Ao segundo dia, o sentimento de medo e de insegurança agravou-se. O desconhecido tomou outro rosto: o de um estado de emergência declarado para mitigar o contágio do novo coronavírus, ameaça a liberdades que julgaríamos escritas em pedra, esquecendo que também a pedra é rasurada pelos efeitos do tempo. E, pior que um presente desconhecido, só mesmo um futuro desconhecido. No segundo dia do Festival EuFicoEmCasa, Irma traduziu esse sentimento como nenhum outro artista: «O que mais me aflige não é o vírus, é não ver o final disto». A língua, sabemo-lo, precisa de pontos finais para poder criar frases.

O medo combate-se da forma mais humana possível: com o amor, a ternura ou o riso, todos eles presentes em quantidades mais ou menos exatas ao longo deste dia. No que ao riso diz respeito, nenhum fez rir mais, e por conseguinte nenhum nos fez esquecer mais a nossa condição de isolamento, que Chico da Tina, trapstar minhota que ao longo do último ano se tornou num caso sério de popularidade, nas redes sociais e entre os mais jovens.

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O que é isto de uma trapstar minhota? A fórmula é simples: pega-se no maior fenómeno musical da década passada – o trap, um derivado mais simplista (e, por vezes, mais chunga) do hip-hop –, junta-se-lhe o sotaque e jeitinho minhotos, duas malgas de vinho verde tinto e uma série de referências que os mais velhos não alcançarão a não ser que os netos lhas expliquem. Ah, e muita palhaçada – ou coboiada, pegada a um sem número de palavrões pronunciados com a finesse de quem, lá está, coloca um ponto final numa frase.

Num festival como este, virtual, Chico Da Tina nunca poderia dar um espetáculo propriamente dito; teria que fazer algo que, passe-se a expressão nestes tempos de doença, se pudesse tornar imediatamente viral nas redes sociais. Ao longo de meia hora, o músico / personalidade apresentou ao público o seu próprio «xarope anti-coronavírus» (um garrafão de vinho, pois claro), a sua crew (tanto contacto social nestes dias talvez não seja aconselhável), os seus instrumentos (uma coluna portátil igual à que se vê nos metros, nas mãos de mitras) e a sua crib (uma típica casita minhota).

E apresentou, claro, temas que já se tornaram parte do cancioneiro nacional, ou que pelo menos já deveriam fazer parte do cancioneiro nacional: 'Apresentação Interactiva' (e quando eu digo ‘Chico’ vocês dizem ‘da Tina’!, grita ele), 'Romarias' (com direito a “““breakdance”””), 'Deitei Tarde Acordei Late', 'Freicken' ou 'Põe-te Fino', esta última com direito a remistura especial, sendo que a remistura mais não era que a 'Lion' de HVOB a dar no YouTube. E só não houve mais música porque, a meio e no momento mais televendas de todo o Festival, mostrou aos fãs (Fãs? Escrevamos antes “súbditos”) o seu novo merchandising, onde se incluem as melhores t-shirts alguma vez vistas deste lado do mundo. Chico Da Tina é especial. Agarremo-nos a ele, que não temos tido muitos mais momentos para rir.

Não sabemos se Murta viu o direto de Chico Da Tina, mas vimo-lo constantemente a sorrir e a mostrar uma humildade estonteante: a cara dele ilumina-se quando percebe que tem 500 pessoas a assistir ao concerto, a luz transforma-se em fogo vivo quando esse número sobe até aos 11 mil, perante alguma incredulidade do artista. Ainda antes de começar, o aquecimento foi feito ao som de 'Feeling Good', um clássico na voz de Nina Simone, ao qual se seguiram temas como 'Luna', 'Her' ou 'Porquê'. De fora ficou uma promessa feita ainda no início: atirar-se-ia da janela se chegasse aos 10 mil espetadores. Não aconteceu. Ainda bem, não é?

Num dia onde, ao contrário do primeiro, não houve grandes destaques musicais ou momentos que ficassem guardados para sempre na memória, foi bonito – e é-o sempre – ver Márcia a tocar, à guitarra, aquele tipo de canções que tanta ternura despejam no mundo, como se este não estivesse mergulhado na treva. A sua voz é a da sirena que guia os marinheiros não para a morte, mas para a felicidade, até quando esta é a felicidade triste da saudade. De 'A Pele Que Há Em Mim' a 'Tempestade' (dança o teu azar, canta ela, um verso altamente indispensável a estes dias), de 'Lado Oposto' a 'Vai Passar Tudo Amanhã' (idem), pouco faltou naquela meia hora. Incluindo celebridades: nos comentários, íamos apontando os nomes de pessoas como Valter Hugo Mãe, Cristina Branco ou Ana Markl. Que quente é o coração quando o deixamos arder.

Imediatamente a seguir, Noiserv manteve essa louvável toada através de temas como 'Vinte e Três', tocada ao piano, ou 'The Sad Story of a Little Town', já na guitarra. Do momento que lhe foi atribuído, nota para uma versão de 'Where Is My Mind?', dos Pixies, e para 'I Was Trying to Sleep When Everyone Woke Up', canção de título longo e ideia igual (e andrajosa): «esta é uma música que fala sobre a importância dos amigos, de termos pessoas à volta que nos ensinem a ser emocionalmente ativos». Quer isto dizer: se o leitor tiver essa oportunidade, diga aos seus amigos que os ama, ligue-lhes, convide-os para criarem conta no House Party. Tudo o que sirva para manter esta lição servirá muito bem.

Foi de Fernando Daniel a maior “enchente” do dia: antes de pararmos de o fazer, contámos 22 mil pessoas, aninhadas para ver uma voz soberba a interpretar 'Changes', de Justin Bieber, com a imagem a preto e branco, para destoar dos demais diretos. E até deu para escapar um pouco ao festival e encontrar, noutro lado, David Bruno a dar um concerto também em direto. Pouco antes, April Ivy cantou 'Hotline Bling' (Drake) com instrumental gravado, antes de pegar na guitarra e, através das suas canções mais sossegadas, refrear os ânimos espicaçados por Chico da Tina. Foi também ela quem mereceu o melhor comentário de um espetador que alguma vez veremos no festival: “estamos em Março!”.

Armado com a sua seis cordas, Filho da Mãe causou inveja, ao beberricar um mojito entre canções. A música que saiu dessas mesmas cordas era bela, quiçá algo desoladora – a história de um Portugal triste e entorpecido pela sua condição, exibida com mestria pelos seus dedos, ainda que os habituais loops e ritmos não o acompanhassem. «Este é um festival com uma mensagem importante, e estou feliz por fazer parte dele», revelou. André Sardet, o veterano do dia, foi buscar ao baú a folha onde escreveu a letra de 'Adivinha O Quanto Gosto De Ti', num hotel em Évora, pediu emprestada 'Anjinho da Guarda' a António Variações e não esqueceu 'Foi Feitiço', uma das suas canções de maior sucesso – e a que estava a ser mais requisitada nos comentários.

Ao longo do dia, foi ainda possível assistir a concertos de Tiago Nacarato («nunca me arrumei tanto para vir à sala», brincou), Lince (que se fez acompanhar por dois públicos, o virtual e os seus vizinhos – que também tiveram direito a 15 milissegundos de fama) e Tomás Adrião (que cantou 'Recomeçar', de Tim Bernardes, logo a abrir).

O terceiro dia do festival, que dura até domingo, contará com a presença de Joana Espadinha, Tainá, Bispo, António Zambujo, Mafalda Veiga e Matias Damásio, entre outros.

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