Irina e João Sanha estão em Portugal para abraçar a família, rever amigos e para fazer um “check-up” aos miúdos. Numa situação normal, teríamos de ir à Guiné-Bissau para os encontrar. Ali, ensinam pessoas a ler e a escrever, têm uma clínica de ambulatório, e falam sobre a sua fé. São missionários na Guiné-Bissau há mais de uma década e têm dois filhos, Isaac, de 9 anos, e Beatriz, de 4.
“Quando chegámos [este verão] à casa da minha mãe, em Aveiro, a minha filha preparava-se para tomar banho, olhou à volta, e disse: ‘Mamã, espera que falta aqui qualquer coisa. A caneca. Como é que vamos tomar banho?’. Quando ela descobriu que era com o chuveiro… ouve, não queria mais nada. Meia volta, lá a encontrávamos a tomar banho”, conta Irina, de 35 anos. “Eles [Beatriz e Isaac] dão valor ao acender a luz, à torneira de onde sai a água”, acrescenta.
Na Guiné-Bissau é tudo muito diferente. Irina sempre soube que a sua vida passaria pela missão, mas a escolha deste país africano foi, em primeira instância, uma escolha de amor. “Foi a primeira aventura, e a primeira loucura, que fiz na minha vida”, conta.
“Aos 18 anos estava a cantar na igreja, em Aveiro, e o meu pastor tinha convidado um missionário para pregar, e esse missionário levou um outro, chamado Nené [é assim que João é tratado entre amigos e família]. Ele afeiçoou-se a mim, eu nem por isso”, conta. Ao seu lado, Nené sorri.
“Eu gosto dele, ele gosta de mim. Eu tenho de ir. Até quando é que vou estar à espera?”, questiona Irina. “Então, fui para a Guiné”, conta.
“Eu sou guineense. Quando rebentou a guerra de 7 de junho de 1998 fugi e vim para Portugal. Aqui, aproveitei para estudar teologia e educação cristã e, paralelamente, trabalhava em hospitais e num projeto, o Desafio Jovem, com toxicodependentes”, conta Nené, de 40 anos. “Em 2002 decidi voltar como missionário para a Guiné-Bissau”. Já conhecia Irina e, no ano seguinte, ela visitava o país pela primeira vez.
A relação evoluiu. Ela regressou, mas ele não conseguiu visto. Namoraram mais dois anos à distância. “Eu gosto dele, ele gosta de mim. Eu tenho de ir. Até quando é que vou estar à espera?”, questiona Irina. “Então, fui para a Guiné”, conta. A jovem tinha 24 anos quando deu o nó e a sua vida mudou radicalmente. Ele estava com 29 anos. Fundaram uma igreja, apoiada sobretudo por outra em Portugal, o CCVA de Alvalade.
O casal reside em Bissau, mas trabalha sobretudo nas tabancas, aldeias nas zonas rurais. “É onde há mais necessidades”, justifica Nené . “Temos uma escola em Nhoma, a 32 quilómetros de Bissau. Há mais um projeto a 20 quilómetros da cidade e outro na periferia, numa igreja onde também implementámos a alfabetização de adultos. E, de alguns anos para cá, começámos a projetar a ação para zonas mais difíceis, porque há muito sofrimento”, diz.
Nené exemplifica: “uma mulher grávida não é acompanhada por um médico. Na hora do parto, se houver alguma complicação, tem de andar muitos quilómetros ou ser levada de bicicleta até à cidade mais próxima. E, muitas vezes, acaba por morrer durante a viagem”, conta.
O casal acabou por criar uma ONG chamada “Mãos de vida”, porque “a mão é uma coisa que está sempre em movimento, e com as nossas mãos conseguimos transformar muitas coisas. Acreditamos que chegando mais perto das pessoas, independentemente do tipo de necessidade ou problema, alguma coisa podemos fazer”, explica Nené.
"Não estou a mudar o mundo como imaginei naquela altura, mas estou a mudar um bocadinho do meu mundo", diz Irina.
“Temos uma clínica ambulatória. Todas as pessoas que trabalham connosco têm formação ao nível da enfermagem e da alfabetização. Trabalhamos também na área da prevenção primária, ensinando, por exemplo, como tratar águas para evitar algumas doenças. Tentamos também convidar sempre especialistas em diferentes áreas. Tivemos dentistas, uma psicóloga que trabalhou com crianças, e uma terapeuta da fala”, conta Nené. “Agora, por exemplo, estamos a tentar trazer um jovem para Portugal para fazer um curso de ecografia, porque é uma forma de evitar a morte das grávidas”, acrescenta.
Não havia eletricidade, não havia água nem saneamento básico
Irina nasceu na Guiné, mas veio para Portugal com seis anos. Com avôs portugueses e avós guineenses diz que é “metade-metade”. Foi criada pelos tios porque os pais não tinham condições, quando chegaram a Portugal, de sustentar os cinco filhos. No final do 12º ano decidiu ir para uma organização missionária em Lisboa, denominada Jocum - Jovens com uma Missão, onde ficou três anos.
“Entretanto voltei para Aveiro e pensava cada vez mais em ir em missão, em sair. Só que os meus pais não são crentes. E eu pensava: “como é que lhes vou dizer?”. Estava tudo preparado para Irina ingressar no curso de Relações Internacionais - “o meu pai já tinha a papelada toda pronta”, conta -, mas nem isso a demoveu.
Quando chegou à Guiné “não havia eletricidade, não havia água, não havia estruturas, nem saneamento básico, nada. Houve só uma noite que pensei: ‘não, não vou aguentar isto’, mas estava convicta do que queria. Não estou a mudar o mundo como imaginei naquela altura, mas estou a mudar um bocadinho do meu mundo”, conta Irina.
Para Nené, a adaptação da sua mulher foi “surpreendente”. “No princípio fiquei com receio porque eu considero-a estrangeira, a mente dela é de Portugal. Fomos morar para um lugar onde não tínhamos luz, onde não havia acesso de carro - tínhamos de andar uns seis quilómetros -, com mosquitos e essas coisas. Ela apanhou malária na primeira fase”, recorda. “Dois anos depois ela ficou grávida e viemos para Portugal para ter o bebé. Fiquei com receio que não quisesse voltar. Ela viu que eu estava muito preocupado, chamou-me, e disse-me: ‘Olha, não te preocupes. Se tu quiseres voltar, eu vou voltar contigo, casei para estar contigo. Vamos voltar’”.
Os receios de Nené não era infundados, o casal acabara de passar por um dos momentos mais difíceis do seu percurso, confidencia o missionário.
“A Irina estava grávida do Isaac. Eu estava a tirar o curso de gestão à noite. Cheguei a casa, vi-a deitada, e a cama estava cheia de sangue. Não tinha meio de transporte, não tinha dinheiro. Como é que eu ia pegar nela para a levar para o hospital? Fui bater à porta dos vizinhos e um deles levou-nos. Demorou três meses até que a conseguíssemos trazer para Portugal. Foi complicado”, assume.
“Todos os dias morriam mulheres grávidas. Eu estava num quarto no piso de cima, mas a sala de partos era em baixo. Todas as noites eu ouvia gritos”, recorda Irina.
“Eu andava sempre com garrafas de lixívia a limpar, dormia lá, ia fazer comida, voltava. Foi o momento mais tenebroso”, conta Nené.
“E as pessoas aqui ainda reclamam”, acrescenta Irina.
O que os faz continuar? A Irina é a celebração de domingo na igreja, onde se junta toda a comunidade. É isso que a move. A Nené é o desafio. “A cada dia surge algo para resolver, alguém para ajudar, e isso cria aquele entusiasmo, a pessoa levanta-se sabendo que tem um desafio pela frente”
40 quilómetros a pé
O projeto mais recente do casal é em Catungo. “A viagem desde Bissau demora umas seis horas, para fazer 300 quilómetros”, conta Irina. “Nós apanhamos uma candonga - um transporte coletivo misto, com pessoas no andar de baixo e animais no de cima - que vai até Catió. Aí, saímos da estrada principal. Para chegar a Catungo são mais 40 quilómetros, e algumas candongas não querem entrar por aí porque a estrada está toda partida”, explica.
Foi isto que aconteceu sua primeira incursão. “Tínhamos 500 prendas para entregar às crianças, tivemos de tirar tudo da candonga e cada um de nós pegou em dois ou três caixotes e fomos até à aldeia mais próxima, a cinco quilómetros. Nós dormimos lá com os miúdos, os jovens missionários que foram connosco - éramos 12 ao todo - andaram 42 quilómetros até Catungo. Foram três horas a caminhar, a cantar e a tocar tambor”, conta Irina com um sorriso nos lábios.
“Nós temos como lema o amor. Tendo ou não tendo, não vamos deixar de fazer. Eles para avançarem têm de ter todas as condições”, lamenta Nené.
Existe uma alternativa a este caminho: se atravessarem o rio têm apenas 20 quilómetros pela frente, mas para isso é preciso esperar que a água suba, senão “é só lama”. “Eu prefiro andar 42 quilómetros do que atravessar um rio com lama”, diz Irina.
“O maior desafio [no trabalho] é a falta de meios financeiros e logísticos”, resume Nené, lamentando o facto de não terem um carro para facilitar as deslocações. Quando lhes perguntamos porque não recorrem a outras organizações maiores para recolher esses apoios, dizem que “muitas vezes o que as pessoas veem aqui na televisão não é o que se passa em África.”
Há organizações que têm como principal objetivo justificar a sua presença no terreno. Outras avançam para os projetos só quando todas as condições estão reunidas, recuando sempre que tal não acontece. Irina e Nené não se revêm nesta postura. “Nós temos como lema o amor. Tendo ou não tendo, não vamos deixar de fazer. Eles para avançarem têm de ter todas as condições”, lamenta Nené.
Para já, trabalham sobretudo com a Alfalit, uma organização que opera na área da alfabetização de adultos, e cujo trabalho muito elogiam.
Ir em missão não obriga a colocar a vida em pausa, e o casal é prova disso. Nené tirou um curso de gestão, Irina voltou à faculdade, tirou Direito, e candidatou-se inclusivamente para ser assistente. Já pensa no mestrado em Portugal, onde vai ficar por uma temporada por causa dos mais novos. Nené vai dividir o seu tempo entre a Guiné e território luso.
Nas suas memórias há lutas, mas também muitos sorrisos. Antes de nos despedirmos há tempo para partilhar mais um momento inusitado da aventura deste casal. Na época não deve ter dado para rir, mas foi à gargalhada que terminou a conversa:
"Olhei lá para fora e não estava a chover. Comecei a sentir cheiro a chichi. Olhei para a cima e estava a vaca com o rabo virado para mim", conta Irina.
“Tinha acabado de chegar à Guiné-Bissau. Eu [Irina] não sabia falar crioulo e fomos convidados para ir a uma conferência num instituto bíblico. Na volta para Bissau, entrámos num transporte misto e não sabíamos que havia três vacas lá em cima no tejadilho”, conta a missionária. “Sentei-me, e passado um bocado senti chuva a cair, mas muito quente. Olhei lá para fora e não estava a chover. Comecei a sentir cheiro a chichi. Olhei para a cima e estava a vaca com o rabo virado para mim. Depois de barafustar com o homem do transporte, lá mudei para outro extremo da carripana. Sentei-me. Passado cinco minutos, a outra vaca tinha o rabo virado para mim e mijou-me em cima também. Ouve, passei-me nesse dia! Levantei-me, pedi que me devolvessem o dinheiro, mas responderam-me com uma expressão bem guineense que significa: menina, resigna-te”.
Mas é exatamente isso que Irina se recusa a fazer. Quando lhe perguntamos se tem algum arrependimento, não hesita: Não, estou a fazer o que sempre sonhei”.
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