I. O homem de Roma

Por algum motivo traz a espada. É o agente de Deus.
Bernardo de Claraval, Elogio da Milícia Templária

Foi no começo de março que Lorenzo Quart recebeu a ordem que havia de levá-lo a Sevilha. Uma tempestade deslocava-se em direção ao Mediterrâneo Oriental, e a frente chuvosa passava naquela manhã sobre a praça de São Pedro de Roma, de tal modo que Quart teve de caminhar em semicírculo, protegendo-se da água sob a colunata de Bernini. Enquanto se aproximava da Porta de Bronze verificou que a sentinela, recortada com a sua alabarda na penumbra do corredor de mármore e granito, se dispunha a identificá-lo. O guarda era um suíço alto e forte, de crânio rapado sob a boina negra do uniforme renascentista às riscas vermelhas, amarelas e azuis; e Quart viu que observava com curiosidade o corte impecável do seu fato escuro, a condizer com a camisa de seda negra de colarinho romano e os sapatos de pele fina e também negra, cosidos à mão. Nada que ver, dizia aquele olhar, com os cinzentos bagarozzi, os funcionários da complexa burocracia do Vaticano que por ali passavam diariamente. Mas, como se podia ler nos desconcertados olhos claros do suíço, também não era um aristocrata da Cúria: um daqueles prelados e monsenhores que, no mais discreto dos casos, exibiam uma cruz, um filete de púrpura ou um anel. Esses não chegavam a pé, debaixo de chuva, mas acediam ao Palácio Apostólico por outra porta, a de Santa Ana, a bordo de confortáveis automóveis com motorista. Além disso, o homem que se detinha, cortês, diante da sentinela e tirava do bolso uma carteira de pele, procurando a sua identificação entre diversos cartões de crédito, era demasiado jovem para a mitra, apesar do cabelo salpicado de cãs, que usava curto, como o de um militar. Muito alto, delgado, tranquilo e seguro de si, observou o suíço, com olhar profissional. Mãos de unhas tratadas, relógio de mostrador branco, botões de punho em prata de desenho singelo. Deu-lhe, quando muito, quarenta anos.

— Guten Morgen. Wie ist der Dienst gewesen?

Não foi a saudação, formulada em perfeito alemão, que fez a sentinela erguer-se e apresentar a alabarda, mas as siglas IOE junto da tiara e das chaves de São Pedro no canto superior direito do documento de identidade que lhe mostrava o recém-chegado. O Instituto para as Obras Exteriores figurava no grosso tomo vermelho do Anuário Pontifício como uma dependência da Secretaria de Estado; mas até o mais bisonho recruta da Guarda Suíça estava a par de que, durante dois séculos, o Instituto tinha funcionado como o braço executivo do Santo Ofício, e agora coordenava todas as atividades secretas dos Serviços de Informação do Vaticano. Os membros da Cúria, mestres na arte do eufemismo, costumavam referir-se a ele como A Mão Esquerda de Deus. Outros limitavam-se a chamar-lhe – nunca em voz alta – Departamento dos Assuntos Sujos.

— Kommen Sie herein.

— Danke.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Deixando para trás a sentinela, Quart franqueou a velha Porta de Bronze, dirigindo-se para a direita, passou diante da ampla escadaria da Scala Regia e, depois de se deter em frente da mesa de apresentação de credenciais, subiu dois a dois os degraus de uma sonora escada de mármore no alto da qual, atrás da porta envidraçada vigiada por outra sentinela, se abria o pátio de São Dâmaso. Atravessou em diagonal sob a chuva, observado por outros guardas que, cobertos com capas azuis, protegiam cada uma das portas do palácio apostólico. Subindo por outra curta escada, parou no penúltimo degrau, diante de uma porta junto da qual havia uma discreta placa metálica aparafusada: Instituto per le Opere Esteriori. Tirou então um lenço de papel do bolso, para secar as gotas de água do rosto. Depois, inclinando-se sobre os sapatos, utilizou-o para limpar os restos de chuva, fez com ele uma pequena bola e atirou-o para um cinzeiro de latão que havia junto da porta, antes de verificar o estado dos punhos negros da camisa, esticar o casaco e tocar à campainha. Ao contrário dos outros sacerdotes, Lorenzo Quart tinha perfeita consciência da sua debilidade no tocante a virtudes mais ou menos teologais: a caridade ou a compaixão, por exemplo, não eram o seu forte. Nem tão-pouco a humildade, apesar da sua natureza disciplinada. Carecia de tudo isto, mas não de minúcia, ou rigor, e este facto tornava-o valioso para os seus superiores. Como sabiam os que esperavam por detrás daquela porta, o padre Quart era preciso e fiável como um canivete suíço.

Faltava a luz no edifício, e a única luminosidade que entrava no gabinete era a claridade parda de uma janela aberta para os jardins do Belvedere. Enquanto o secretário fechava a porta atrás de si, Quart deu cinco passadas depois de cruzar o umbral e deteve-se mesmo no centro da sala, entre o ambiente familiar das paredes, onde estantes com livros e arquivadores de madeira ocultavam parte dos mapas pintados a fresco por Antonio Danti durante o pontificado de Gregório XIII: o mar Adriático, o Tirreno e o Jónico. Depois, ignorando a silhueta que se recortava a contraluz na janela, fez uma breve vénia ao homem sentado atrás de uma grande mesa coberta de pastas com documentos.

— Monsenhor – disse.

O arcebispo Paolo Spada, diretor do Instituto para as Obras Exteriores, devolveu-lhe um silencioso sorriso de cumplicidade. Era um lombardo forte, maciço, quase quadrado, com ombros possantes sob o trajo negro de três peças que usava sem distintivo algum da sua hierarquia eclesiástica. Com a cabeça pesada e o pescoço largo, parecia um camionista, um lutador ou – talvez mais apropriado em Roma – um gladiador veterano que tivesse trocado a espada curta e o capacete de mirmidão pelo hábito escuro da Igreja. Reforçava este aspeto o cabelo ainda negro e duro como ásperas cerdas, e as mãos enormes, quase desproporcionadas, sem o anel de arcebispo, que nesse momento brincavam com uma faca de papel em bronze, em forma de adaga. Com ela apontou para a silhueta da janela:

— Conhece o cardeal Iwaszkiewicz, suponho.

Só então Quart olhou para a sua direita e saudou a silhueta imóvel. Claro que conhecia Sua Eminência Jerzy Iwaszkiewicz, bispo de Cracóvia, promovido à púrpura cardinalícia pelo seu compatriota, o papa Wojtila, e prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, conhecida até 1965 pelo nome de Santo Ofício, ou Inquisição. Mesmo como silhueta delgada e obscura a contraluz, Iwaszkiewicz e aquilo que representava eram inconfundíveis.

— Laudeatur Jesus Christus, Eminência.

O diretor do Santo Ofício não respondeu à saudação, mantendo-se parado e em silêncio. Foi a voz rouca de monsenhor Spada que introduziu o assunto:

— Se quiser pode sentar-se, padre Quart. Esta reunião é oficiosa e Sua Eminência prefere estar de pé.

Tinha utilizado o termo italiano ufficiosa e Quart captou a diferença. Na linguagem do Vaticano, a distinção entre o ufficiale e o ufficioso era importante. Este último tinha o carácter especial do que se pensava frente ao que se dizia, ou mesmo do que chegava a dizer-se, embora nunca se admitisse tê-lo dito. Mesmo assim, Quart olhou para a cadeira que, com outro movimento da faca, lhe oferecia o arcebispo, e negou suavemente com a cabeça, antes de cruzar as mãos atrás das costas, enquanto aguardava de pé no meio da sala, com um ar descontraído e tranquilo, como um soldado atento a qualquer ordem.

Monsenhor Spada fitou-o, aprovador, semicerrando os olhos astutos cujo branco era sulcado por laivos castanhos semelhantes aos de um velho cão. Aqueles olhos, o ar maciço e o cabelo de fios espessos, haviam-lhe valido uma alcunha – O Mastim –, que só ousavam utilizar, em voz adequadamente baixa, os mais destacados e seguros membros da Cúria.

— Folgo em vê-lo de novo, padre Quart. Já lá vai algum tempo.

Dois meses, recordava Quart. E, naquela ocasião, também eram três as pessoas presentes no gabinete: eles os dois e um conhecido banqueiro, Renzo Lupara, presidente do Banco Continental de Itália, uma das entidades vinculadas ao aparelho financeiro do Vaticano. Lupara, atilado, composto, de irrepreensível moral pública e feliz pai de família, abençoado por Deus com uma bela esposa e quatro filhos, fizera fortuna utilizando a cobertura bancária do Vaticano para desviar dinheiro de empresários e políticos membros da loja Aurora 7, a que pertencia com o grau 33. Era exatamente o tipo de assuntos mundanos que requeriam a especialização de Lorenzo Quart; de modo que, durante seis meses, tratara de seguir o rasto que Lupara deixara na alcatifa de certos gabinetes de Zurique, Gibraltar e São Bartolomeu, nas Antilhas. O fruto daquelas viagens fora um completíssimo dossier que, aberto sobre a mesa do diretor do IOE, colocara o banqueiro perante a alternativa da cadeia ou de um discreto exitus que deixasse a salvo o bom nome do Banco Continental, do Vaticano e, se possível, da senhora e dos quatro rebentos Lupara. Ali, no gabinete do arcebispo, com os olhos esgazeados sobre o fresco que representava o mar Tirreno, o banqueiro havia captado a essência da mensagem – que monsenhor Spada expôs com muito tato, servindo-se da parábola do mau servo e dos talentos. Depois, apesar da saudável advertência de que um maçon não arrependido morre sempre em pecado mortal, Lupara fora diretamente para uma bonita villa que possuía em Capri, diante do mar, para cair, ao que parece inconfesso, do varandim de um terraço que dava para o penhasco, no mesmo sítio onde, segundo rezava a respetiva placa comemorativa, uma vez tomou vermute Curzio Malaparte.

— Temos um assunto para si.

Quart continuou a aguardar, imóvel, no meio da sala, atento às palavras do seu superior, ao mesmo tempo que sentia o olhar invisível de Iwaszkiewicz, vindo da sombra em contraluz junto à janela. Nos últimos dez anos, o arcebispo tivera sempre um assunto adequado ao sacerdote Lorenzo Quart; e todos eles estavam assinalados com nomes e datas Europa Central, América Latina, a antiga Jugoslávia – na agenda de cabedal negro que era o seu livro de viagem: uma espécie de diário de bordo onde registava, dia a dia, o longo caminho percorrido desde a adoção da cidadania do Vaticano e da sua entrada na secção operacional do Instituto para as Obras Exteriores.

— Veja isto.

O diretor do IOE segurava ao alto, entre os dedos polegar e indicador, uma folha de papel impressa a computador. Quart estendeu a mão e, nesse momento, a silhueta do cardeal Iwaszkiewicz moveu-se, inquieta, na janela. Ainda com a folha na mão, monsenhor Spada sorriu um pouco.

— Sua Eminência é da opinião de que o tema é delicado – disse, sem tirar os olhos de Quart, embora fosse evidente que as suas palavras eram destinadas ao cardeal. – E não está convencido de que seja prudente ampliar o número de iniciados.

Quart retirou a mão sem agarrar o documento que monsenhor Spada continuava a oferecer-lhe e olhou o superior com ar tranquilo, aguardando.

— Naturalmente – acrescentou Spada, cujo sorriso se refugiava agora nos olhos – Sua Eminência está longe de o conhecer como eu o conheço.

Quart esboçou um leve gesto de assentimento e esperou sem fazer perguntas nem revelar impaciência. Então, monsenhor Spada voltou-se para o cardeal Iwaszkiewicz:

— Já lhe disse que era um bom soldado.

Sobreveio um silêncio, enquanto a silhueta permanecia imóvel, recortada no céu de nuvens e na chuva que caía sobre o jardim do Belvedere. Depois, o cardeal afastou-se da janela, e a claridade parda, diagonal, deslizou sobre o seu ombro para revelar um maxilar ossudo, o colarinho púrpura da sotaina, o reflexo de uma cruz de ouro sobre o peito, o anel pastoral na mão que, dirigida para monsenhor Spada, pegava no documento e o entregava, ela mesma, a Lorenzo Quart.

— Leia.

Quart obedeceu à ordem, formulada num italiano gutural com ressonâncias polacas. A folha de papel de impressora continha um memorando em poucas linhas:

Santo Padre:

Este atrevimento justifica-se pela gravidade da matéria. Por vezes a cadeira de Pedro está demasiado longe e as vozes humildes não chegam até ela. Existe um lugar em Espanha, em Sevilha, onde os vendilhões ameaçam a casa de Deus, e onde uma pequena igreja do século xvII, desamparada pelo poder eclesiástico tanto como pelo secular, mata para se defender. Rogo a Vossa Santidade, como pastor e como padre, que volte os olhos para as mais humildes ovelhas do seu rebanho, e peça contas a quem as abandona à sua sorte.

Suplicando a Vossa bênção, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Apareceu no computador pessoal do Papa – esclareceu monsenhor Spada, quando o seu subordinado concluiu a leitura. – Não está assinado.

— Não está assinado – repetiu Quart, mecanicamente. Costumava repetir em voz alta algumas palavras, do mesmo modo como os timoneiros e suboficiais repetem as ordens dos superiores; como se, ao fazê-lo, concedesse a si mesmo, ou aos outros, oportunidade para refletir sobre elas. No seu mundo, algumas palavras equivaliam a ordens. E certas ordens, por vezes uma simples inflexão, uma cambiante, um sorriso, podiam ser irreparáveis.

–O intruso – dizia o arcebispo – serviu-se de truques para dissimular o ponto de origem exato. Mas a investigação confirma que a mensagem foi escrita em Sevilha, com um computador ligado à rede telefónica.

Quart leu o papel pela segunda vez, tomando o seu tempo.

— Fala de uma igreja... interrompeu-se, à espera de que alguém completasse a frase por ele. Soava demasiado estúpido, dito em voz alta.

— Sim – confirmou monsenhor Spada –, uma igreja que mata para se defender.

— Uma atrocidade – comentou Iwaszkiewicz, sem especificar se se referia ao conceito ou ao objeto.

— De todas as formas – acrescentou o arcebispo –, confirmámos a sua existência. Refiro-me à igreja – e dirigiu um olhar fugaz ao cardeal, antes de passar um dedo pelo gume da faca. – E comprovámos também uns quantos factos irregulares e desagradáveis. Quart pousou o documento em cima da mesa do arcebispo, que contudo não lhe tocou, limitando-se a olhá-lo como se esse ato pudesse acarretar consequências duvidosas. O cardeal Iwaszkiewicz aproximou-se então para pegar no papel e, depois de o dobrar em quatro, introduziu-o no bolso. Em seguida, encarou Quart:

— Queremos que vá a Sevilha e identifique o autor.

Estava muito perto, e esta proximidade desagradou a Quart, que quase podia sentir-lhe o hálito. Susteve o seu olhar durante alguns segundos, depois, fazendo um esforço para não recuar um passo, olhou para monsenhor Spada por cima do ombro do cardeal, para ver que sorria breve e ligeiramente, agradecendo-lhe aquele modo de estabelecer a sua lealdade ao escalão hierárquico.

— Quando Sua Eminência fala no plural esclareceu o arcebispo da sua cadeira –, refere-se, evidentemente, a ele e a mim. E, acima de nós, à vontade do Santo Padre.

— Que é a vontade de Deus – sublinhou Iwaszkiewicz, quase provocador, mantendo a curta distância que os separava e as pupilas negras, duras, fixas em Quart.

— Que é, com efeito, a vontade de Deus – confirmou monsenhor Spada, sem que fosse possível detetar no seu tom algum indício de ironia. Apesar do seu poder, o diretor do IOE conhecia perfeitamente os limites, e aquele olhar era uma advertência ao subordinado: ambos se moviam em águas perigosas.

— Compreendo – disse Quart e, fixando de novo os olhos do cardeal, esboçou uma breve e disciplinada vénia. Iwaszkiewicz pareceu descontrair-se um pouco, ao mesmo tempo que, nas suas costas, monsenhor Spada movia a cabeça, aprovador:

— Já lhe disse que o padre Quart...

O polaco ergueu, para interromper o arcebispo, a mão onde luzia o anel cardinalício.

— Sim, eu sei. – Fitou pela última vez o sacerdote e deixou de se entrepor entre ambos, dirigindo-se de novo para a janela. – Já o disse e repetiu antes. Disse que era um bom soldado.

Falara com irónico fastio, e pôs-se a observar a chuva como se estivesse desinteressado do assunto. Monsenhor Spada largou a faca em cima da mesa para abrir uma gaveta, de onde tirou uma grossa pasta de cartolina azul.

— Identificar o autor da carta é apenas uma parte do trabalho – disse, colocando a pasta diante de si. – Que deduziu da sua leitura?

— Que poderia ter sido escrita por um eclesiástico – respondeu Quart, sem vacilar. Depois fez uma pausa, antes de acrescentar: – E que talvez esteja completamente louco.

— É possível. – Monsenhor Spada abriu a pasta, folheando um dossier que continha recortes de jornais. – Mas é um especialista informático e os factos que cita são autênticos. Essa igreja tem problemas. E também os causa. As mortes são reais: duas nos últimos três meses. Tudo soa a escândalo.

— Soa a algo pior – disse o cardeal sem se voltar, a silhueta de novo recortada a contraluz.

— Sua Eminência – esclareceu o diretor do IOE – defende a ideia de que o Santo Ofício deve envolver-se no assunto. – Fez uma pausa significativa. – À velha maneira.

— À velha maneira – repetiu Quart. Não gostava, na Congregação para a Doutrina da Fé, nem da velha nem da nova maneira, e isso devia-se também às suas recordações. Entreviu, por um instante, num recanto da sua memória, o rosto de um sacerdote brasileiro, Nelson Corona: um pároco de favelas, um daqueles homens da Igreja da Libertação para cujo caixão ele havia fornecido a madeira.

— O nosso problema – prosseguia monsenhor Spada – é que o Santo Padre deseja uma averiguação rigorosa. Mas parece-lhe excessivo envolver nisto o Santo Ofício. Matar moscas a tiros de canhão. — Fez uma pausa calculada, olhando fixamente Iwaszkiewicz. – Ou com lança-chamas.

— Já não queimamos ninguém – ouviram o cardeal dizer, como se falasse com a chuva. Parecia lamentar que assim fosse.

— Em todo o caso – continuou o arcebispo –, decidiu-se que, de momento – e frisou o de momento de forma significativa –, é o Instituto para as Obras Exteriores que irá realizar a investigação. Ou seja, o senhor. E só no caso de se manifestarem indícios de gravidade, o problema seria transferido para o braço oficial da Inquisição.

— Recordo-lhe, irmão em Cristo – o cardeal continuava de costas para eles, virado para o Belvedere –, que a Inquisição deixou de existir há trinta anos.

— É certo, que Vossa Paternidade me desculpe. Quis dizer: transferir o problema para o braço oficial da Congregação para a Doutrina da Fé.

— Já não queimamos ninguém repetiu Iwaszkiewicz, obstinado. Havia agora na sua voz um eco obscuro, um presságio de ameaça.

Monsenhor Spada guardou silêncio durante uns segundos, sem tirar os olhos de Quart. «Já não queimam ninguém, mas soltam os cães negros», dizia aquele olhar. Acossam, desprestigiam e matam a pessoa. Já não queimam ninguém, mas cuidado com ele. Este polaco é perigoso para ti e para mim; e o mais vulnerável dos dois és tu.

— O senhor, padre Quart – desta vez, ao falar de novo, o diretor do IOE adotou um tom cuidadoso e formal –, irá instalar-se durante alguns dias em Sevilha... Fará os possíveis por identificar o autor da carta. Manterá um contacto prudente com a autoridade eclesiástica local. E, sobretudo, conduzirá o assunto por caminhos discretos e razoáveis. – Colocou outro dossier em cima do anterior. – Aqui está toda a informação de que dispomos. Alguma pergunta?

— Uma única, monsenhor.

— Pois então diga.

— O mundo está cheio de igrejas com problemas e escândalos potenciais. Que tem esta de especial?

O arcebispo dirigiu um olhar para as costas do cardeal Iwaszkiewicz, mas o inquisidor mantinha-se em silêncio. Depois, inclinou-se um pouco sobre as pastas da mesa, como se procurasse nelas uma revelação de última hora.

— Presumo – disse finalmente – que o pirata informático teve muito trabalho, e o Santo Padre soube apreciá-lo.

— Apreciá-lo parece-me excessivo – observou Iwaszkiewicz, distante.

Monsenhor Spada encolheu os ombros:

— Digamos então que Sua Santidade decidiu distingui-lo com uma atenção pessoal.

— Apesar da sua insolência e ousadia – voltou a observar o polaco.

— Apesar de tudo isso – concluiu o arcebispo. – Por algum motivo, esta mensagem no seu computador privado desperta-lhe curiosidade. Quer manter-se informado.

— Manter-se informado – repetiu Quart.

— Pontualmente.

— Uma vez em Sevilha, devo também consultar a autoridade eclesiástica local?

O cardeal Iwaszkiewicz voltou-se para ele:

— A sua única autoridade neste assunto é monsenhor Spada.

Nesse momento, a corrente elétrica restabeleceu-se e a grande aranha do teto iluminou a sala, arrancando reflexos à cruz de diamantes e ao anel na mão que apontava para o diretor do IOE:

A Pele do Tambor
A Pele do Tambor créditos: ASA

Livro: "A Pele do Tambor"

Autor: Arturo Pérez-Reverte

Editora: ASA

Publicação: 24 de janeiro

Preço: €17,91

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— Deverá informá-lo a ele. E só a ele.

A luz elétrica suavizava um pouco os ângulos do seu rosto, matizando a linha fina e obstinada de uns lábios apertados e duros. Uma dessas bocas que, ao longo da vida, nunca beijaram senão ornamentos, pedra e metal.

Quart fez um gesto afirmativo:

— Só a ele, Eminência. A diocese de Sevilha, no entanto, tem o seu ordinário, que é um arcebispo. Quais as minhas instruções a esse respeito?

Iwaszkiewicz entrelaçou as mãos sob a cruz de ouro, contemplando as unhas dos polegares:

— Somos todos irmãos em Cristo Nosso Senhor. De modo que são desejáveis relações amenas, e mesmo de cooperação. Mas o senhor gozará ali de dispensa no tocante à obediência. A Nunciatura de Madrid e o arcebispado local receberam instruções.

Quart voltou-se para monsenhor Spada antes de responder ao cardeal:

— Talvez Sua Paternidade ignore que não gozo da simpatia do arcebispo de Sevilha...

Era certo. Dois anos antes, uma questão de competências sobre a segurança da viagem papal à capital andaluza tinha causado uma áspera confrontação entre Quart e Sua Eminência Ilustríssima Don Aquilino Corvo, titular da sede hispalense. Apesar do tempo que passara, ainda se faziam sentir os efeitos daquela divergência.

— Conhecemos os seus problemas com monsenhor Corvo – disse Iwaszkiewicz. – Mas o arcebispo é um homem da Igreja, e saberá colocar o bem superior acima das suas antipatias pessoais.

— Estamos todos na barca de Pedro – permitiu-se dizer monsenhor Spada, e Quart compreendeu que, apesar do perigo que havia em lidar com Iwaszkiewicz, o IOE tinha bons trunfos naquela história. «Ajuda-me a jogá-los», diziam os olhos do superior.

–O arcebispo de Sevilha foi posto ao corrente, por uma questão de cortesia – comentou o polaco. – Mas o senhor tem plena autonomia para obter toda a informação necessária, utilizando qualquer tipo de recursos.

— Legítimos, evidentemente – observou, de novo, monsenhor Spada.

Quart conteve-se para não sorrir. Iwaszkiewicz olhava alternadamente para um e outro.

Tinha erguido a mão do anel para tocar na sobrancelha, e o gesto, aparentemente inocente, parecia conter uma advertência. «Tenham cuidado com as vossas brincadeirinhas de clube escolar», traduzia aquilo. «O último a rir é quem ri melhor, e eu não tenho pressa. Um único deslize e tenho-vos na mão.»

— O senhor, padre Quart – prosseguiu o cardeal –, deve ter presente que a sua missão é meramente informativa. De modo que manterá a maior neutralidade. Mais tarde, consoante o material que nos apresente, estabeleceremos formas de atuação concretas. De momento, encontre o que encontrar por lá, evite toda a publicidade ou escândalo. Com a ajuda de Deus, naturalmente. – Fez uma pausa para observar o fresco do mar Tirreno e moveu a cabeça como se lesse nele uma mensagem oculta. Recorde que, nos tempos que correm, nem sempre a verdade nos liberta. Refiro-me à verdade ventilada em público.

Estendeu a mão do anel com gesto imperioso, brusco, apertando a linha dos lábios e com os olhos escuros e ameaçadores fixos em Quart. Mas este era um bom soldado, que escolhia os seus amos, de modo que aguardou um segundo mais do que o necessário e só então se inclinou para pôr o joelho no chão e beijar o rubi vermelho do anel. O cardeal ergueu dois dedos da mesma mão e traçou sobre a cabeça do sacerdote um lento sinal da cruz, que podia ser interpretado como uma bênção ou como uma ameaça. Depois abandonou o gabinete.

Quart exalou o ar contido nos pulmões e pôs-se de pé, sacudindo as calças sobre o joelho assente no chão. Ao virar-se para monsenhor Spada, tinha os olhos cheios de perguntas.

— Que acha dele? – inquiriu o diretor do IOE. Tinha voltado a pegar na faca e mostrava um sorriso preocupado ao apontar com ela a porta por onde saíra Iwaszkiewicz

— Ufficioso ou ufficiale, monsenhor?

— Ufficioso.

Não teria gostado nada de cair nas mãos dele há duzentos ou trezentos anos – respondeu Quart.

O superior acentuou o sorriso:

— Porquê?

— Bom, dir-se-ia um homem muito duro.

— Duro? – O arcebispo olhou de novo na direção da porta e Quart viu que o sorriso depressa se desvanecia na sua boca. Se não fosse pecar contra a caridade relativamente a um irmão em Cristo, eu diria que Sua Eminência é um perfeito filho da mãe.

Desceram juntos a escada de pedra aberta sobre a Via del Belvedere, onde aguardava o carro oficial de monsenhor Spada. O arcebispo tinha um encontro perto da casa de Quart, na Cavalleggeri e Filhos. Cavalleggeri era, há um par de séculos, o alfaiate que vestia toda a aristocracia da Cúria, incluindo o Papa. O seu atelier ficava na Via Sistina, junto da praça de Espanha, e o arcebispo ofereceu-se para deixar Quart nas proximidades. Saíram pela porta de Santa Ana e, através dos vidros embaciados, viram os guardas suíços perfilar-se à passagem do automóvel. Quart sorriu, divertido, pois monsenhor Spada não era popular entre os suíços do Vaticano; uma investigação do IOE sobre presumíveis casos de homossexualidade na Guarda terminara com meia dúzia de despedimentos forçados. Além disso, de vez em quando e para matar o tempo, o arcebispo concebia perversos simulacros destinados a comprovar a segurança interna; como a infiltração no Palácio Apostólico de um dos seus agentes, à paisana e provido de um frasco de suposto ácido sulfúrico para a Crucificação de São Pedro, na capela Paulina. O intruso tirou uma fotografia polaroid em cima de um banco, diante da pintura, e com um sorriso de orelha a orelha. E monsenhor Spada enviou-a, acompanhada de uma nota interna bastante irónica, ao coronel da Guarda Suíça. Tinham decorrido seis semanas desde então e ainda rolavam cabeças.

— Chama-se Vésperas – disse monsenhor Spada.

O automóvel guinava para a direita e em seguida para a esquerda, depois de passar sob os arcos da porta Angélica. Quart olhou para as costas do motorista, separado por um anteparo que insonorizava os assentos traseiros do automóvel.

— É tudo o que sabem dele?

— Sabemos que pode ser um clérigo, e também pode não ser. E que tem acesso a um computador ligado à rede telefónica.

— Idade?

— Imprecisa.

— Pouco me conta Sua Reverência.

— Não se aborreça, conto-lhe o que se sabe.

O Fiat abria caminho por entre o trânsito da Via della Conciliazione. Deixara de chover e o céu desanuviara-se um pouco a leste, sobre as alturas do Pincio. Quart ajeitou o vinco das calças e olhou para o mostrador do relógio, embora não estivesse preocupado com a hora.

— Que está a acontecer em Sevilha?

Monsenhor Spada observava a rua com ar distraído. Tardou uns instantes a responder, e fê-lo sem mudar de posição:

— Há uma igreja barroca... Velha, pequena, em ruínas. Chama-se Nossa Senhora das Lágrimas. Estava a ser restaurada, mas o dinheiro acabou-se e a obra ficou a meio... Pelos vistos, o edifício está situado numa zona importante, histórica: Santa Cruz...

— Conheço Santa Cruz. É a antiga judiaria, reconstruída no começo do século. Muito perto da Catedral e do Arcebispado. Quart fez uma careta ao recordar-se de monsenhor Corvo. – Um bonito bairro.

— Deve ser, porque a ameaça de ruína na igreja e a paralisação das obras desperta paixões de todos os tipos: a Câmara quer expropriar e uma família da aristocracia andaluza, relacionada com um banco, desencantou também não sei que direitos seculares.

Acabavam de passar à esquerda do castelo de Sant’Angelo e o Fiat avançava por Lungotevere, em direção à ponte Umberto I. Quart lançou um olhar à parda muralha circular que, para ele, simbolizava o lado temporal da Igreja que servia: Clemente VII correndo, de sotaina arregaçada, a refugiar-se ali, enquanto os lansquenetes de Carlos V saqueavam Roma. Memento mori. Recorda que és mortal.

— E o arcebispo de Sevilha? Admira-me que não seja ele a ocupar-se do assunto.

O diretor do IOE contemplava a corrente cinzenta do Tibre através da janela salpicada de pingos de chuva.

— É parte interessada e aqui não se fiam. Também o nosso bom monsenhor Corvo pretende especular. No caso dele, trata-se naturalmente dos interesses terrenos da Santa Madre Igreja... Com isto tudo, Nossa Senhora das Lágrimas cai em pedaços e ninguém se preocupa com as obras. Parece mais valiosa destruída do que de pé.

— Tem pároco?

A pergunta arrancou um longo suspiro ao arcebispo.

— Embora pareça incrível, tem. Um sacerdote de certa idade que se ocupa dela. Parece que é um indivíduo conflituoso e as suspeitas sobre a identidade do Vésperas apontam para ele ou para o seu vigário, um jovem pendente de uma transferência para outra diocese. Segundo averiguámos, todos os seus pedidos foram ignorados pelo nosso amigo Corvo. – Monsenhor Spada fez menção de sorrir um pouco, com fastio. – Não seria insensato pensar que um dos dois, ou mesmo ambos, tenha concebido este modo singular de recorrer diretamente ao Santo Padre.

— Têm de ser eles.

O diretor do IOE soergueu a mão em sinal de dúvida:

— Talvez. Mas é preciso prová-lo.

— E se eu conseguir essas provas?

– Nesse caso – o rosto do arcebispo ensombrou-se e o seu tom tornou-se mais baixo e mais grave –, lamentarão amargamente a sua inoportuna afeição à informática.

— E o que vem a ser isso das duas mortes?

— É precisamente esse o problema. Sem elas, o conflito não teria passado de mais um: uma casa, especuladores e muito dinheiro envolvido. Em tempo de crise, se o pretexto é válido, deita-se abaixo a igreja e destina-se o dinheiro da venda para maior glória de Deus. Mas as mortes complicam tudo. – Os olhos manchados de castanho de monsenhor Spada distraíram-se com o que se passava do outro lado da janela; o Fiat imobilizava-se nos engarrafamentos próximos do Corso Vittorio Emanuele. – Num curto espaço de tempo morreram duas pessoas relacionadas com Nossa Senhora das Lágrimas: um arquiteto municipal que estudava o edifício com intenção de declará-lo em ruínas e ordenar o seu desimpedimento, e um clérigo, o secretário do arcebispo Corvo. Que, ao que parece, andava por ali a pressionar o pároco em nome de Sua Excelência.

— Não posso crer.

Os olhos do Mastim detiveram-se em Quart.

— Pois pode ir acreditando. A partir de hoje é o senhor quem se ocupa do assunto.

Continuavam bloqueados num enorme engarrafamento, entre ruídos de motor e buzinas. O arcebispo inclinou-se sobre a janela para olhar o céu.

— Podemos seguir a pé. Temos tempo, convido-o para tomar um aperitivo nesse café de que tanto gosta.

— No El Greco? Acho bem, monsenhor. Mas tem o alfaiate à sua espera. E o seu alfaiate é Cavalleggeri, não é qualquer um. Nem o Santo Padre se atreve a fazê-lo esperar.

Ouviu-se o riso rouco do prelado, que deixava já o automóvel:

— É um dos meus raros privilégios, padre Quart. Ao fim e ao cabo, nem mesmo o Santo Padre sabe sobre Cavalleggeri as coisas que eu sei.