Não é por acaso que a maior comunidade de fãs de Taylor Swift se chama “Taylor Nation". É mesmo uma nação, que fala uma linguagem própria que os turistas têm de aprender. Implica saber, por exemplo, a que se refere o cachecol vermelho de "All Too Well" [And I left my scarf there at your sister's house] e que "Bad Blood" alude à sua amizade (e falta dela à época) com Katy Perry tal como "Style" alude à sua relação com Harry Styles. E isto num nível básico de iniciação, porque os verdadeiros Swifties têm outra capacidade de descodificar e recodificar mensagens.
A nação Taylor tem a sua linguagem e tem os seus rituais. Durante semanas (meses!), as/os fãs de Taylor, em Portugal como em qualquer parte do mundo, fizeram pulseiras de missangas em que inscreveram títulos de músicas da cantora. Tudo porque em "You're On Your Own, Kid" ela escreveu 'so, make the friendship bracelets, take the moment and taste it | You’ve got no reason to be afraid'. A palavra está dita e a nação Taylor tem a força de uma comunidade que encontrou nas palavras dela um sentido que muitas vezes está ausente naquilo que nos acontece na vida.
O que nos leva ao concerto desta sexta-feira, o primeiro de dois, em Lisboa. Foi uma longa espera, desde a promessa de estreia que esteve marcada para o NOS Alive de 2020 e que a pandemia interrompeu até 24 de maio de 2024. Data auspiciosa, um verão que regressou à capital depois de semanas intermitentes de sol e chuva e 65 mil pessoas que esgotaram os bilhetes à venda. Vieram de todo o lado, apesar de a própria Taylor já ter tocado em todo o lado. Muitos americanos, espanhóis, mas também franceses, alemães, asiáticos. Os bilhetes – recorde-se – esgotaram há muito, portanto não foi uma compra de impulso. Quem veio, planeou vir a Lisboa para ver Taylor Swift. É uma nação e move-se.
Não será por isso de estranhar o adjetivo que a cantora usou ao descrever a emoção dos primeiros e ruidosos aplausos no Estádio da Luz. “Vocês fazem-me sentir tão poderosa”. É um adjetivo acertado – há um poder imenso que vai muita além da música. É conforto, é confissão, é redenção. São muitas coisas que se sentem e não se dizem e que ela, a Taylor, diz por todos.
O que tornou especialmente apropriada a entrada em palco, no Estádio da Luz, com o “Miss Americana and the Heartbreak Prince”, numa versão deliberadamente mais curta, mas que coloca a maior estrela atual da pop naquela que será um dos melhores cartões de visita para a apresentar: miss americana.
É efetivamente uma miúda americana, loura, de olhos azuis, pele branca. Uma miúda vistosa americana, que gosta de lantejoulas e de contos de fadas, que pode estar num churrasco do 4 de julho ou na Met Gala. Uma miúda americana em número, mas universal em denominador, o que a faz saltar barreiras de discussões mais ideológicas ou identitárias. Taylor é feminista ["Girls go out and have your fun/then they hunt and slay the ones who actually do it"], Taylor é defensora dos direitos LGBTI-Q ["Sunshine on the street at the parade /But you would rather be in the dark ages"] e Taylor é também a american sweetheart que as redes sociais deram como cancelada porque não gostou se ser alvo de uma canção (sexista e misógina, diga-se) de Kanye West, em 2015.
As misérias tornam-se menos miseráveis, porque ela também as teve
É isso tudo, mas vale a pena arriscar que os pilares da nação Taylor são feitos de outra matéria-prima, menos política e mais lá do fundo das emoções pelas quais todos passam. As misérias tornam-se menos miseráveis, porque ela também as teve. Usando uma terminologia em voga, Taylor é um espaço seguro. Felizes ou infelizes, o que se sente nunca é banal, porque os sentimentos importam e ela legitima-os e, em certa medida, racionaliza-os também. É uma espécie de manual para entender o mundo das emoções e das relações que temos uns com os outros e encontrar nisso um sentido.
“É a minha primeira vez em Portugal e é assim que nos recebem”. Paragem, fôlego, é apostável como cada um dos milhares de fãs se sentiu olhado nos olhos. Ela fala, eles sentem.
“Vamos juntos numa enorme aventura íntima”. São 18 anos de música. Coisas que aconteceram na minha vida, que senti ou que vieram da minha imaginação. Mas a partir de hoje tudo muda e contam as memórias que aqui vamos fazer”.
Pode uma “enorme aventura” que junta milhares ser “íntima”? Pode. Essa é, provavelmente, a grande magia de Taylor Swift. Pegar no que é dela, torná-lo de todos e fazer com que cada um sinta que é só dele, mas que faz parte de algo maior.
“My name is Taylor”. Taylor é poderosa e poder é isto.
A Eras Tour é a Era Taylor
E é nesse momento que deixa de ser “americana” e passa a ser de todo o lado. Ontem foi de Lisboa ou talvez simplesmente Lisboa se tenha juntado ontem, fisicamente, à nação. E é por isso que é tão natural sair de “Miss Americana” para "Cruel Summer" para depois nos juntarmos na tão boa opção de colar "The Man” e “You Need To Calm Down”. Queremos todos falar de amor, queremos todos desnudar o patriarcado e os preconceitos. O valor da palavra torna-se o valor moral. Taylor escreveu, o código está definido.
É também por isso que não é estranho ver, lado a lado, meninas de 14 anos e mulheres de 50 a cantar “Lover” – a canção que se segue - com a mesma verdade. A história é de cada um, mas a verdade é a mesma. E assim continua no segundo segmento do concerto numa viagem pelos anos do secundário, de quem tem 14, ou do liceu, de quem tem 50 ou mais. É o intemporal “You Belong With Me” a antecipar o universal “Love Story”.
A colegial a quem partiram o coração cresceu. E até já nem tinha 22 quando o álbum Red foi publicado, mas isso não importa. Taylor cresceu e é uma mulher. Teve paixões, houve desgostos, teve certezas que lhe devolveram dúvidas. É mulher, mas é menina, é amante, é traída, é amiga, é irmã, é filha e um dia será eventualmente mãe.
É essa Taylor que pode escrever “All Too Well” e, em pleno estádio da Luz, como noutros outros lugares do mundo. É mais uma oração do que uma canção iluminada pelas velas que se acendem em cada pulso (as pulseiras de entrada estão pensadas para isso mesmo). Taylor canta uma dor e uma revolta que é sempre benigna, mas nunca mansa. Canta "All Too Well" como se a dor que ali despeja fosse agora, naquele exato momento, no exato sentimento. Tudo o que lhe aconteceu um dia acontece a alguém todos os dias e no palco ela nunca se esquece disso.
Olhamos à volta e há miúdas de 8, de 10, de 12 anos que a recitam. Ao colo do pai, abraçada à mãe, sentadas no chão com a melhor amiga. Antes delas outras miúdas fizeram o mesmo, há 15, há 10 anos. A Eras Tour é a Era Taylor e as gerações que crescem a recitá-la.
O momento é emocional e vai continuar emocional. Assim ficou decidido quando escolheram o alinhamento para a noite de estreia em Lisboa. De "All Too Well" seguimos para “Enchanted”, uma incursão pelo álbum Speak Now – aquele que rezam as crónicas foi provado que a garota da Pensilvânia que começou no country conseguia mesmo escrever as suas próprias músicas.
A boa menina. A má menina.
Taylor é uma jovem escuteira e Taylor é uma mulher sexy - sem nunca ser exatamente uma sex symbol. Pueril em “Enchanted” para a seguir interpelar: “Are you ready for it?”. A sexy Taylor tem sonhos, a sexy Taylor não tem vergonha - e ainda assim continua a ser confiável para que um pai ou uma mãe entregue a filha de 12 anos à sua “educação” ou tutoria. É sexy, mas é inocente e imaculada. Essa é outra das facetas do poder de Taylor. Nunca se torna desconfortável. E este segmento do espetáculo é provavelmente o melhor exemplo disso, rematado com uma incrível atuação em “Look What You Made Me Do”. Uma cobra no paraíso – alusão aos meses em que a cantora se confrontou com o então power couple Kanye West e Kim Kardashian – que deixou a sua marca. “Old Taylor is dead”.
O tempo em que aprendes tudo e não sabes nada
E agora que os pontos estão nos is, podemos rumar a outra era. De regresso à Taylor-menina, ao conto de fadas, ao tempo em que aprendes tudo e não sabes nada. “When you are young they assume you know nothing”. É a era da pandemia, aquela em que, confessa, começou a escrever o álbum Folklore dois dias depois de termos ficado fechados em casa. Depois seguiu-se Evermore. Pede que os vejamos como álbuns gémeos, o primeiro que associa à primavera e ao verão, o segundo ao outono e ao inverno.
“Na minha imaginação havia uma senhora vitoriana elegante a andar pela floresta a recitar poemas”. Foi assim que se refugiou nesses dias em que era “uma millennial solitária”.
É neste segmento que iremos ouvir “Champagne Problems”, o momento que regista os mais de três minutos de ovação do Estádio da Luz. Os que não fazem parte da nação Taylor vêem e não compreendem. Ou só compreendem o que vêem. De novo, o adjetivo – é poderoso um estádio inteiro iluminado com palmas que não cessam. É bonita aquela espécie de comunhão. E é comovente acreditar na verdadeira comoção de Taylor que retira os phones que mantém durante a atuação e se levanta do piano para agradecer. Terá lágrimas, talvez, sorri de certeza, é um momento bonito.
O que a nação Taylor sabe também é que este é mais um ritual daquele sítio que habitam onde os gestos não são só gestos, há uma história, um significado. E aqui o que começou por uma primeira ovação num primeiro concerto cresceu para uma espécie de ritual-competição em cada cidade onde a cantora atua. Lisboa, é verdade, pontuou bem.
Seguimos para “August” em procissão e chegamos a "Marjorie".
Never be so kind, you forget to be clever Never be so clever, you forget to be kind
Coração e razão, de novo. O certo, o errado, o que faz nos faz bem, o que nos faz mal.
O desfile de Taylor Swift e dos bailarinos que a acompanham é uma linha que acompanha a (extraordinária) coreografia de todo o espetáculo. Mas não vamos perder o fio à meada. Estamos a falar de poder – o poder da palavra e é a palavra que orienta a vida.
Taylor é a cheerleader que levanta um estádio
Já olhámos para dentro de nós, já refletimos, agora é tempo de festa.
E a festa chega – como não? – com 1989, o álbum icónico com a data de nascimento de Taylor Swift, para muitos o melhor de todos os 11 eu já publicou e que agora completa 10 anos.
Taylor é a cheerleader que levanta um estádio e que nos põe a dançar “Style”. E depois é a líder emocional para quem todos apontam o dedo quando canta “'cause you know I love the players and you love the game”, o refrão de “Blank Space””. Estamos num ponto alto da noite e a noite é longa – um insulto para qualquer nativo da nação Taylor, porque este é um universo sem falhas, logo sem pontos baixos (o que talvez seja o maior problema da nação, na verdade). Lançados para “Shake it Off”. O hit que entrou pela porta dentro de todos os que tenham ouvidos, mas que é também a prova do algodão. És um verdadeiro habitante da nação? Então sabes que não foi o primeiro hit.
A razão pela qual 1989 é o mais tayloriano dos álbuns é também pela harmonia com que luz e sombra, festa e fim de festa, guerra e paz se articulam. E na amosta que Taylor trouxe a Lisboa esteve tudo lá, tivemos “Say you remembre me” e “Bad blood”.
A última parte do concerto não teria acontecido há um mês e 5 dias. Porque foi exatamente a 19 de abril que a cantora lançou “The Tortured Poets Department” que trouxe um conjunto de 31 novas músicas para integrar o alinhamento. 36 dias para recitar sem reservas 31 músicas? Sim é possível na nação Taylor – e algumas das músicas, diga-se, bem o merecem.
Aos fiéis, Taylor é a voz que faz ouvir as verdades de cada um e traz a recompensa depois da tempestade, a segurança depois do abandono. E e é por isso que as derrotas-vitórias da cantora são tão importantes como as de quem as entoa. “Who’s Afraid of Little Old Me?” tem muito disso .
Este é o segmento reservado para uma performance cénica e musical que entra direto na categoria “construir memórias”. A música é Fortnight e a atuação é a todos os títulos memorável. I love you, it’s ruining my life.
O que ela consegue fazer com um coração partido
Segue-se “I Can Do It With a Broken Heart". A tristeza alegre é muito isto.
Em 2012, foi sem melancolia que também cantou "We Are Never Ever Getting Back Together", que muitos atribuem como dedicatória à relação falhada com Jake Gyllenhaal [teve direito a entrar no alinhamento de Lisboa, bem como "I Knew You Were Trouble"].
Cada um lê como quer o manual Taylor para as alegrias e tristezas da vida. É desta comunhã que é feito este universo.
O problema (não) é ela
Falta o momento supresa, mais um ritual, aquele em que ninguém sabe que música será levada a palco, porque são sempre diferentes e esse é mais um motivo para haver adrenalina na nação Taylor. Em Lisboa, Taylor cantou "Fresh Out the Slammer", música do último álbum que nunca tinha cantado ao vivo até ontem, além de "Come Back… Be Here", "The Way I Loved You" e "The Other Side of the Door".
É uma Taylor ao piano, em frente à moldura do estádio que brilha em luzes que piscam, em feixes que se erguem ao céu. Separa esta frente de palco até ao palco onde se encontra a banda a distância de meio relvado pelo menos. A produção do Eras Tour volta a surpreender com a imagem no mega-ecrã que espelha uma piscina por onde nada uma mancha vermelha, da mesma cor do vestido que Taylor tem vestido mesmo antes de se sumir lá da frente.
Estamos quase a chegar ao fim. E que melhor do que "Anti-Hero" como corolário de um espaço confessional e redentor. Sobre esta música que faz parte do álbum "Midnights",Taylor disse que era honesta e a sua favorita."É um tour guiado por todas as coisas que costumo odiar em mim mesma. Todos nós odiamos coisas em nós mesmos". O problema é ela, canta no refrão [“It’s me, hi / I’m the problem it’s me"] e, para milhões que escutam, há conforto na companhia. O problema não é dela, é de todos.
Quem já viu, e foram muitos, a maioria talvez, o Eras Tour no cinema ou em casa, sabe pode contar com “Karma” a fechar. Há quem discorde, mas é um fecho perfeito para o que acabámos de assistir. Tudo isto é karma.
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