Se hoje lermos a obra mais importante do romantismo português «Viagens na minha terra» de Almeida Garrett, escrita no século XIX, vislumbramos a personalidade única da cidade de Santarém, que mantém as marcas de um passado imponente num presente que procura essa identidade. Vítor Barreto, coordenador pedagógico da Universidade da Terceira Idade de Santarém confirma a atualidade do retrato de Garrett e acrescenta a contradição vivida pela cidade das sete colinas, «vive à custa da sua história, contudo expõe a decadência e pouca preservação desse património».
Santarém viveu períodos áureos, afirmando-se como uma marca importante na história da reconquista cristã em 1147. Situada num planalto, foi assumindo o seu valor estratégico de defesa militar fortificado por muralhas. O papel de relevo é evidente na I Dinastia, tendo sido aqui assinado o Tratado que estabelece a paz entre o Rei de Castela e D. Fernando I. O monarca, um amigo da terra, ficou conhecido como o rei protector de Santarém e após a sua morte, foi sepultado no Convento de São Francisco, ao lado da sua mãe, a Infanta D. Constança.
Gozando de uma localização central e de um clima ameno, Santarém atraiu vários monarcas, evidenciando-se como cenário para as cortes do reino. Hoje, é também um cenário imperdível, “a chegada pela Ponte D. Luís I à noite, olhando as muralhas da Porta do Sol da cidade iluminada, que intensificam uma ideia poética combinando o medieval e o romântico», concordam Vítor e a sua sobrinha, Catarina Galveias Almeida. Inaugurada a 17 de Setembro 1881, a Ponte de Santarém como é designada, retoma a hegemonia da cidade, depois de ser elevada a essa categoria em 1868, pelo decreto de rei D. Luís I assinado pelo Marquês de Sá da Bandeira, nascido lá.
Cidade que ao viajarmos pela A1 é identificada como a “Capital do Gótico” português. O nosso guia esclarece «há quem ache que vamos ver grandes catedrais de um gótico flamejante como Notre Dame e pode sentir alguma desilusão. O património demonstra a riqueza arquitectónica de um gótico mendicante e é o pioneiro das primeiras linhas do românico para o gótico». Em pleno centro histórico da cidade, situa-se um dos monumentos mais exemplares do gótico no país, a Igreja de Santa Maria da Graça, onde se encontra sepultado o descobridor Pedro Álvares Cabral.
A cidade acolheu um vasto número de conventos, hoje muitos deles em ruínas ou mantendo apenas parte de algumas dependências conventuais, como é a Igreja de Santa Clara, que figura como um símbolo do gótico mendicante de Santarém a par com o Convento de São Francisco, que foi recuperado e é um exemplar completo. Catarina recorda que se contava em segredo que existiam ligações subterrâneas de vastos túneis que uniam o Convento de Santa Clara e o Convento de São Francisco.
Parece próximo do que Garrett referia em pleno século XIX, sobre a degradação do património e da urgência na intervenção. Exemplo disso é o Presídio Militar de Santarém, prisão militar «construída com as pedras do antigo Convento de São Domingos, objeto de demolição para um projecto de uma Praça de Touros», conta Vítor. Acrescenta que «o edifício é lindíssimo, a arquitectura e cúpula são de uma beleza magníficas, para além da história associada à sua função de prisão política». Aqui esteve Otelo e também estiveram inúmeras equipas de produção de filmes e telenovelas que escolhem este edifício pelo seu estado de envergonhada ruína ainda mantendo os traços da sua individualidade arquitéctonica.
Que o Presídio não tenha o mesmo fim da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, é a opinião unânime de tio e sobrinha, à qual se junta Sofia Vieira, fundadora da Livraria Aqui Há Gato, eleita este ano como a livraria preferida dos portugueses. Todos recordam que foi daquela Escola, que saiu a chaimite de Salgueiro Maia em direção a Lisboa.
E é com Lisboa que Santarém comunga a importância do Tejo e a sua ligação ao rio, ao nível económico e social. A Ribeira de Santarém chegou a ser o segundo porto de comércio de Portugal e é na atual capital que encontramos a Rua de Cais de Santarém, a lembrar a hegemonia da cidade escalabitana, com os seus grupos sócio-profissionais dedicados a mostrar a preponderância económica dos minérios, produtos agrícolas e do rio bem como a dinâmica e movimento nesta zona do Ribatejo.
A chegada do comboio impactou a paisagem bem como o modo de vida das populações, cortando o laço económico com a ribeira e caracterizando Santarém com um estilo de vida profundamente agrícola, fechado sobre si mesmo. Contudo, a Porta do Sol abre para um dos quadros mais idílicos em Portugal, a lezíria e o Tejo.
Aliás, diz-se que a unicidade desta cidade do Ribatejo explica-se ao combinar um espaço ribeirinho que dá a mão ao Tejo e o planalto, a zona alta. Sim, e «é para cima que me diziam para olhar para conhecer Santarém», recorda Catarina. A sobrinha de Vítor recorda que, ao palmilhar as ruas na sua infância, insistiam que olhasse para os beirais, os ferros forjados e os varandins, sempre lá no alto.
Habituado a organizar visitas pela cidade, o professor desvenda que «a magia de Santarém reside em descobrir cantos e recantos, calcorreando as ruas, de manhã e especialmente à noite, para nos perdermos no silêncio da história que se conta a cada esquina». Esta abertura à história, ao recolhimento da sua antiguidade estão presentes na morfologia do centro histórico «que mantém a traça original desde o século XII ou até antes».
Centro histórico que é motivo de orgulho para Sofia, é onde nasceu, vive e trabalha. É também aqui que se localiza a Livraria Aqui Há Gato, que convida todos a caminharem e brincarem, seguindo as patinhas de um miau que se terá deslumbrado pelo centro histórico e o terá dominado com orgulho. A fundadora sempre soube que a Aqui Há Gato teria de ser mais do que uma livraria, «não podia ser só o livro o motivo da visita, o livro fechado é um mundo a descobrir», diz com um entusiasmo contagiante. É um projeto cultural com as suas oficinas de teatro de fantoches, teatro da luz negra, hora do conto, para nomear alguns. Estabelece as rotinas da cidade e do mundo. Sim, em tempo de confinamento, a hora do conto abriu-se ao mundo fazendo uso das novas tecnologias e hoje, a Aqui há Gato é mais do que uma livraria em Santarém, é um mundo de alegria na dedicação e na doçura da missão.
O Vale de Santarém é um desses lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita
E é também a doçaria que deixa rendida Sofia com os arrepiados, as celestes e os pampilhos que fazem as delícias dos visitantes e dos residentes. Catarina também diverge para a gastronomia que chama muitas pessoas à cidade para confortar a curiosidade da barriga. É também conciliando a gastronomia, a história e a literatura que Vítor organiza jantares temáticos. O último foi queirosiano, onde os pratos servidos são inspirados e referenciados nos textos de Eça de Queiroz, que também acompanham a refeição com a sua leitura. O conhecimento do professor combinado com a originalidade dá balanço a um programa comemorativo dos 100 anos do dramaturgo Bernardo Santareno planeado para novembro.
Terminamos como começamos, com Garrett que descobriu a beleza desta cidade do Ribatejo e de como em silêncio pelas ruas já se ouviam as histórias que as pedras guardam: «O Vale de Santarém é um desses lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, e reinar ali um reino de amor e de benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.»
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