Em Portugal diz-se que os gatos têm sete vidas, enquanto nos países anglo-saxónicos se diz que têm nove. No caso de Calvin não é seguro atribuir um número, mas a estatística prova que do alto dos seus 16 anos, mais de 80 se fosse uma pessoa, já bateu todos os recordes. E as peripécias são tantas, que a dona decidiu juntá-las e contá-las num livro.
Quando mudaram de casa, o primeiro telefonema que receberam foi da morgue. Aconteceu quando a família lanchava pacatamente no jardim, e seria para sempre das conversas mais bizarras que teriam na vida: "Está sim? Estou a ligar da morgue". Entraram em pânico. Demorou alguns minutos até perceberem que, afinal, não se passara nada de grave, apenas de diferente.
É que embora não pareça, por baixo da casa que habitam fica o Hospital de Santa Marta. E a morgue. Calvin passou ali o dia. "Tem estado sempre connosco, mas vamos mudar de turno e talvez fosse boa ideia virem buscá-lo". Calvin tem esta particularidade: gosta de hospitais. E visita vários com assiduidade, como um médico que faz urgências, passando ora pelo serviço de cardiologia, ora pelo serviço de neurocirurgia, uma vez nos Hospital de Santa Marta, outra no Hospital de Santo António dos Capuchos, outra onde a vontade ditar. Se calhar, foi essa uma das suas profissões noutra qualquer encarnação.
A chapinha prateada que traz ao pescoço presa na coleira com o nome Calvin gravado de um lado e o número de telemóvel dos donos do outro ajuda a controlar os danos. Porque este é um gato que gosta de passear. E de andar de transportes públicos, sempre sem pagar bilhete, claro está.
Certa vez, Calvin saiu de casa e ficou desaparecido durante seis meses. Um susto. A dona, Filomena Lança, conta que pode ter perdido a identificação em alguma luta entre gatos de rua. A verdade é que quando se mudaram, os novos inquilinos não eram muito bem vistos por alguns vizinhos. Não os felinos, mas os humanos. "Cheguei a apanhar grandes descomposturas senhoras já com alguma idade no meio da rua. Ralhavam comigo e diziam-me: "Se querem ter animais, tratem-nos bem. E vocês não tratam bem o vosso animal, que devia estar em casa, não na rua. Anda por aí e ainda acaba atropelado e morto". As pessoas não gostavam. Uma senhora chegou mesmo a arranjar uma coleira para o Calvin, achando que estava a proteger o gato, maltratado, achava ela, e levou-o para sua casa muito tempo".
Mas Calvin é mesmo assim: sociável, vadio e aventureiro. E não é de agora, é de sempre. Aliás, com a idade só piora (ou melhora, tudo depende da perspectiva). Calvin foi parar às mãos de Sérgio, marido de Filomena, era ainda pequenote. Em gatinho e antes de se mudar para o novo bairro, há cerca de 12 anos, vivia na rua de São Bento, onde já era costumeiro nas diabruras, que veio a aperfeiçoar com o tempo. Foi em Santa Marta que começaram as maluquices a sério. Para o prender em casa, os donos decidiram colocar uma vedação alta de metal a toda a volta dos muros do jardim, com arame farpado no topo. "Meia hora depois de termos a vedação posta o gato tinha fugido". Calvin é um equilibrista, um artista de circo e há vídeos no Facebook que provam a agilidade do "velhinho". De maneira que as chamadas de telefone mais improváveis continuaram a chegar.
"Já o fomos buscar aos sítios mais estranhos", diz Filomena. Nesta resposta leia-se: às lojas mais chics da Avenida da Liberdade, onde se instala em tapetes felpudos ou em confortáveis maples e faz as delícias de clientes e transforma a vida de empregados num inferno (ou vice-versa). Esta fase foi particularmente angustiante para todos, sobretudo para o segurança do Tivoli, que certa vez telefonou a avisar: "Fico com pele de galinha quando vejo o gato a atravessar a Avenida, mas o que é certo é que só passa quando o sinal está verde para peões...".
Numa outra ocasião telefonaram a dizer: "Olhe, o gato está aqui em casa, já comeu e está bem. Não se importa que fique a dormir cá esta noite? É que a minha filha está tão encantada com ele..." E lá ficou, na condição de na manhã seguinte o recambiar para casa. Porque Calvin sabe muito bem o caminho de volta para casa, não precisa que o vão buscar. A não ser... A não ser quando precisou.
O sítio mais longe onde já foi encontrado foi em Santo António dos Cavaleiros, concelho de Loures. "Também foi um telefonema engraçado", recorda Filomena. Nesse dia, Sérgio recebe uma chamada de um senhor já não muito satisfeito: "Tô, fala do talho do Luís". "De onde?" "Do Luís, não está a ver?! Aqui, o talho da esquina". E o Sérgio a leste, sem saber quem era o Luís e menos ainda o talho. Do outro lado, um homem com uma voz cada vez mais irritada: "Porque abandonam o animal", assim e assado, e o Sérgio a puxar conversa, a ver se consegue perceber alguma coisa do que se passa. E percebe. Luís é dono de um talho central em Santo António dos Cavaleiros e achou que Sérgio, dono de Calvin, o gato que estava ali no seu estabelecimento comercial a comer do bom e do melhor, seria das redondezas. Não era. Como lá foi parar ninguém sabe, apenas desconfia, mas a verdade é que nesta altura Calvin Esparguete era já amigo de todos os lojistas da praceta, incluindo a cabeleireira, que todos os dias lhe dava leite e outras iguarias mais.
Com Calvin vivem mais duas pacatas felinas, Yaya e Gatinha, que preferem ficar sossegadas no seu canto a meterem-se em apuros. E só por este motivo Calvin Esparguete nunca passará a trilogia, embora este gato, sozinho, apronte por vários. E este é o objectivo do livro, contar as histórias como se fossem contadas pelo próprio Calvin, que é quem as vive, e que é tão esperto que quando quer entrar em casa pela porta da frente é capaz de levar quem passa a tocar à campainha. Porque Calvin não é um gato qualquer, é um senhor gato.
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