do ano passado, quando a 7 de dezembro a arte foi distinguida como património cultural imaterial da humanidade pela UNESCO, que as mãos das irmãs Flores não mais se puderam medir.
Nove horas no atelier, mais trabalho para casa, tornam impossível o encher das prateleiras da loja, no Largo da República desta cidade eborense.
Antes disto, era uma arte moribunda — e menor. "Agora, foi um deslumbramento, porque a gente trabalha há quarenta e cinco anos nisto e ninguém se lembrava de que havia bonecos.” Agora, foi uma descoberta.
"A senhora com quem as minhas tias aprenderam era aí de uma olaria muito famosa, que já vinha do século XIX, a olaria Alfacinha. Há uma foto de uma feira aqui no Rossio, para aí nos anos 1940 em que a olaria de Estremoz era muito valorizada e havia muitas olarias. É engraçado porque no stand da feira estava uma grande bancada, cheia de peças de olaria, tudo muito bonito e depois estavam os bonecos no chão de terra, ninguém valorizava os bonecos", explica Ricardo Fonseca, sobrinho de Perpétua e Maria Inácia.
Feitos como há três séculos, os bonecos nascem como os homens. Da terra, desenha-se-lhes primeiro o vulto do corpo, o esqueleto que os porá de pé. De seguida, vêm as roupas, também de barro, consoante o boneco.
"Qualquer peça é feita por fases. Começa-se sempre pelo corpo nu e vai-se vestindo. Tem de ser feito por fases porque quando o barro está muito mole não se pode continuar, temos de esperar que seque um bocado, para ganhar consistência para poder continuar”, conta Ricardo.
“Portanto, fazer o boneco leva várias horas, mas o trabalho é faseado, não pode ser de seguida. Depois, a peça tem de secar durante algum tempo, pelo menos dois ou três dias, depois vai a cozer, durante um dia, cerca de dez horas, depois é pintado e o acabamento final é o verniz", já que estas peças só vão ao forno uma vez.
É isso que lhes garante as cores garridas logo à primeira pincelada. Pois as tintas aqui usadas, ao contrário das usadas nas porcelanas, por exemplo, mostram-se logo em todo o brilho, não precisando de uma ida final ao forno para abrir.
O garrido não é eterno. “Um presépio com oitenta anos não tem nada desta cor. Mesmo com trinta anos já altera muito", explica Perpétua. "Então se estiver em contacto com o ar, com o sol, altera muito mais depressa."
"As primeiras figuras que apareceram eram religiosas", conta Ricardo. Por isso, a origem está em "alguma necessidade de culto, até porque isto é uma arte popular e as peças [de arte sacra] que existiam na altura eram peças barrocas, muito caras, que o povo não conseguia comprar. Então, começaram a fazer, à semelhança das peças barrocas, coisas em barro — mas claro, peças mais toscas, inspiradas nas formas e nas cores das peças barrocas. Figuras de culto, como a Nossa Senhora da Conceição, Santo António, presépios. Mais tarde vieram aquelas que são as figuras de carnaval, as alegorias, por exemplo a Primavera, o Amor é Cego, que são figuras muito conhecidas, do século XIX."
Os Bonecos de Estremoz podem partilhar semelhanças com os de Barcelos ou, até, com a obra de José Franco, que no Sobreiro, em Mafra, montou uma aldeia saloia pontuada por idênticas figuras toscas. Porém, aqui no Alentejo, foram as ‘boniqueiras' quem, já no século XVIII, começou a fazer estas figuras.
"Estremoz era uma terra de olaria", explica Ricardo. "Isto é uma arte do povo, supostamente foram as mulheres dos oleiros que começaram. Oleiro era ofício de homens. Até havia uma lei em que as mulheres não podiam trabalhar o mesmo barro que os homens, está documentado". "Era, brigavam-se, não se podiam juntar. Houve uma altura em que houve até a revolta das mulheres", conclui Perpétua.
Perpétua e a irmã começaram a trabalhar nos bonecos como uma forma de ganhar dinheiro, ainda na adolescência. "Precisávamos de ganhar dinheiro e viemos para uma senhora que fazia os bonecos e depois fomos ficando", conta. "Trabalhávamos de dia, estudávamos à noite e foi assim a nossa criancice." "A nossa mocidade foi esta, a nossa brincadeira foi esta", diz Perpétua, hoje com 60 anos, enquanto passa o verniz numa Ceifeira.
"A senhora sempre nos disse assim: 'se vocês abalarem, eu deixo logo de trabalhar'... Olhe, fomos ficando, ela acabou por se reformar e nós, que tínhamos passado a maior parte do nosso tempo a trabalhar com ela, seguimos esta vida”.
Ricardo, como os primos, passava as férias no atelier. Foi o único que acabou por ficar e aprender a arte. "Começaram vir para aqui de miúdos, ele também tinha jeito e gostava e olha, foi ficando", conta Perpétua. "Ele é o continuador aqui dos bonecos."
Já não há muita gente a fazê-los. E os que há, para novos não vão. "Ainda hoje foi o funeral de um.” Atualmente, há sete artesãos a modelar estes bonecos. Outros quatro usam as técnicas tradicionais para criar peças contemporâneas.
Desde a elevação a património, só mudou o número de gente que os quer ter em casa. "Aumentou a procura, mas a produção mantém-se". explica Ricardo. "Como as coisas eram, continuam a ser" — segue Perpétua — "nós não podemos fazer mais, não há mais pessoas que queiram fazer e isto também não se aprende em meia dúzia de dias...". E, por isso, as prateleiras permanecem despidas.
"A gente já trabalha aqui desde gaiatas, é uma vida", desabafa Perpétua, acusando o cansaço, entre as encomendas que se avolumam e as excursões que entram e saem; saem e entram.
"Temos tido pessoas a pensar que temos uma casa cheia de bonecos [para venda], isto não pode ser assim, porque a gente para fazer um boneco leva mais de um dia. Depois é cozer, pintar".
"As pessoas não conhecem o processo", explica Ricardo. E em não conhecendo o trabalho, espantam-se com a falta de ‘stock’. "Logo a seguir ao processo da nomeação dos bonecos, as pessoas chegavam aqui e diziam, 'o que é que vocês estão aqui fazendo que não têm nada em casa?', queixa-se Perpétua.
"Não sabem o que é trabalhar os bonecos", atira. E, sem capacidade de resposta, só conseguem vender os bonecos por encomenda, pois desde dezembro do ano passado, altura da nomeação da UNESCO, que as prateleiras estão sem bonecos para vender.
"Ficaram muitas encomendas pendentes da altura, que agora têm ido acumulando com outras do início do ano". "A gente vai ali ver o livro... Não há assim muita capacidade". Em encomendando agora, consoante a peça, seriam precisos talvez dois meses para o boneco ser entregue.
Menos esperou um casal que passou de visita a Estremoz. Entre recomendações gastronómicas, lá caçaram a Primavera inacabada em cima da bancada de Perpétua, acompanhando, por cerca de uma hora, o processo de acabamento da boneca.
O futuro da arte vai tremido. "Os jovens não se interessam por isto", lamenta Perpétua. "As pessoas não se interessam. A câmara [de Estremoz] tem espaços onde ensinam. Vá lá ver quem é que lá vai…”. “A gente até poder vai assim. Quando não puder…"
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