Quando, em 2010, Jim O'Rourke decidiu lançar um álbum de tributo a Burt Bacharach, houve quem detetasse nesse gesto uma certa ironia, uma espécie de aproximação distanciada do músico à figura homenageada. Afinal, O'Rourke firmou o seu nome enquanto guitarrista no lado mais vanguardista do rock n' roll, dos Gastr Del Sol aos Sonic Youth, às suas colaborações com artistas como Merzbow ou Fennesz, sendo um ponto de passagem obrigatório para quem além ou ao invés da pop prefere o ruído, para quem escolhe texturas abrasivas em detrimento da melodia, para quem a música tem de ser difícil de escutar.
O facto de o norte-americano se ter debruçado sobre a obra de Bacharach só poderia ser uma brincadeira, uma partida hipster. Gostar genuinamente de um artista conhecido pelas suas canções melosas e hollywoodescas, de um homem que contribuiu para aquilo a que regularmente chamamos easy listening – música fácil de ouvir, música de elevador, música para ignorar –, era algo impensável, como se Ozzy Osbourne decidisse, um dia, dizer que é um fã enorme da música de Tony Carreira. E, no entanto, o próprio título desse disco respondia às questões dos mais céticos: “All Kinds of People Love Burt Bacharach”.
Uma breve pesquisa mostra-nos que o título de O'Rourke é certeiro. De Brian Wilson a Noel Gallagher, de Elvis Costello a Dr. Dre, são muitos, e diversos, os fãs de Bacharach. E, se mencionamos o autor de clássicos pop como 'Raindrops Keep Fallin' On My Head', é porque essa ideia enraizada no elitismo de alguns melómanos e críticos especializados (que, como se sabe, são todos elitistas), de que o que é popular tem menos qualidade, se pode adaptar que nem uma luva a Roberto Carlos. Também o músico brasileiro se viu forçado a navegar por entre as más-línguas, desde os seus tempos da Jovem Guarda, nos anos 60, passando pelo seu fervor religioso, nos anos 70, até ao sentimentalismo romântico de títulos como 'Emoções', nos anos 80. Os brasileiros têm uma palavra para isso: brega. Em português de Portugal, poderíamos escrever “parolo” ou “azeiteiro”.
No entanto, apesar dessas más-línguas, ou talvez mesmo por causa delas (porque ninguém gosta de sabichões), Roberto Carlos foi, é e continuará a ser o “Rei” – o astro maior da música brasileira, a figura intocável que, desde que a bossa nova deixou de ser nova até aos dias de hoje, se mantém no centro de todo um universo que vai de Caetano Veloso a Gilberto Gil, de Gal Costa aos Legião Urbana, de Chico Buarque aos Sepultura ou aos Cansei de Ser Sexy ou a MC Kevinho: o universo da música made in Brazil. Um universo que, grosso modo, só perde para os Estados Unidos e para o Reino Unido em matéria de quantidade e/ou qualidade. E é Rei porque, ao contrário da esmagadora maioria dos monarcas, foi aclamado pelo povo.
Meu pequeno cachoeiro
Nascido a 19 de abril de 1941 em Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo, Roberto Carlos é o mais novo de quatro irmãos, fruto do casamento entre o relojoeiro Robertino Braga e a costureira Laura Moreira Braga. A sua infância não foi pobre, mas modesta; não faltava comida, mas também não existiam vícios. «Vivíamos quase sempre sem dinheiro, mas o que nos faltava em dinheiro minha mãe compensava em carinho e compreensão», afirmou anos mais tarde. Apelidado de “Zunga”, Roberto sofreu aos seis anos o acidente que mais marcou a sua vida: foi atropelado por um comboio, e forçado a amputar a sua perna direita. Só ganharia uma prótese (e, curiosamente, existe muita gente que ainda hoje não sabe que Roberto a tem) aos 15 anos.
O acidente ficaria mais tarde registado em canções como 'O Divã' e 'Traumas' mas, apesar disso, não lhe provocou tantos 'Traumas' assim; todos os que privaram com Roberto Carlos na sua infância se recordam de um menino sorridente e brincalhão. E, naquela idade, já com gosto pela música. O seu primeiro ídolo foi Bob Nelson, ator e cantor brasileiro que fez carreira vestindo-se de cowboy e cantando, em português, clássicos da música country como 'Oh, Susanna'. Ao lado dele estavam nomes como Luís Gonzaga, além de sambas-canções, xaxados, foxtrotes, tangos, boleros e, até, o fado – talvez por influência do avô materno, o português Joaquim Moreira.
Aos nove anos, Roberto estreia-se na rádio da sua cidade-natal, a Rádio Cachoeiro, fazendo parte de um concurso de talentos. A sua escolha? 'Amor Y Más Amor', bolero que conheceu através da voz do porto-riquenho Bobby Capó. «Eu estava muito nervoso, mas muito contente de cantar no rádio. Ganhei um punhado de balas [rebuçados], que era como o programa premiava as crianças que lá se apresentavam. Foi um dia lindo», contou, citado pelo jornalista Paulo Cesar de Araújo na biografia não-autorizada “Roberto Carlos em Detalhes”, de 2007.
Roberto, que antes desse evento queria ser médico, passaria a desejar ser cantor, como aqueles que ouvia na rádio e que tanto lhe agradavam. O facto de ter participado em mais programas da Rádio Cachoeiro, sendo sempre o mais aplaudido pelo público que assistia às performances no auditório, terá contribuído em muito para essa ideia. «Não houve concorrente que conseguisse tirá-lo do trono, o que já revelava uma vocação inata para rei», destaca Cesar de Araújo. Em 1952, com apenas 11 anos, passa a ter um programa semanal na rádio. E, aos 14 anos, teve pela primeira vez a oportunidade de gravar a sua voz num disco de acetato, à semelhança daquilo que o outro “Rei”, Elvis Presley, havia feito. É por volta desta altura que se convence: de forma a ter sucesso, teria que se mudar para o Rio de Janeiro, trocar a Rádio Cachoeiro pela gigante Rádio Nacional. E é isso mesmo que faz, em 1956.
Eu sou fã do rock n' roll
A luta por um lugar na rádio, que significava fama e fãs – numa altura em que era a rádio o principal veículo de afirmação para um artista –, era dura, e Roberto Carlos não obteve no Rio de Janeiro as mesmas oportunidades que teve a jogar em “casa”. Durante esse período inicial, Roberto conhece Arlênio Lívio, morador do bairro da Tijuca, e frequentador do Bar Divino, onde se juntava uma turma apaixonada por tudo aquilo que viesse dos Estados Unidos: o rock n' roll, os filmes, as BDs. Dessa, faziam parte dois outros grandes nomes da música brasileira, Jorge Ben e Tim Maia, cuja versão de 'Long Tall Sally', de Little Richard, o fascinou. «Ouvi atentamente, fui para casa e fiquei tocando a noite inteira. Aquilo mudou minha forma de tocar», explicou. O fascínio foi tal que depressa Roberto Carlos se junta a Tim Maia no quarteto The Sputniks, assim chamado por causa do satélite soviético, o primeiro a entrar em órbita.
A primeira apresentação pública deste quarteto vocal dá-se em 1957, na Igreja de São Sebastião dos Capuchinhos, na Tijuca. E é tão bem sucedida que os Sputniks são prontamente convidados a tocar nas missas dominicais, daí em diante, e no programa de televisão “Clube do Rock”, de Carlos Imperial. Ambicionando algo para além de uma vida em grupo, Roberto dialoga com Carlos Imperial, no final da atuação, cantando-lhe dois dos maiores clássicos dos primórdios do rock n' roll: 'Tutti Frutti' e 'Jailhouse Rock'. Impressionado, Carlos convida-o a atuar a solo na próxima emissão do programa, o que acaba por enfurecer Tim Maia, levando ao fim (precoce) dos Sputniks.
Perspetivando um futuro auspicioso, Carlos Imperial desenvolve uma relação de amizade com Roberto Carlos, que se torna num dos seus “protegidos”. A chegada de Bill Haley ao Brasil, com os seus Comets, em 1958, poderia ter sido o seu primeiro passo de gigante na música. No Maracanãzinho, Roberto só não subiu ao palco para fazer a primeira parte do autor de 'Rock Around the Clock' (num concerto apresentado por Carlos Imperial) por uma tecnicalidade: era menor de 21 anos, e a entrada no espetáculo foi-lhe vedada pelo Juizado de Menores do Rio de Janeiro. «Roberto chorou até não poder mais», garantiu Carlos Imperial, em declarações impressas em “Roberto Carlos em Detalhes”.
Mas mesmo dentro desse abismo Roberto encontrou uma escada. Ou, melhor, um Erasmo. Ainda antes de saber que não poderia atuar, Roberto Carlos procurou Erasmo Carlos, um dos maiores fãs de Elvis Presley no Brasil, à altura, para que este lhe transcrevesse a letra da icónica 'Hound Dog', a qual iria interpretar em frente a Bill Haley. Até então, o contacto entre ambos (frequentavam os mesmos sítios, conheciam as mesmas pessoas), havia sido esporádico. Mas, como costuma fazer para tanta gente, «o rock n' roll nos tornou amigos» – palavra de Erasmo. Roberto ficou tão agradado que convidou Erasmo para ir consigo à televisão. «Eu tinha dezassete anos e não sabia que profissão seguir, não sabia de nada. Eu vivia naquela incerteza própria da idade. Roberto apareceu na minha vida justamente nessa época e me trouxe para o mundo com o qual me identifiquei», afiançou.
Roqueiro bossa nova
Em 1959, o “Clube do Rock” encerrou atividades. O género havia perdido algum do seu fulgor e da sua popularidade, e outra explosão musical seguir-se-lhe-ia: a bossa nova. «Quando ouvi João Gilberto, eu fiquei parado, porque aquilo era algo simplesmente maravilhoso», afirmou Roberto. Inspirado, passa a procurar não as rádios, mas as boîtes, onde se poderia dar melhor enquanto crooner. Aos 18 anos, foi contratado para atuar no Plaza, cujo dono, Amaral Ribeiro, era marido de uma prima. Certa noite, Roberto reencontrou Erasmo, que havia acabado de compor 'Maria e o Samba'; abraços dados, cantou esse mesmo tema em palco, desse momento nascendo uma parceria que gerou dezenas e dezenas de canções e de discos (e muito, muito dinheiro para ambos). Outro reencontro, teve-o com Carlos Imperial, que uma vez mais se impressionou com o talento do cantor e lhe propôs gravar um disco. De “Elvis brasileiro”, Roberto Carlos poderia passar a ser “o novo João Gilberto”.
Com a ajuda de Carlos Imperial e do radialista Chacrinha, Roberto é apresentado a várias editoras discográficas, como a Chantecler, a Copacabana Discos ou a Continental, mas é rejeitado por todas. Até que surge a Polydor, que tinha ao leme Joel de Almeida. Este aceita gravá-lo e dessa parceria surge o single 'Fora do Tom' / 'João e Maria', em junho de 1959, e do qual pouco reza a história. «Saí da gravadora com o disco debaixo do braço, feliz da vida. Quando cheguei em casa dei o disco de presente para minha mãe», relatou Roberto Carlos, “imitando” uma vez mais Elvis sem saber – também o Rei do Rock havia entrado pela primeira vez nos Sun Studios para gravar um acetato para a mãe.
Porém, o assombro sentido por quem ouviu Elvis pela primeira vez não foi correspondido, no Brasil, por quem ouviu Roberto. Nos jornais, o single é até encarado como uma espécie de paródia da bossa nova, com Roberto a tentar ser João Gilberto, em vez de ser ele próprio. «Eu realmente cantava muito parecido», admitiu posteriormente. A Polydor termina contrato consigo, e o emprego na boîte também se vai por esta altura. Restava-lhe tentar fazer parte do núcleo duro da bossa nova – Roberto Menescal, Carlos Lyra, Nara Leão – mas também esta tentativa saiu gorada. Ninguém descortinava algo de especial em Roberto. Excepto João Gilberto, o Deus maior da bossa nova, que chegou a vê-lo atuar no Plaza. «Achei o Roberto muito musical», afirmou, citado por Cesar de Araújo.
De forma a que a carreira de Roberto Carlos pudesse, não avançar, mas existir sequer, havia mesmo que gravar um disco. Depois de tantas rejeições, restava uma editora: a Columbia / CBS. O diretor artístico da CBS, Roberto Côrte Real, era um fanático de jazz que já conhecia Carlos Imperial das palestras sobre o género, que este tinha dado no Jazz Club, em Copacabana. E foi, também, o homem que deixou escapar João Gilberto por entre os dedos, ao pedir-lhe que alterasse a letra de 'Bim Bom' antes de o aceitar editar.
Côrte Real considerava que a voz de Roberto Carlos era de facto uma imitação da de João Gilberto, mas – ou por causa disso – não queria cometer o mesmo erro duas vezes. Após ouvi-lo cantar 'Brotinho Sem Juízo', composição de Carlos Imperial, marcou um dia para o gravar e convidou o maestro Lírio Panicalli para fazer os arranjos. Em agosto de 1960, o mercado discográfico brasileiro acolhe novo single de Roberto Carlos, 'Canção do Amor Nenhum' / 'Brotinho Sem Juízo'. Que, à semelhança do primeiro, também não vende. Mas o esforço de Roberto, ao promovê-lo, é recompensado pela editora, que lhe propõe gravar um LP.
“Louco Por Você”, editado em 1961, torna-se assim no primeiro longa-duração da carreira de Roberto Carlos, acolhendo uma mistura de estilos que vai do samba à bossa nova, do bolero ao rock. «Foi uma espécie de laboratório», escreve Paulo Cesar de Araújo. «Hoje seria considerado um álbum eclético, plural, lounge de primeira ordem, mas na época revelou mais a indecisão do estilo do jovem cantor». E foi também o primeiro exemplo do lado mais controlador do cantor Roberto Carlos, que quem o conhece também não renega.
Convencido de que havia desafinado em 'Não é Por Mim', Roberto enfrenta meio mundo, que não detecta o desafinar. Em casa, ao escutar o disco, convence-se ainda mais. Acabou tão deprimido com essa suposta falha que o disco, ao contrário de todos os outros que já lançou, nunca foi reeditado, apesar de em 2012 alguns rumores terem dado conta de que isso iria acontecer. Nesse mesmo ano, deu entrada em tribunal com um processo contra a Apple, que o havia disponibilizado para venda no iTunes. No Spotify, não está disponível. No Discogs, uma cópia original do LP, em bom estado, pode atingir a muito “módica” quantia de 2 mil euros.
Ainda assim, 'Louco Por Você', a canção que empresta o seu título ao disco, garante algum airplay nas rádios, com uma ajuda providencial das muitas amigas e namoradas de Roberto, que ligam para as mesmas solicitando o tema. Sem digressões e sem dinheiro no bolso, o cantor começa a trabalhar como datilógrafo na Delegacia de Seguros do Ministério da Fazenda, no centro do Rio de Janeiro. A sua carreira vivia sob ameaça constante, e essa agravou-se com a saída de Roberto Côrte Real da CBS, que foi substituído no cargo de diretor artístico por Evandro Ribeiro, patrão da editora. O objetivo de Evandro era o de resgatar a CBS dos problemas financeiros que atormentavam a editora, o que poderia significar que Roberto Carlos – que não vendia discos – seria em breve deitado ao lixo.
Um leão está solto nos topes
Evandro, também ele com fama de controlador, acaba a incompatibilizar-se com Sergio Murilo, à época o grande astro rock da CBS. E cogita: Roberto Carlos poderia apropriar-se do público jovem que seguia Murilo. Afinal de contas, Roberto Carlos era, antes da bossa nova, um roqueiro de coração. Porque não tentar? 'Malena', editado em abril de 1962, constituiu o primeiro single deste novo velho Roberto Carlos. Mas era pouco. Faltava um grande êxito, uma canção que ocupasse os lábios dos adolescentes.
Certo dia, Erasmo Carlos escuta 'Splish Splash', de Bobby Darin, na rádio, e decide adaptá-la para a língua portuguesa, apesar de a canção não ter sido um sucesso no Brasil. Mostra-a a Roberto Carlos, que opta por gravá-la com Renato Barros e os Blue Caps, dizendo não aos músicos e maestros veteranos da CBS (que não percebiam e não gostavam de rock). E é com esta gravação que Roberto Carlos começa «a ser simplesmente Roberto Carlos», conforme escreve Cesar de Araújo. A 'Splish Splash' sucede outro tema: 'Parei na Contramão', a primeira composição conjunta entre Roberto e Erasmo Carlos.
Com estes dois temas, a CBS aceita gravar um novo LP. Mas, se o Rio de Janeiro começava a abrir as suas portas a Roberto Carlos, a outra grande metrópole brasileira – São Paulo – estava por conquistar. Entra em cena Edy Silva, contratada pela CBS para o cargo de diretora de relações públicas, que passa a ser o contacto de Roberto em São Paulo. O seu trabalho dá frutos, e 'Parei na Contramão' é o primeiro grande sucesso do cantor nessa cidade. «É a minha moedinha número um», descreveu-o mais tarde.
Outra tradução de Erasmo foi 'O Calhambeque', canção que apresentou muito boa gente ao trabalho de Roberto Carlos. Depois de Edy Silva, foi a vez de um empresário, de seu nome Geraldo Alves, entrar na órbita do cantor. É ele quem lhe organiza dez concertos no interior do estado de São Paulo, que ajudam a espalhar o nome e a música de Roberto Carlos. Chegada à altura da derradeira escolha, esta foi fácil: adeus emprego, olá carreira.
Sucedem-se as gravações, como o ótimo “É Proibido Fumar”, LP de 1964. Mas faltava algo: a majestosidade de um órgão elétrico, por exemplo. Como o de Lafayette Coelho, falecido no passado dia 31 de março, peça importante na sonoridade da Jovem Guarda. «Ao incorporar o som do órgão à sua música, Roberto Carlos caminhava na mesma batida do moderno rock dos anos 60», explica Paulo Cesar de Araújo. É esse órgão que transforma, por exemplo, 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno' num gigantesco sucesso.
O tema em si «nasceu numa noite fria, em junho de 1965, na cidade de Osasco», em São Paulo, conta Cesar de Araújo. Antes de um espetáculo no Cinema Rex, Roberto escuta um fragmento de uma melodia na rádio, que o leva a imaginar um refrão inspirado pela partida de uma namorada, Magda Fonseca, para os Estados Unidos. «Naquela música eu queria dizer que para mim o que importava era o amor, a saudade que eu sentia e aquelas coisas que envolviam o meu estado de espírito», explicou mais tarde. «Na minha opinião só o que valia era o amor que eu sentia. Então, que tudo mais fosse realmente pro inferno».
Lançada em 1965, 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno' foi um daqueles sucessos estrondosos com que um músico sonha durante toda uma carreira. Durante as gravações, conta Cesar de Araújo, «até o pessoal do escritório ia à sala da técnica» para a escutar. «Todos se enganaram, porque ela não foi apenas um sucesso. Foi a canção de maior impacto popular na história da música popular brasileira». As muitas versões que dela existem (ou o facto de continuar a soar tão bem, quase 60 anos depois), atestam-no. E nem a muita polémica lhe retirou o brilho: a igreja, pedra basilar de uma sociedade fundamentalmente conservadora como o era a brasileira, ficou assustada com a possibilidade de milhares, talvez milhões de jovens a cantar a palavra “inferno”.
Essa canção, escreve ainda Cesar de Araújo, «atingiu em cheio a sensibilidade de um país sufocado pela repressão moral, política e social. Uma sociedade reprimida foi tomada por uma canção com um grito de guerra arrebatador». 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno' chega mesmo a ser proibida nas rádios, mas o mote estava dado. A juventude, que em questões pop tem sempre razão, escutava e gostava: da desfaçatez de mandar tudo para o inferno, do órgão, da tristeza bonita que está subjacente ao tema. A “bomba” impulsionou o programa “Jovem Guarda”, da TV Record, que tinha Roberto Carlos como apresentador. As audiências subiram em flecha, e Roberto é aclamado “Rei”.
A 200km por hora
É claro que o sucesso não vinha sem os seus dissabores. Em palco, Roberto levava com tudo e mais alguma coisa, de bonecos a chocolates. Fazê-lo entrar no edifício onde o programa era gravado era um problema, dadas as dezenas de garotas que, como no auge da Beatlemania, queriam levar para casa um pedaço do seu ídolo (ou o ídolo completo, se pudesse ser). Numa emissão especial de aniversário, o 25º do cantor, “Jovem Guarda” contou com 4 mil espectadores sentados, muitos mais nos corredores e nos balcões, e 15 mil à porta, a protestar diante da polícia e do exército, chamados para manter a ordem. Apesar do caos, Roberto garantiu: «foi realmente um dos momentos mais emocionantes da minha carreira».
Fora da televisão, a marca Roberto Carlos continuava a fazer-se sentir na indústria discográfica, com canções como 'Namoradinha de Um Amigo Meu', originalmente escrita para os Beatniks, e 'Eu Te Darei o Céu', uma espécie de resposta a 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno'. E não só na brasileira: na rival Argentina já muitos sabiam quem ele era. Em 1965, Roberto aceita gravar “É Proibido Fumar” em língua espanhola, a pedido de Alberto Caldeiro, da CBS argentina. O disco ganhou o novo título de “Roberto Carlos Canta a La Juventud”, e foi o primeiro passo na consagração do cantor pelas pampas. Do outro lado do Atlântico, um Portugal sob regime ditatorial também se deixava encantar por Roberto Carlos; o músico pisa pela primeira vez a terra do seu avô materno em 1966, a convite da RTP.
Se a América Latina e Portugal o ouviam, faltava a restante Europa. Tudo mudou com a edição de 1968 do Festival de Sanremo, no qual participou a convite da Compagnia Generale del Disco, que distribuía o catálogo da CBS por Itália. Para os fãs do evento, essa foi uma das edições mais fortes de sempre: para além de Roberto Carlos, participaram Domenico Modugno (o autor da emblemática 'Volare'), Louis Armstrong, Dionne Warwick, Wilson Pickett, Paul Anka e Sacha Distel, entre outros. Nenhum chegou aos pés do brasileiro, que com 'Canzone Per Te', de Sergio Endrigo, obteve 905 votos dentro de um universo de dois mil jurados, garantindo o primeiro lugar. Nesse ano, 'Canzone Per Te' tornou-se numa das canções mais ouvidas e vendidas por toda a Itália. No regresso ao Brasil, Roberto foi aclamado, como diz Paulo Cesar de Araújo, «como um autêntico campeão do mundo». A ditadura militar aproveitou essa vitória para abanar a sua badeira nacionalista, vendo na vitória de Roberto Carlos uma vitória de todo o Brasil.
Talvez seja por isso que muita da intelligentsia da música e da imprensa brasileira tenha renegado, à época, Roberto Carlos. Apesar do seu sucesso – ou por causa do seu sucesso – muitas das figuras da chamada Música Popular Brasileira, ou MPB, desprezavam-no. A sua música não era “brasileira”, não tinha nas veias o ritmo da bossa ou do samba. Era americanizada, “imperialista”. «Fizeram um cerco em torno de mim que às vezes me angustia», desabafou o cantor. Paulo Cesar de Araújo contrapõe: «Roberto Carlos surgiu como ídolo numa época em que o rock era considerado lixo e vulgaridade pela elite intelectual», tal como o havia sido nos Estados Unidos, quando Frank Sinatra se referiu à música de Elvis como «deplorável, um afrodisíaco rançoso».
Em 1966, potenciado pela boa prestação num concurso da TV Record, Roberto Carlos chega até a pensar gravar um disco de MPB. Nara Leão chegou a incentivá-lo a tal. E Chico Buarque, na companhia de Geraldo Vandré, encontraram-se com o cantor com o intuito de o arrastar definitivamente para o “Brasil”. Mas Evandro Ribeiro não queria, temeroso de perder o seu grande filão. A recuperação de Roberto Carlos pela elite da música brasileira só se daria com os tropicalistas, no final da década de 60, que gostavam tanto do Brasil como dos Estados Unidos. Basta escutar 'Baby', canção de Caetano Veloso, à qual Os Mutantes acrescentaram uma boa dose de ácido: ouvir aquela canção do Roberto...
Depois dos tropicalistas, a bandeira branca nessa guerra entre o que tem qualidade e o que é popular foi definitivamente içada por Elis Regina, que tanto tinha criticado a Jovem Guarda e que acabou a cantar a (extraordinária) 'As Curvas da Estrada de Santos', para gáudio – e choro – de Erasmo Carlos, que a compôs. Lançada em 1969, a canção faz parte da fase soul e gospel do cantor, que lentamente começou a abandonar a vertigem do rock e as melodias dos primeiros tempos dos Beatles. Uma fase que corresponde aos espetáculos que o cantor deu no Canecão, uma temporada iniciada em 1970, com uma orquestra a acompanhar a sua própria banda. «Quem foi lá esperando ouvir um cantor de iê-iê-iê se surpreendeu diante de um intérprete à la Frank Sinatra», diz Cesar de Araújo.
Depois do povo, a elite começava também a aplaudi-lo. O disco homónimo de 1970, com arranjos de Chiquinho de Moraes e Alexandre Gnattali, é um dos mais elogiados da sua carreira, sendo o álbum onde encontramos a canção que melhor define o lado religioso do cantor: 'Jesus Cristo', que mais tarde ganharia uma versão altamente psicadélica por parte de Maria Bethânia, fã confessa de Roberto. Dos concertos no Canecão nasceu igualmente o clássico 'Emoções', homenagem a uma casa «que lhe deu confiança como cantor e prestígio como artista». Lançada em 1981, foi terminada por Roberto e Erasmo Carlos em Nova Iorque. «Os dois tiveram o cuidado para que a letra tivesse um duplo sentido. Aquelas emoções tanto podem ser do artista ao reencontrar seu grande público como de alguém ao reencontrar seu grande amor», escreve Cesar de Araújo.
Ele está pra ficar
Hoje em dia, Roberto Carlos mantém-se em cima do pedestal que o povo lhe ergueu nos anos 60, que noutros países que não o Brasil foi sinónimo de protesto, de liberdade, de busca pela paz. Mesmo que os cantores de protesto, à altura, se tenham insurgido contra o cantor, a verdade é apenas uma: ele foi para muitos jovens um símbolo de algo maior que os grilhões da ditadura. Qualquer ideia de que Roberto Carlos tenha sido visto como o menino bonito do regime está errada: canções rebeldes como 'É Proibido Fumar' eram mal encaradas, e outras escaparam por pouco à censura.
«Roberto Carlos estimulava o movimento hippie no Brasil porque ele usava cabelo hippie, gíria hippie, calça hippie, colete hippie, pulseiras e colares hippies, provocando com isto a insatisfação dos setores conservadores», afirma Paulo Cesar de Araújo. Mesmo o seu casamento com Cleonice Rossi, em 1968, mulher mais velha e já mãe, foi um choque. E se a geração do maio de 1968 criticava as suas posições apolíticas, depressa teve que mudar o registo quando Roberto visita Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados em Londres, em 1969. «Nós sentíamos nele a presença simbólica do Brasil», declarou Caetano. «Ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade e propriedade do que os milicos que nos tinham expulsado».
Apolítico, ma non troppo: a preocupação com questões ambientais esteve sempre com Roberto, que em 1970 se declara «hippie», querendo «um mundo melhor, um mundo sem guerras, sem lutas». Dessa preocupação nascem, por exemplo, canções como 'As Baleias', de 1981. Três anos depois, o homem que muitos viam e veem como conservador de direita mostrou-se a favor do Diretas Já, movimento que reivindicou a realização de eleições presidenciais livres, levando ao fim da ditadura. «Isso é lógica, não é política», limitou-se a justificar, à altura.
Nos últimos anos, de Roberto Carlos apenas se tem discutido as polémicas e as “manias”. Polémica, como quando em 2007 abre um processo judicial contra Paulo Cesar de Araújo pela publicação de “Roberto Carlos em Detalhes”, cuja venda foi proibida no Brasil. O cantor não negou nenhum dos factos apresentados no livro, limitando-se a alegar uma hipotética invasão da sua privacidade – algo que o Supremo Tribunal Federal rejeitou, por unanimidade. “Mania”, da parte de quem prefere descrever uma doença como o Transtorno Obsessivo-Compulsivo, da qual o cantor sofre, com recurso a um adjetivo maldoso. A doença atingiu Roberto de tal forma que, durante muitos anos, recusou-se a cantar 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno', evitando por tudo essa última palavra. Só o voltou a fazer em 2016, dando a entender que os tratamentos têm resultado.
Prestes a cumprir 80 primaveras, o cantor afirmou à Globo ainda não estar «curado», até porque a pandemia da covid-19 não deixou de ser impactante mesmo para quem é “Rei”. Ou talvez o seja ainda mais, visto que um Rei nada é sem os seus súbditos. «Sinto falta do palco, das luzes e, principalmente, da plateia», disse. Para este ano, estão previstos os lançamentos de mais dois livros sobre Roberto Carlos (um deles também de Paulo Cesar de Araújo), igualmente não-autorizados, e que não se sabe se merecerão do músico a mesma oposição. E, em 2022, terão início as filmagens de uma biopic – essa sim, com a sua bênção –, realizada por Breno Silveira. Bónus: Roberto Carlos tem aproveitado o confinamento para compôr mais canções, sendo que já não edita um disco de originais desde 2003. Com tudo isto, está dado o mote para que Roberto Carlos continue por mais 80 anos, mesmo que o seu corpo não o acompanhe.
All kinds of people love Roberto Carlos
Continuará, porque continuará a ter seguidores. Pessoas como João Ricardo Pateiro, locutor da TSF, que o futebol português conhece das narrações musicais que imprime aos golos. Fã confesso do Rei – «com a idade que tenho já não tenho vergonha de dizer que gosto de ouvir cantar Roberto Carlos», nota – João Ricardo Pateiro começou por conhecer a obra do músico ainda em criança, apontando 'O Calhambeque' como a primeira canção que dele escutou. Tal como Rui Reininho, que recebeu esse mesmo single, em vinil, como prenda. «Achei-lhe graça e aprendi-o todo, para aí com seis, sete anos», conta-nos. Ou como Márcia, que nos diz lembrar-se de, em criança, «brincar com a minha irmã a imaginar que estávamos dentro do "calhambeque"». «Ouvíamos e dançávamos a 'Namoradinha De Um Amigo Meu', a 'Quando', e cantávamos todas as K7's que tínhamos», acrescenta.
Para todos eles Roberto Carlos é, efetivamente, o Rei. «O Rei do rock brasileiro parece-me que é», salienta Rui Reininho. «Porque sempre o vi ser tratado assim pelos comparsas, com aquela distância que é um toque carinhoso. Um pouco com a atitude que se tem, talvez, com o Elvis Presley». As comparações com o “Rei” norte-americano, como já vimos, não são descabidas. De cantor rock, Roberto Carlos “emigra”, com o avançar da carreira, para terrenos mais românticos. «Os puristas diziam que o Elvis, depois da tropa, transformou-se num cantor kitsch, romântico, meloso, até acabar em Las Vegas», explica-nos o vocalista dos GNR.
«Mas a fase Las Vegas também é extraordinária. Para mim, se calhar até é mais parecido com o Roy Orbison que com o Elvis Presley, em termos de composição. Porque tem um lado mais mellow», diz. Márcia concorda que Roberto é Rei, mas enumera outros. «João Gilberto, Tim Maia, Caetano Veloso, Chico [Buarque], Gilberto Gil quando canta 'Não Tenho Medo da Morte'. E a Rainha Gal Costa e a Rainha [Maria] Bethânia». Até porque «a música brasileira é muito rica, e enriquece-nos».
Artur Moraes, antigo guarda-redes do Benfica e hoje presidente da SAD do Alverca, também não esconde a sua paixão por Roberto Carlos. Não resistimos a fazer-lhe uma pequena provocação: quem foi o maior Rei, Roberto Carlos ou Pelé? «Os dois, cada um na sua área», afirma, de forma diplomática. «Um como um grande jogador, o Roberto como um grande cantor. São dois ícones do Brasil. E são abençoados pelo talento que têm».
Para o realizador Gonçalo Tocha, Roberto Carlos - único cantor que o faz chorar, confessa - «é uma espécie em vias de extinção». «Pelo menos na Europa. A América do Sul é outro mundo, onde a canção romântica não perdeu tanta força. A canção romântica é um género musical que tem a ver com uma época que já não é esta, e por isso é que está em vias de extinção. E o Roberto Carlos é, de facto, uma espécie de cantor romântico platónico», explica. «O Julio Iglesias é um galã, um conquistador, e o Roberto Carlos é o que olha para a mulher como uma musa, algo que não podemos amar o suficiente, ou que o amor não chega».
Será esse lado romântico que leva muitos a ver em Roberto Carlos um símbolo brega, e por arrasto outros a ter essa mesma percepção. João Ricardo Pateiro esteve no Brasil, durante o Mundial de 2014, e fala-nos disso mesmo: «Tinha um bocado aquela noção de que os brasileiros o achavam um pouco brega, que tinham vergonha de dizerem que eram fãs do Roberto, porque achavam que era assim um bocado "parolo", vá. Mas os grandes cantores brasileiros, aqueles que nós mais admiramos, e que temos alguma vaidade em dizer que somos fãs, veneram Roberto».
Quando se fala na importância que Roberto Carlos teve para a música brasileira no geral, Márcia pondera: «Talvez o seu gosto pelo rock tenha influenciado os pares, e o seu enorme sucesso tenha aberto a porta para uma maior internacionalização da música brasileira». «A música brasileira toda ela se nutre a si mesma, porque é muita e muito variada, e os compositores colaboram uns com os outros de uma forma muito natural e produtiva. Quanto mais música se cria, mais música ainda se criará». Artur Moraes fala-nos de «um grande expoente da música popular brasileira, com história, com carisma. Nós, brasileiros, temos muito orgulho em tê-lo como um grande cantor».
O orgulho é tal que Artur admite que Roberto Carlos, ou as suas canções, são uma bonita forma de lembrar a pátria-mãe. «No meu carro escuto muito o especial em Las Vegas. Quando bate um pouco a saudade de casa, coloco no carro e escuto. Me faz muito bem». Em Las Vegas, lá está: o Rei Roberto e o Rei Elvis encontrando-se de novo. Mas Elvis nunca teve tantas mulheres a cantá-lo juntas, em palco, como Roberto teve – um espetáculo editado com o título “Elas Cantam Roberto Carlos”, que também nos é destacado por João Ricardo Pateiro. É «um espetáculo muito bonito, que termina com o tema 'Como É Grande O Meu Amor Por Você'. Tenho uma filha, a Sofia, com sete anos, e a música que de vez em quando lhe canto é essa», conta.
O amor, estranho amor, doloroso amor: será por isso, porque Roberto o canta, que tantos o consideram brega? O locutor da TSF acredita que sim. «Acho que principalmente os homens têm alguma vergonha, algum recato em assumir que gostam de alguém que canta coisas tão românticas e tão ligadas ao amor, e de forma tão directa», afirma. Essa opinião, que se subentende como uma questão de algum machismo ainda presente, não é partilhada de todo por Gonçalo Tocha. «Para mim, isso é uma falsa questão. É uma questão musical», diz. «Encara-se isso como canção ligeira, romântica, fácil e menor. O que é estranho, porque a música pop é, como o [Serge] Gainsbourg dizia, toda ela menor. Em termos da história musical é menor. É mais pelo tipo de canção, que chamavam lamechas, ou facilitista».
O realizador, que também tem vindo a mostrar o seu lado musical em projetos como Tochapestana ou Gonçalo Gonçalves, este último marcadamente inspirado pelo universo do cantor romântico, defende o Rei com garras: «Podem falar de alguns arranjos, mas se formos só olhar para a composição e para aquilo que ele está a personificar, não podemos chamá-lo de menor. Há cantores românticos menores; não é o caso do Roberto Carlos». Rui Reininho destaca um músico «muito característico, diferentemente doutra música brasileira». «Ele tinha uma inspiração roqueira», acrescenta.
A tatuagem autobiográfica impressa em cada uma das canções de Roberto Carlos poderá, também, ajudar a explicar o porquê de ter obtido tanto sucesso, nacional e internacional (mais de 140 milhões de discos vendidos, por todo o mundo). Márcia anui, mas crê que «o seu sucesso se deve a muitos fatores para além da escrita autobiográfica», referindo também «as parcerias, nomeadamente com Erasmo Carlos, e sobretudo a sua voz e o seu carisma, e um caráter muito sensível e genuíno». Para Gonçalo Tocha, o cantor «não é um produto». «O Roberto Carlos tem qualquer coisa de único, de muito intenso e verdadeiro, que faz com que ele tenha esta obra feita. E isso acho que toca. Sabes quando tens esse gosto por ele. Não consigo explicar muito bem, é um universo um pouco mágico, para mim. Um universo mágico que me faz sonhar».
Mais que qualquer outra das canções de Roberto Carlos há que destacar, naturalmente, 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno', que já neste milénio foi alvo de uma magnífica versão por parte dos GNR. Uma versão, conta-nos Rui Reininho, que «tem uma história curiosa». «Parece que, quando a editora nos contactou, nós não fomos autorizados a fazer a versão. Lembro-me que já a tínhamos gravado, e a EMI disse-nos, na altura, que os advogados [de Roberto Carlos] não queriam [que a versão fosse lançada] porque o Roberto, acho, renega esse período das suas composições», relata-nos, numa alusão à já mencionada luta do cantor contra o Transtorno Obsessivo-Compulsivo. No final, os problemas foram sanados e a versão dos GNR saiu mesmo. «É uma música que me dá muito prazer fazer, porque é muito confortável, digamos assim», explica Rui Reininho. «Não só em termos de tom, como de balanço. Tem aquele lado twist».
Quanto à magia de que falava Gonçalo Tocha, permanece em palco. «Só o vi uma vez, em Gondomar», conta João Ricardo Pateiro. «Ele na altura já tinha uma idade considerável, e ver a capacidade dele de fazer um espetáculo altamente profissional, um espetáculo de luz, de som, a voz dele ainda estar impecável, a capacidade de emocionar as pessoas, os silêncios dele... Ele provoca silêncios que causam emoção em coisas simples», continua. «É uma coisa que eu admiro nele. Por exemplo, ele diz uma coisa que é normal: Que prazer rever vocês. E faz ali uma pausa a meio – utiliza muito esse estratagema, não sei se consciente ou inconscientemente – e aquilo resulta bem. Que prazer..., e faz um silêncio, e provoca ali um suspense, e depois diz: rever vocês. Disse uma coisa relativamente simples e provocou ali um momento especial. Ele tem essa capacidade, de em coisas banais provocar momentos».
A simplicidade é portanto a chave. Assim como o amor. Gonçalo Tocha tentou vê-lo em 2006, no então Pavilhão Atlântico, mas só conseguiu ver Roberto Carlos pela metade. «Já não havia bilhetes, estava esgotado. Fui lá desde o início, a ver se me deixavam entrar... Levei os discos em vinil comigo, para mostrar que era um grande fã e que eles tinham que me deixar entrar. Não tiveram piedade», conta entre risos. «Depois, houve uma pausa, ou um intervalo, e lá consegui entrar. Vi o final do concerto». Artur Moraes teve mais sorte: «Tive a felicidade – e é uma das coisas que sou grato a Deus, que o futebol me deu de presente – de ir a um concerto na Altice Arena, e ter tido o prazer de chegar perto, de conversar com ele um pouquinho, sobre futebol, sobre o Benfica, o que é a vida fora do Brasil, de tirar uma foto com ele. Tanto, que tenho essa foto no meu escritório, junto com as minhas conquistas do futebol», revela.
Apesar da sua peripécia, Gonçalo Tocha destaca o momento em que os fãs entraram na sala de espetáculos lisboeta. «A maior parte do público era casais», nota, «em que o seu amor e a sua relação cresceram a ouvir Roberto Carlos». «Acompanhar a entrada de portas foi lindo, todos muito bem vestidos... Notava-se que dançaram muito ao som do Roberto Carlos, que se apaixonaram... Foi maravilhoso. Isso é que é a base do Roberto Carlos, esse tipo de público». Um público que o aclama, como a muitas outras figuras da música, como Rei. «[As grandes estrelas] têm um lado aristocrático que é eleito democraticamente pelo povo. São pessoas que são escolhidas. Quanto a isso nada a dizer», salienta Rui Reininho. Para João Ricardo Pateiro, quando o questionamos sobre o que perdurará mais no tempo, se 'Quero Que Vá Tudo Pro Inferno' se o livre direto do outro Roberto Carlos, «a imagem de um golo ficará para sempre na memória de quem o viu, mas a música tem um poder, é eterna. Deixa um rasto». E Artur Moraes não tem dúvidas: daqui a 80 anos continuaremos a falar de e a ouvir as canções de Roberto Carlos. «80 e muitos mais!», garante.
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