“Já descobriste se me amas?”. Ser adolescente é duvidar. Poderá ser que o humano seja um bicho de questionamento constante, ou, por outra ventura, só ao pré-adulto se reserve a fase de não ter certezas. Tanya é a protagonista de Transnistra, documentário da sueca Anna Eborn, que arrecadou o Grande Prémio da edição deste ano do Porto/Post/Doc, que terminou este domingo.
Tanya é uma adolescente. Anda com um grupo de rapazes, nunca sendo totalmente certo se são dela namorados, ou meros pretendentes. Tolya, Sasha, Burulya e Dima juntam-se a Tanya para ser isso que são os adolescentes numa terra que é ela mesma incerteza, encaixada feita enclave junto à Moldávia e à Ucrânia.
“Eu acho que as mulheres só devem intervir nas conversas para dizer que a sopa está na mesa”. Foi Agustina Bessa-Luís que pôs isto na boca de um “bom cidadão” da Invicta, (em "Casamento e Fuga", um breve conto de 2000). Em "Transnistra", de Anna Eborn, a mulher — ou a adolescente — é a força por trás de toda a história: por trás de uma chusma de rapazes que a vai namorando.
Esta realidade de documentário, vai mesmo ao encontro deste namorador hipócrita de Agustina, que espalha namoradas pela cidade, mantendo-as como reservas para uma eventual solidão. “E agora o que vai ser de mim?”, disse ele, muito aflito, quando descobriu que a última amante ia casar com outro: “Fico só no mundo”.
Tanya não está só no mundo. Mas há de o abandonar, ou pelo dele se abstrair, buscando uma realidade diferente desse lugar que habita, onde “as pessoas são podres”; onde “sorrir não serve de nada”; onde “sorrir é inútil”.
A qualidade dos diálogos é desconcertante. Adolescentes, crianças, que veem o mundo cru, despido de esperança e desabrimento. Numa crítica a um outra rapaz, Tanya esclarece a Dima: “Ele não é convencido, é vazio como nós”.
O que torna este pedaço de cinema do real — um documentário — fascinante é precisamente a janela que rasga nestas vidas, sem lhes tocar. Sentimo-nos perto, mas não a invadir. E ouvimos as dores faladas, misturadas com os aforismos que montam a vida: "Vês, [o animal bebé] ainda não morde. — Porquê? — Porque ainda não percebe que tem de morder."
Um professor de jornalismo literário com quem tive aulas (e que não cito por me corromper a memória as exatas palavras), atirou uma vez na sala o fascínio: como é que estas pessoas falam assim? Andávamos à roda das Vozes de Chernobyl, da Nobel Svetlana Alexievich, onde as testemunhas do apocalipse nuclear dos anos 1980 falam como se vindas dum romance russo.
Em “Transnistra”, a fina delicadeza do diálogo, mesmo quando inconsciente, põe à vista as teias do humano: “Estamos no cemitério a divertir-nos. Seremos normais? O manicómio está à nossa espera”.
Há um momento de contraste: Tanya está com o irmão mais novo em casa. Brincam, conversam. E, do alto dos seus poucos anos, desenham a maturidade num diálogo de grande clareza:
— Onde fizeste essas cicatrizes?
— São de um passado distante.
— Do passado? Tens a certeza?
— Sim. Foi talvez há um mês, ou menos, até.
E, depois disto, o irmão pergunta-lhe: “Porque te cortaste? Podias ter-mo pedido.”
Se a “saudade” é uma palavra exclusiva da língua portuguesa (não é), a falta, a dor de não ter, a ânsia de voltar, é universal. Mesmo sem palavras que a descrevam dum modo exato, qualquer homem ou mulher, português, sueco ou moldavo, a sente nalgum ponto do corrido da vida.
Neste documentário, ninguém fala de saudade. Mas cada quadro dele, cada ‘frame’ é uma ode ao sentimento. Aqui, Ebron traz-nos a nostalgia. Atira-nos de volta aos fins de tarde perdidos entre o que somos e o que queremos ser; numa busca entre os amigos, os amores, a família e os mostrengos que nos habitam a mente.
No fim, "Transnistra", vindo lá do leste, transforma-se num lugar comum: no lugar dos adolescentes todos, que habitam esses países que não existem, onde só eles estão, sós e evadidos do mundo, perdidos entre o que são, o que querem ser e o que querem que eles sejam: “É a vida. Não somos nós, é a vida”.
Retrato sem vergonha
Este sábado, o júri do festival portuense entregou-lhe o Grande Prémio — culpa da “extrema sensibilidade que a cineasta teve ao abordar um universo tão frágil, compreendendo o processo de ‘coming of age’ [amadurecimento] através de uma linguagem cinematográfica muito essencial e intensa”, e “pelo retrato de Tania entre os meninos, o modo como explora a sua sexualidade, em completa liberdade, sem qualquer vergonha ou julgamento de alguém ao redor”, que, considera o júri, “faz deste filme uma experiência inesquecível”.
A decorrer desde dia 23 de novembro, o festival de documentário passou pelo Porto e, pela primeira vez, também por Braga, com exibições de filmes em vários espaços das cidades. O Porto/Post/Doc, que já tem nova edição anunciada para 2020, centrou este ano a sua programação nas questões identitárias.
O júri entregou ainda a “The Science of Fictions”, de Yosep Anggi Noen, o prémio Companhia das Culturas / Fundação Pereira Monteiro para melhor realizador emergente.
“Com uma alegria comunicativa, o filme joga com elementos clássicos do cinema, usando luz e ritmo para criar magia, enquanto traça um retrato humano e político de uma alma solitária”, justificou o júri.
O Prémio Cinema Novo, atribuído pelo Canal 180, foi para “Terril”, de Bronte Sthal, pela “originalidade do tratamento cinematográfico na abordagem de uma temática central do nosso tempo: a questão ambiental”.
O documentário “Shooting the Mafia”, de Kim Longinotto, conquistou o Prémio Teenage, uma escolha “óbvia e unânime” para o júri, “pela sua ligação entre a representatividade feminina e cultural através da qual criou uma narrativa imersiva, comovente e impactante, que fez jus à notável direção artística”.
*Com Lusa
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