Esta entrevista começou sem perguntas, mas com uma viagem. Destino: Sou Quarteira. Loulé, Algarve, para que não restem dúvidas. As coordenadas do movimento que é uma exposição, um festival e um documentário. Em doses iguais de envolvimento local e emocional. Começou na vontade de Dino D’Santiago, Naomi Guerreiro, Miguel Jacinto e Inês Oliveira. Começou no vazio à beira-mar que em outros tempos foi espaço de contraplacados, famílias e histórias de encontros geográficos e que em agosto dará lugar a dois palcos. Começou à mesa e terminou da mesma forma, semanas depois, já em Lisboa. Sem massada de peixe, sem espinhas.
O interlocutor: Dino D’Santiago.
Dino da Quarteira, do Porto, da Nova Lisboa. Dino dos Expensive Soul, dos Nu Soul Family, da Madonna. Dino do Bairro de Pescadores, da Operação Triunfo, do Tejo Bar. Dino do hip-hop, do funaná, do batuque. Dino dos Prémio MTV, dos Cabo Verde Music Awards, dos Prémios Play. Dino que não se conta apenas numa hora de conversa. Uma hora que recua várias vezes no tempo e nas moradas; que começa e acaba no espaço lusófono. Uma hora de memórias e promessas.
Muita gente pensa que és natural de Cabo Verde. Mas não, nasceste e cresceste na Quarteira.
Em Quarteira!
Em Quarteira! Começo bem.
Só os quarteirenses é que sentem isso. Quase toda a gente diz na Quarteira, mas é em. Se fores procurar, podes dizer das duas formas. Mas um quarteirense dirá sempre em.
Eu nasci em 1982 em Quarteira, mais precisamente em Faro — que era onde todos nós nascíamos. E fui logo para o Bairro dos Pescadores, onde o meu pai e a minha mãe, quando vieram de Cabo Verde, foram viver. Era um bairro de lata, de pescadores, que depois começou a ser povoado pela diáspora. Moçambicanos, guineenses, santomenses, angolanos e cabo-verdianos, na sua maioria.
Porquê Quarteira como destino na vinda dos teus pais para Portugal?
Acho que aconteceu tudo de forma muito natural. Primeiro, por ser uma zona próxima do mar e depois pelo passa a palavra. Veio alguém primeiro, que depois avisou os restantes familiares. Começas a ter a tua casa invadida por tios, primos. Eu vivi assim. Tive um tio, o meu tio Gabriel, que viveu em nossa casa até aos meus 12 anos de idade. Tal como na nossa casa, isso acontecia em quase todas as casas do bairro.
O que a motivou?
Trabalhar, numa altura em que muitos cabo-verdianos viajavam para a Europa em busca de um novo futuro. O meu pai veio primeiro, em 1974, e ainda trabalhou na zona de Sines. Muitas das pessoas que vieram nessa altura eram pedreiros ou serventes; estava a construir-se Vilamoura e era preciso mão-de-obra. Daí [irem para] o Bairro dos Pescadores, por ser entre Quarteira e Vilamoura.
Numa visita com jornalistas ao sítio onde se vai realizar, em agosto, o festival Sou Quarteira fizeste questão de mostrar a zona onde era o bairro e a linha que separa as duas localidades. Havia rivalidade entre Quarteira e Vilamoura?
Não consigo chamar de rivalidade porque o que existia era um sentido de superioridade por parte das pessoas de Vilamoura.
Por um contexto socioeconómico diferente?
Sim, é mais isso. E alguma indiferença. Depois, felizmente, na escola e no futebol convivíamos todos. Mas havia aquela fronteira, dos putos que iam para o Bairro dos Pescadores e os que não iam; quem tinha SAS [Sistema de Ação Social] e quem não tinha. E Quarteira é isto, a mistura. É a zona do Algarve mais eclética. Daí tantos slangs [calão] que ficaram na nossa linguagem.
Consegues dar algum exemplo?
Ficaram até hoje. Não vais para casa, vais para o teu kubiko; não vais vestir umas calças, vai vestir umas kalinas; não vais vestir uma t-shirt, vais vestir uma umbila; está frio, não vais vestir o teu casaco, vais vestir o teu kikuto. Muitas expressões são angolanas. Os cabo-verdianos vinham com a necessidade de aprender a falar português e procuravam não falar crioulo. Mas imagina, em casa, até hoje, e já tenho 36, nós falamos em português e os meus pais em crioulo. Eles falam em crioulo e nós [Dino e os irmãos] respondemos em português. Isso acontece em casa de quase todos os cabo-verdianos, daí não se perder a identidade com a língua. Mas também traz o inverso. Há os que estão cá há quarenta anos e por só falarem crioulo não conseguem comunicar fora de casa. Há um motivo de grande orgulho por se ser cabo-verdiano, mas depois há aquele déficit de não aperfeiçoar a língua portuguesa.
O que é maravilhoso, e muito bonito de se sentir, é o espírito de camaradagem e de união. Daí eu sentir que sou muito feliz. Por isso é que não foi estranho quando fui viver para o Porto ou para Lisboa. Já conhecia essa realidade, a da mistura, que caracteriza Quarteira: entre ciganos, PALOPs, brasileiros, que vieram numa fase posterior, e mais recentemente, quem veio dos países de leste. Isso faz com que as crianças sejam de facto menos preconceituosas, tratam as coisas pelos nomes. Quando havia um adjetivo, como o Tiago 'Cigano', era porque havia seis Tiagos na mesma turma. Nunca aconteceu ser o Dino 'Preto' porque não havia outro Dino. Quando associavas à cor ou à etnia, fazias apenas porque havia um excesso de nomes iguais. É bonito, sentires isso. O próprio Tiago 'Cigano' assumiria isso: escreveria uma mensagem no seu 3310 com 'daqui Tiago Cigano'.
Como era o Bairro dos Pescadores?
Nunca falei muito sobre o Bairro dos Pescadores porque acho que só quem lá viveu... Imagina, mesmo em Cabo Verde ou em Angola não vi condições piores daquelas que vi lá. Por exemplo, não tinhas água potável, tinhas de ir buscar ao que nós chamávamos de a bica; três pontos de água com torneiras. Como viviam no bairro muitas famílias, claro que metiam-se mangueiras para não se ter de fazer sempre aquele percurso nos carrinhos de mão, que nós chamávamos de kangulo. Desde muito novos, tínhamos os deveres de casa, que passavam por lavar a loiça ou ir buscar água. Havia pessoal a puxar eletricidade, mas a maior parte já tinha contrato e tudo direitinho. Todo o dinheiro que algumas pessoas ganhavam era para mobilar a casa. Vias tudo horrível por fora, as casas eram cobertas com contraplacados coloridos para a Câmara não perceber que as paredes eram de betão — porque a condição para lá se viver era que as casas fossem somente de contraplacados. Havia casas realmente assim, de madeira e contraplacados. A minha e dos meus pais já não era, já tinha tijolos e azulejos. Lá está, eram pedreiros. Mas entrava água do mar quando a maré subia. Então imagina, as famílias gastavam o dinheiro em mobília e de repente vinha o mar e invadia as casas. Aconteceu, pelo menos, três vezes em nossa casa.
Vi muita gente morrer de overdose. O Algarve era o cemitério dos toxicodependentes de Lisboa. (...) Sempre fomos educados a nunca tocar nas seringas, mas também a não negar comida a um toxicodependente
O Bairro dura até quando?
Dura até ao final dos anos 90, ainda vi o Mundial de 1994 no Bairro dos Pescadores. Saí de lá com 15 anos.
[N.e - A demolição do bairro teve início em outubro de 1997. O último armazém foi demolido em 2011, como mostra este vídeo da autarquia]
O que é que aconteceu depois, as famílias do Bairro passaram para outros bairros da Câmara?
As famílias maiores foram, numa primeira fase, para o Bairro da Asa Branca. Nós, e outras famílias, ainda ficámos e, posteriormente, fomos para o Bairro da Abelheira. Mas é uma sensação estranha. Foi a primeira vez que tomei um banho de banheira... Trouxe coisas muito boas, mas toda a gente ficou em caixotes. Sentiu-se um índice de infelicidade muito superior; no Bairro dos Pescadores o pessoal era muito mais feliz. Jogávamos às quatro balizas, descalços. Cortavas-te no pé, na semana seguinte ias jogar outra vez e cortavas-te no mesmo sítio. Aquelas cenas. Mas vias coisas... Vi muita gente morrer de overdose. O Algarve era o cemitério dos toxicodependentes de Lisboa. Normalmente eram pessoas de famílias muito ricas e a vergonha fazia com quem os pais expulsassem os filhos de casa. Iam morrer no Algarve. Principalmente em Quarteira, que era uma zona de muito tráfico. Lembro-me sempre da Sandra, uma rapariga lindíssima. Eu era puto, vi como ela chegou ao bairro, não sabia que era toxicodependente, e depois vi-a morrer. Lembro-me da Kiki, amiga de uma amiga, a Carla. Viemos um dia da escola e ela tinha uma seringa no pescoço. Morreu de overdose. Sempre fomos educados a nunca tocar nas seringas, mas também a não negar comida a um toxicodependente. Havia uma sensibilização das famílias para que aquelas pessoas não se sentissem excluídas. Vias aquelas pessoas tão cultas, notavas na forma como falavam... 'De onde é que és?'. 'Sou de Cascais'. E eu nunca tinha vindo a Cascais, nem sabia onde era. Mas pela forma como falavam ficava com vontade de um dia conhecer. 'Porque é que te vieste embora?'. Aí notavas a vergonha. 'Sempre gostei do Algarve, vinha sempre passar férias com a minha família, então vim para aqui'.
Estamos a falar de que altura, final dos anos 80?
Entre 1989 até 1996-97.
Como é que eras na escola? Sei que o teu percurso sempre esteve associado às Artes.
Cresci rodeado de música e das artes. O meu pai era um amante da língua portuguesa, da gramática e da matemática. Mas sempre tive uma certa aversão à matemática e à geometria descritiva. Sempre fui muito mais mão livre e fã da história da arte. Aliás, durante um período da minha vida, quis ser professor de história porque tinha uma professora que puxava por mim, a professora Carla Candeias. O período da I e da II Guerra Mundial, la belle époque... Esse período ainda hoje é o momento da História com que vibro. Não gosto de recuar muito mais, porque ia bater à escravatura e tenho aí a minha fronteira. Em Quarteira tivemos bons professores — felizmente ainda dão aulas — que nos levaram a outros sítios, como a Barcelona para conhecer o Museu de Salvador Dalí, de quem sou muito fã. Também viemos a Lisboa, que tive uma professora que queria que eu viesse estudar para a Ar.Co. Mas entretanto veio o serviço militar e eu não tinha indicado que estava a estudar; sou da geração de 82, era necessário ir dar essa indicação à junta de freguesia. Não disse e então veio uma carta para casa a dizer que eu já estava dado como desertor e que cada dia fora representavam três dias de prisão militar. A minha mãe chorou, foi assim um drama...
Sempre que escrevo algo, procuro voltar na máquina do tempo e pensar: 'Lembra-te que vieste dali. Como tu há vários espalhados pelo mundo, que vivem nas mesmas condições, só têm nomes diferentes'
Como é que isso se resolveu?
Fui para o Entroncamento, para onde tinha sido destacado. Cheguei, expliquei a situação, disse que estava a estudar e levei os comprovativos todos... 'Mas agora você já não pode fazer nada, tem de cá vir, fazer a recruta...'. E eu: 'mas tenho o casamento da minha prima, vou ser padrinho'. E eles deram-me mais três meses.
Mas tiveste de cumprir o serviço militar?
Cinco meses. Fui para Mafra, para a Infantaria, mesmo em frente ao Convento de Mafra. Por volta de 2001. Fiz lá o meu serviço, mas o que me safou foi pintar. Fazia vários desenhos. 'Eia, camarada Pereira, dá para fazer mais um?'. Então substituí aquilo por dias fora, tive essa sorte. Não tive a de outros que não saíram de lá, praticamente.
Voltando na máquina do tempo... No Bairro dos Pescadores, ficávamos muitas vezes trancados em casa, às vezes com um calor tremendo no verão. Não havia dinheiro para pagar a amas. Nós ficávamos os três, eu e os meus irmãos, fechados em casa e a grande preocupação dos meus pais era se ligávamos o fogão ou o gás. Estavam sempre com o coração nas mãos. Mas tínhamos uma vizinha que olhava por nós. Nessa altura tive as minhas primeiras fugas pela janela porque via os meus amigos todos a jogar à bola, livres. Houve um período em que me sentia revoltado com os meus pais. 'A mãe do outro é mais fixe!'. Tipo essas coisas duras que dizes aos teus pais por ignorância. O que é certo é que a maior parte desses meus amigos, ou foram presos, e ainda estão, ou morreram ou estão fugidos. Seguiram outros caminhos porque não tiveram ninguém que os prendesse, no bom sentido, em casa. Imagino hoje como é que não seria difícil para os meus pais ouvirem-nos a dizer aquelas barbaridades, e eles só queriam o nosso bem. Isto são cenas que não se esquecem. E sempre que escrevo algo, procuro voltar na máquina do tempo e pensar: 'Lembra-te que vieste dali. Como tu há vários espalhados pelo mundo, que vivem nas mesmas condições, só têm nomes diferentes'.
Perguntou-me como é que me chamavam em Cabo Verde. 'Dino do Jorge ou da Andresa ou Dino D'Santiago'. Porque é sempre pelo sítio de onde és ou de quem és filho. E assim ficou. Dino D'Santiago
Por falar em nomes, Dino D'Santiago não é o teu de batismo. Esse é Claudino Pereira. De onde vem o Santiago, da relação com Cabo Verde?
É uma homenagem, e vem de quando decidi começar a cantar em crioulo e a escrever funanás e batuques. Foi muito inspirado nas conversas que tinha com a minha avó Teresa. Já numa fase posterior, com a primeira ida a Cabo Verde, por volta de 1989, foi muito traumatizante. Vinha do Bairro dos Pescadores, não havia nada, e fui para o interior de Santiago, onde menos havia.
No final dos anos 80 visitas Cabo Verde pela primeira vez, é isso?
Fomos todos, a minha família toda.
Foi o primeiro regresso dos teus pais desde que vieram para Portugal?
O primeiro regresso, para passar o Natal em 1989. Para mim foi um choque. É que pelo menos nós, no Bairro dos Pescadores, tínhamos luz, lá não. Era tudo à base de candeeiros de petróleo. Água também não havia, e não era tão próximo como ir buscar à bica, tinhas de andar não sei quantos quilómetros. Depois, a Igreja, família bem crente, era no cume da montanha. Tínhamos de ir a pé, quando não havia um burro que nos levava. Todas aquelas coisas foram tão traumatizantes que disse 'nunca mais'. E esse nunca mais resistiu vinte e tal anos, só voltei outra vez em 2010.
Tive muito medo. Medo dos conservadores, do Tito Paris, do Zeca di Nha Reinalda, do Dany Silva. Achei que iria perder o apoio deles se introduzisse um lado mais eletrónico nos nossos ritmos. Mas foi precisamente o contrário
Pelo choque?
Pelo choque, pela realidade da vida no campo... Rezavam o terço todos os dias e eu adormecia a meio... Já em adulto, quando o meu pai quis ir para lá viver, quis compreender porque é que ele queria ir para ali. Não compreendia. Quando lá voltei, a dinâmica era a mesma. Já havia luz, água ainda não havia. Mas comecei a compreender a cena do terço; rezavam, mas depois juntavam-se todos para um jantar. E era ali que aconteciam as conversas, que se sabiam as novidades de quem está fora. Comecei a perceber as dinâmicas, que não eram aquelas que os meus pais e tios tinham cá. A prioridade é o campo, porque é uma família de camponeses. E comecei a escrever, a ouvir as histórias da minha avó — hoje com 95 anos, já não trabalha no campo, mas trabalhou até aos 92 —, e, inspirado nelas, comecei a escrever mais.
Quando mudei de nome... O 'Santiago' foi uma sugestão do Ludgero [Rosas], na altura da Operação Triunfo. Já tinha tido o projeto Dino And The Soulmotion e ele perguntou-me como é que me chamavam em Cabo Verde. 'Dino do Jorge ou da Andresa ou Dino D'Santiago'. Porque é sempre pelo sítio de onde és ou de quem és filho. E assim ficou. Dino D'Santiago.
Em Cabo Verde, quando comecei a usar esse nome, o pessoal até pensava que eu vivia ou era de lá. Porque o crioulo que canto é um crioulo antigo e de camponês. 'Esses miúdos do interior afinal ainda continuam...', diziam. Porque havia a luta entre a nova geração, que só queria o hip-hop, e os conservadores. Cabo Verde é esse fosso, entre a música tradicional, o hip-hop, e no meio a kizomba. Esses três universos lutam que é uma coisa doida. E finalmente já começam a colidir. Este meu projeto faz parte dessa fusão. Do hip-hop, que vem de Quarteira, com o Miguel do 'Sou Quarteira', e dessa vontade de voltar às minhas raízes. Mas já tinha muitos fãs em Cabo Verde por já ter temas com o Valete e com o Sam the Kid, o pessoal era muito atento ao panorama do hip-hop nacional. Mas misturar esses dois mundos só o consegui a partir de 2016, quando conheci o Kalaf. 'Tu sendo só Dino D'Santiago mais acústico estás a alienar toda uma geração que te viu nascer no hip-hop, e tu podes mostrar a essas pessoas que não precisam de fazer o hip-hop a la americana ou como os franceses, usando as mesmas fórmulas. Não, utilizemos os nossos ritmos, os nossos compassos e mudemos o rumo da nossa história'. E tive muito medo. Medo dos conservadores, do Tito Paris, do Zeca di Nha Reinalda, do Dany Silva. Achei que iria perder o apoio deles se introduzisse um lado mais eletrónico nos nossos ritmos. Mas foi precisamente o contrário.
Os Expensive Soul foram a minha escola; foi com eles que tive a certeza de que queria viver da música
Esse input veio todo do Kalaf?
Ele impulsionou-me e tornou-se no meu manager. Porque eu quis desistir várias vezes de fazer essa transição, mais do que uma vez, por receio. E ele foi determinante. 'Confia, confia'. O único pedido que fiz foi o de gravar tudo, em acústico, em cabo-verde, com a estrutura que tinha na cabeça e depois entreguei ao Kalaf. E o Kalaf deu ao produtor Paul Seiji, um inglês com ascendência japonesa, que inspirou muito o caminho dos Buraka Som Sistema. Ele foi um dos impulsionadores do break beat, no início dos anos 90, em Londres. Quando se reencontraram em Berlim, o Kalaf mostrou-lhe o meu projeto e convidou-o. Felizmente ele aventurou-se e aqui estamos.
Voltando ao teu percurso, quando é que saíste de Quarteira?
A forma como saí de Quarteira é muita bonita. Fui para a Operação Triunfo quase por acaso. Fui acompanhar uma amiga, a Carla de Sousa, ao casting da OP em Portimão para lhe dar apoio. Um dos câmaras viu-me a cantar e disse ao Virgul, porque o conhecia, para me dizer se não queria fazer também eu o casting. 'Não, não, tenho vergonha dessas coisas', disse logo. 'Sem compromisso', respondeu. Fui e cantei alguns originais e um tema dos Black Company. A Paula Oliveira e o Ruben Alves [professores da OT] gostaram de mim e fui passando. Cheguei a Lisboa e passei. Quando dei por mim estava no programa sem saber como. Não tinha experiência nenhuma, só a experiência de compor para hip-hop. Tive professores, como a Maria João [cantora], que me abriram horizontes e mostraram coisas além dos que costumava ouvir. Foram eles que me fizeram começar a gostar de música portuguesa. Eu não ouvia na altura. Isso já com vinte anos. Ouvia coisas como Rui Veloso, mas não ouvia os clássicos, como fado. E hoje sou um fã incondicional. Convivi com a Fábia Rebordão e com o Francisco Rebelo de Andrade, irmão da Carminho, que [já na altura] ouviam e cantavam muito bem fado. E comecei a sentir aquilo, 'epá, isto afinal toca mesmo aqui' [leva a mão junto do peito]. Só a morna é que fazia aquilo comigo.
Como é que é possível, num país que nem tem um milhão de pessoas, encontrar pelo menos um cabo-verdiano nos meus concertos fora
E depois da Operação Triunfo?
Depois da OP, voltei para o Algarve. Um dia, em casa do Virgul, no Monte da Caparica, onde ficava quando vinha a Lisboa, ele dá-me uma cena a ouvir. 'Olha aqui uma cena que estive a ouvir'. Eram os Expensive Soul, tinha saído, à altura, o "B.I.". E nós vibrámos com a voz do New Max. 'De Leça da Palmeira, onde é que fica isso?'. Ironia do destino, eles foram tocar a Faro e o Virgul ligou-me a dizer — ele, nessa altura, já era Virgul-Da Weasel. Nesse concerto tive oportunidade de ouvir a Marta Ren, que estava a fazer vozes para os Expensive. Depois do concerto, fomos a uma jam, e depois dessa jam o New Max contacta o Virgul a dizer: 'estamos a precisar de uma voz, achas que o teu amigo gostaria de se aventurar?'. O Virgul chega, senta-se com os meus pais e diz-lhes para não se preocuparem, que trata de tudo, paga casa, comida, o que for preciso. Dito e feito. Em 2004 vou para o Porto e ele encarrega-se de tratar de tudo. Inclusive, apresenta-me aquela que é hoje uma das minhas melhores amigas, a Maria Monteiro, e que me deixou ficar numa casa que ela comprou e que fui estrear.
Com os Expensive Soul estiveste quanto tempo?
Onze anos.
Há pouco tempo apercebi-me que eles já estão a fazer 20 anos de carreira. 20 anos!
Começaram em 1999, é inacreditável. E eles foram a minha escola; foi com eles que tive a certeza de que queria viver da música. Ouviam de tudo: de Curtis Mayfield a Isaac Hayes, de Marvin Gaye a Aretha Franklin, de D'Angelo a Erykah Badu, um leque de artistas que me inspiraram. Durante anos eu não larguei os headphones. Coisas que me ensinaram na Operação Triunfo, como a respiração, foi na estrada que aprendi — e depois ligava à Paula [Oliveira] a contar. O New Max foi um mentor inacreditável, se ele te diz que aqui está semitonado, é porque está. E depois tem argumentos para te explicar tudo. Sou muito fã dele, como produtor, como amigo, como músico. Admiro-o muito. Utilizei essa fórmula rigorosa de trabalho dos Expensive no meu universo. De nunca ser aquele gajo lazy, não! Sempre atento, sempre a tentar dar o melhor até ao fim. E cada vez que pisar o palco, honrá-lo por estar ali. Nunca pisei o palco a fazer um frete ou com medo; sou uma pessoa muito envergonhada, mas no palco não. Lá é onde consigo dar tudo de mim. Sofro de ansiedade por estar fora do palco. Confio muito que as pessoas me vão receber com amor em qualquer canto do mundo, e sempre assim aconteceu. Em 2013 quando faço o "Eva" e assino pela editora da Cesária Évora, a Lusafrica, viajo muito. Desde a Coreia do Sul ao Brasil; Estados Unidos, no Central Park — no mesmo festival onde, no dia a seguir tocava o Stevie Wonder —, muitos países da Europa — Alemanha, França, Luxemburgo, Polónia. Em todos eles senti o abraço que tinham pela música e pela história de Cabo Verde. Como é que é possível, num país que nem tem um milhão de pessoas, encontrar pelo menos um cabo-verdiano nos meus concertos fora. Fiquei muito surpreendido com isso. Mais, em quase todos, há um quarteirense. Como é que tu me explicas isto? [risos]. Isso despertou em mim um lado social e foi a partir de aí que nasceu o Sou Quarteira.
Já falei com o Miguel Jacinto e com a Inês Oliveira [ver caixa], mas fala-me também deste movimento, que todos sublinham, não é só um festival.
O Sou Quarteira nasce de uma música, que comecei a escrever numa madrugada...
[Dino começa a cantar]:
Sou o cheiro da Avenida no Verão
Sou o Blackjack da zona, e então?
Sou os doces da paixão, sem dizer não
Sou as festas da Checul no seu Salão
Sou o amor de Pedro entre Laura e Diniz
Sou o pastel da beira-mar, que sempre quis
Sou o segredo bem guardado, que ninguém diz
Sou a beleza intemporal da Beatriz
Só não sou filho único
Só não sou filho único
Só não sou filho único
Não sou
Mas sentindo-me único
Em Quarteira
Sou a paz entre Quarteira e Loulé
Sou tão fresco quanto o peixe do cota Zé
Sou o puto que escuta 'sai daqui mazé'
Sou a toalha onde o pescador seca o seu pé
Sou o Freestyle da Asa Branca à Abelheira
Sou Tubarões e Quarteirense na brincadeira
Sou o Cavalo Preto que brilhou em Leça da Palmeira
Sou Carioca e Sam Alone
Sou Quarteira
Esses Tubarões são o clube de basquetebol de Quarteira não a banda cabo-verdiana, certo?
Não, não. São o clube. O cavalo preto é a nossa praia que separa a Quinta do Lago de Quarteira; os doces da paixão, são os doces da senhora que os vendia em frente à nossa escola, a Maria Paixão; Blackjack era a nossa discoteca, que ficava no Casino de Vilamoura — só podíamos entrar acompanhados, e cada vez que entrávamos era um sonho, não saíamos da pista, só a beber Coca-Cola, n'é?. O pastel de nata da beira mar é uma das referências de Quarteira, o Sam Alone é o Apolinário e o Carioca é um rapaz que cresceu a cantar, a tocar guitarra e hoje perdeu a voz depois de uma operação às cordas vocais. O amor de Pedro entre Laura e Diniz são os amores entre a Escola São Pedro do Mar, que tem mais de quarenta nacionalidades, que fica entre a Secundária Laura Aires e o 1º. Ciclo da D. Diniz.
Mostrei o tema ao Miguel e à Naomi, toquei para a minha mãe e partilhei no Facebook. Horas depois já tinha centenas de partilhas entre os quarteirenses espalhados pelo mundo e os que vivem na cidade. Isso levou à ideia do documentário; pedi ao Miguel ajuda num conceito e ele diz-me que fazia mais do que isso, que queria fazer parte desse movimento. A parte do festival foi um bónus para todo o movimento, a intenção era trazer pessoas que inspirassem os jovens da nossa cidade — e a maior parte, percebemos, eram músicos. Do Slow J ao Plutónio, do Richie Campbell ao Halloween. Aí pensámos: vamos dar um festival à cidade. Porque sempre que um quarteirese queria ir um festival, ia para o Sudoeste, Músicas do Mundo, em Sines, ou para o festival MED, em Loulé. Mas nada voltado para a cena urbana que é a cidade de Quarteira: amante de hip-hop, do afro, da kizomba, do hard-rock, do punk. É muito eclética a cidade. Então falámos com a Câmara e o presidente, por ser um amante da cultura, e vestir essa bandeira, disse logo que sim. Depois percebeu a dimensão, ficou assustado e pediu apenas para que não o desiludíssemos e que transformássemos tudo num movimento. E essa for a parte mais simples para nós.
Vais na rua e em Quarteira toda a gente te conhece. Deu para o perceber no pouco tempo que estivemos por lá.
É verdade. Imagina, cada vez que me acontece uma coisa boa, o primeiro pensamento que me vem é logo é: Quarteira. Na Operação Triunfo, a Junta de Freguesia oferecia o telefone para votarem em mim, para não sair. Quando fui para os Expensive Soul, tinha sempre quarteirenses na plateia. O meu primeiro concerto de Dino And The Soulmotion foi em Quarteira, com a cidade cheia. Gravo o meu disco "Eva", recebo nos Cabo Verde Music Awards o Prémio para Melhor Batuque e Melhor Álbum Tradicional, e os quarteirenses ficam muito felizes. Com os Nu Soul Family ganhamos o prémio da MTV [na categoria de Portuguese Best Act], e mais uma vez Quarteira a apoiar. Sinto que a cidade sempre celebrou cada coisa boa que me aconteceu. Com o fenómeno da Madonna, a cidade toda [abre os braços]...
Não foste cantar à festa de final de ano na sua casa, em Nova Iorque, porque tinhas um concerto em Quarteira.
E as pessoas até viram isso de forma negativa, o que não gostei. 'Dino rejeita ir a Nova Iorque por um concerto na sua cidade’.
Durante muito tempo, o destaque não era o Bairro do Aleixo nem o Casal Ventoso, era Quarteira. (...) Quando fui para a tropa, o pessoal achava que eu era bué perigoso
Essa reação veio das pessoas de fora de Quarteira, certo?
Sim, de fora. De Quarteira, não. Então... Essa foi mesmo das melhores passagens de ano que já tive em Quarteira. Foi inacreditável, e foi o primeiro mote de Sou Quarteira.
Claro que ficas naquela: 'será que estou a perder uma grande oportunidade?'. Mas só de pensar no que as pessoas iriam pensar se cancelasse, mesmo sabendo que algumas pessoas iam perceber e torcer que fosse porque coisas como esta podem mudar a tua vida... Mas a alegria daquelas pessoas quando subi a palco. Ali tive mesmo a certeza: 'Eu nunca vou sair daqui. Por estes eu vou fazer tudo'. Hoje estamos a conseguir elevar a cidade de uma maneira bonita, tantas vezes vista de uma forma tão negativa, tão rude.
Na apresentação do Movimento Sou Quarteira, o presidente da Câmara de Loulé referiu essa ideia várias vezes. A ideia de que a cidade era sempre trazida à conversa como o exemplo negativo. Podes explicar o que é que queria dizer com isso?
Imagina, durante muitos e muitos anos, especialmente durante os anos 90, se fores aos arquivos da RTP, quase todas as semanas saíam notícias sobre as mortes no Bairro dos Pescadores associadas ao tráfico de droga, as apreensões, a polícia militar a invadir o bairro... Durante muito tempo, o destaque não era o Bairro do Aleixo nem o Casal Ventoso, era Quarteira. Piorava no verão. O motivo, nunca percebi. Mais, a forma como cresceu urbanisticamente, à toa, como se fossem legos, também foi muito criticada. E ficou essa imagem. Quando fui para a tropa, o pessoal achava que eu era bué perigoso, vê lá.
E já levaste a Madonna a Quarteira?
Não, por acaso não levei, e é uma coisa que quero fazer. Prometi levá-la primeiro a Cabo Verde, mas vou levá-la de certeza a Quarteira.
A Madonna não ia gravar nada, estava a escrever um livro, estava a preparar um filme, mas a partir do momento que conheceu está realidade, começou a desenhar um disco
Depois de lhe mostrares a "Nova Lisboa", segue-se Cabo Verde e Quarteira...
Ela não teria acesso a essa riqueza multicultural e acima de tudo tão aculturada em Londres, em Paris ou em Nova Iorque. Porque são cidades que vivem muito nos seus guetos, onde a cena latina é a cena latina, a cena afro é a cena afro… Não há mistura. Aqui vais a uma Na Surra e levas com uma palete de cores, de estilos e de opções que nunca mais acabam. Enquanto noutras cidades vês muitas culturas, em Lisboa vês mesmo a aculturação. Não consegues distinguir se aquela pessoa é um turista ou é da cidade. [Essa pessoa] pode conhecer mais desta cidade do que tu. Já não dás valor porque é tão normal. Já desvalorizas o facto de entrares no Musicbox, numa noite da Príncipe, e teres ali de tudo, do gueto até ao Estoril.
Ela sentiu isso, que ela é Madonna, porque é A Madonna, mas que enquanto artista podia também ser parte do que referes?
Quando as Batucadeiras foram tocar para a Madonna, elas nem sabiam quem era ela. Sabiam do fenómeno Madonna, só. E foram elas, de tudo o que lhe mostrei, dos sons de Moçambique a Cabo Verde, quem mais a impressionou. As Batucadeiras são mulheres que não tocam por dinheiro. Estão a tocar, mas de seguida podem ir limpar o aeroporto, a tua casa ou cuidar dos sete filhos que tiveram com três maridos que as abandonaram. São essas mulheres invisíveis que juntas, a tocar... Não há nada assim. Ela [a Madonna] não ia gravar nada, estava a escrever um livro, estava a preparar um filme, mas a partir do momento que conheceu está realidade [de Lisboa], começou a desenhar um disco. Desenhou um disco com base nestas influências todas, daí a tour ser apenas em salas.
Por falar em tour, a tua não te dará descanso este verão.
Sines, MED, Douro Rock, Bons Sons, para não falar nos concertos em várias cidades. Pelo meio ainda vou ao Brasil, para a FLIP, com o Kalaf, e ainda fazemos um festival incrível em Múrcia, em Espanha, em que o cartaz sou eu, a Mayra Andrade, a Marisa, o Branko...
Esse último, o Mar de Músicas em Cartagena, é um festival muito associado à world music — e Portugal é o país convidado desta edição —, ainda que esse esteja a cair em desuso...
Ya, precisa de outro termo. Enquanto não existe, utilizemos esse. Fora por enquanto são essas datas, e uma no final do ano em Paris. Mas a tour começou fora, em Londres, Berlim, Polónia, onde vi pessoal a gritar 'qual é a ideia' e 'nos funaná'.
Esta "Nova Lisboa" tem pernas para andar?
Tem. Porque esta "Nova Lisboa" resume todo este fenómeno lusófono. Também quero outra palavra em vez de 'música lusófona', mas ainda não a encontrei. Vou criar uma.
Terminamos desta forma, com essa promessa.
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