De um lado, Augusto Reis. Professor catedrático de direito, administrador de um banco durante o Estado Novo, ex-ministro de Salazar. Do outro, Djalma dos Santos, jovem negro oriundo de um bairro da Amadora — ficcional, mas que podia ser bem verdadeiro — e que singra como advogado a morar no Porto. O que une estas duas personagens à partida tão distantes? A arte, essa matéria fecunda de empatia.
Além de académico e figurão do regime ditatorial, Augusto Reis foi em tempos um poeta até bastante vanguardista e do qual poucos registos escritos restam porque acreditava numa poesia oral. Calha que um desses poucos artefactos acaba nas mãos de um jovem Djalma a catar lixo com a mãe à procura de ferro para vender a um sucateiro. A arte de um transformou a vida do outro — Djalma abre os seus horizontes e o responsável totalmente involuntário foi Augusto. Os dois acabam por firmar uma improvável relação.
Foi para ser capaz de "imaginar o passado" de uns através da experiência de outros que Jacinto Lucas Pires concebeu "A Gargalhada de Augusto Reis". A história coletiva faz-se de histórias individuais, mesmo daquelas incómodas. e a incapacidade em partilharmos estas experiências "é, aliás, um dos mil fatores na origem do populismo atual", conta o escritor ao SAPO24 no âmbito do ciclo "O 25 de Abril (também) foi uma ficção".
"Não conseguirmos falar uns com os outros sobre grandes questões — a guerra colonial, a Revolução, quem esteve de um lado e veio para o outro, quem se adaptou e como é que se adaptou à democracia, quem não se adaptou, quem ficou de fora do sistema, etc.." lamenta o filho de Francisco Lucas Pires. A menção ao político de renome que fez parte do CDS no início da democracia não procura legitimar este texto de forma descabida. Pelo contrário, é o próprio escritor que o cita no decurso da conversa a propósito da necessidade de ouvir o outro lado — "Tem de se ler tudo, tem de se perceber tudo, até para se conseguir contra-argumentar".
A incapacidade de diálogo, porém, não é o único problema resultante de uma má abordagem à nossa história. Para Lucas Pires — que é também dramaturgo, cronista, guionista, realizador e músico, currículo que chega a ser motivo de brincadeira durante a entrevista —, vivemos presos à ideia de que o nosso presente não virará o passado um dia.
"Se os capitães de Abril, se o povo de 74, achassem que o presente deles não era o presente da história, que aquela hora não era histórica, nós hoje ainda estaríamos não sei onde", reflete. E deixa ainda um aviso: memorializar o 25 de Abril é matá-lo. "Esta é que é a beleza da Revolução, é que ela está a acontecer, e se nós comemoramos o 25 de Abril apenas porque chegámos aos 50 anos, como um museu, como uma efeméride, como ir pôr flores no dia dos mortos à campa, isto é matar o 25 de Abril, é trágico. Pelo contrário, é preciso perceber que é um processo e que para a frente também há caminho. Se não continuar a haver caminho para a frente, aí sim há risco de acabar".
Augusto Reis e Djalma dos Santos parecem representar duas fases do Portugal pré e pós-25 de Abril. Que tipo de temas é que quis explorar com estas duas figuras?
Percebo o que estás a dizer, mas não pensei nelas como figuras típicas ou arquétipos de um período ou do outro. É verdade que tem um pouco disso — agora também eu percebo. Mas o que me interessou mais foi pensar se era possível imaginar o passado. Nós falamos de lembrar o passado e imaginar o futuro. Na verdade, acho que foi [Jorge Luís] Borges que disse que, filosoficamente, o movimento de olharmos para trás no tempo e olharmos para a frente, é o mesmo, tem o mesmo valor, é igualmente possível. Interessou-me isso também porque sinto — nessa altura já sentia e hoje acho que até sinto mais — que vivemos um bocado presos no presente. Isso tem muito a ver com as redes sociais, com a internet em geral, e que estamos a perder quase diariamente a capacidade de olhar para trás e, portanto, também de olhar para a frente. Parece que o nosso horizonte — e isso vê-se muito na política, por exemplo — é cada vez mais curto. E nem estou a falar do horizonte do atual Parlamento, esse então é curtíssimo, mas o horizonte das ideias, das visões políticas. E isso também se nota na nossa vida individual — está muito ligado a uma incapacidade de memória, de olhar para trás e — porque não? — imaginar o passado. Toda a memória é uma construção! É interessante este vosso título do 25 de Abril como ficção, porque para lá da provocação que encerra, eu acho realmente que isso é muito verdade. Diz-se no livro, acho que até é o Augusto Reis que pensa isso, se não conseguimos imaginar alguma coisa, ela não é verdade, porque se nós não conseguimos transportar algo de nós para a realidade, esta é só um vazio, não carrega significados, não transforma nada, é só um espaço, digamos. E, portanto, o que me interessou especialmente nessas figuras foi perceber como é que podiam viajar para trás e para a frente, como é que podiam lembrar o futuro e imaginar o passado.
E, no fundo, sem querer revelar grandes detalhes sobre o enredo, o facto de estas duas personagens criarem esta relação — a vários planos — é também uma forma de combate ao maniqueísmo com que encaramos a memória histórica, ou não?
Sim, e eu acho que isso é, aliás, um dos mil fatores na origem do populismo atual, na versão portuguesa. Não conseguirmos falar uns com os outros sobre grandes questões — a guerra colonial, a Revolução, quem esteve de um lado e veio para o outro, quem se adaptou e como é que se adaptou à democracia, quem não se adaptou, quem ficou de fora do sistema, etc... Não conseguimos fazer isto. E também no discurso público e na ficção, parece que só há um discurso possível, que é aquele em que estamos todos de acordo, de que a democracia é o melhor que se consegue como sistema. Isso é óbvio. Mas o facto de não conseguirmos fazer essa discussão permite, ou pelo menos, dá oportunidade a todos os divisionismos e maniqueísmos, em que parece que há dois blocos fechados, quando na verdade o que tem de haver é um terreno comum.
E lá está aí, com esses dois blocos fechados, há duas versões da história que chocam uma com a outra, e que se digladiam no espaço público.
E eu acho que nem sequer há duas, se calhar até há mais. O problema é que elas não falam umas com as outras. É bom que haja muitas versões da história, e quantas mais, melhor, porque quer dizer que há pensamento e que há coragem nesse pensamento, mas elas não se escutam umas às outras. E a escuta é também uma questão essencial que se tem vindo a perder. É algo também está ligado ao estado de coisas atual, das redes sociais e etc, mas não só. O território mediático que existe está contaminado por isso, por essa falta de escuta. Nós somos cada vez menos capazes de ouvir o outro, todos temos de dizer muitas coisas, todos temos muitas coisas para deitar cá para fora. Acreditamos que só gostarão de nós, só teremos "likes", só teremos "friends", se dissermos coisas, se atirarmos postas...
E têm de ser as coisas certas — ou, pelo menos, as que geram atenção.
As coisas que nós achamos que piscam o olho a algum mercado! (risos). E depois outra coisa que acho estar ligada a isso e que é terrível quando se pensa em revolução, em democracia, na melhoria do estado de coisas, é esquecermos que o nosso presente também é histórico, que a história não é uma coisa que já passou. Porque se os capitães de Abril, se o povo de 74, achassem que o presente deles não era o presente da história, que aquela hora não era histórica, nós hoje ainda estaríamos não sei onde. Agora parece que há uma peça dos Palmilha Dentada que pensa isso, que é "se não tivesse havido o 25 de Abril, onde é que estaríamos?" Mas uma revolução também é algo vivo, que continua. A democracia é algo que se vai adaptando e modificando, e nós perdermos essa capacidade de sentir o nosso presente como histórico está ligado a essa incapacidade. Por um lado, a incapacidade de lembrarmos e percebemos a história, e conseguirmos imaginar — "ficcionar", para usar o vosso termo — o passado, o que vem de trás, o que nos trouxe até aqui; por outro lado, uma incapacidade de olhar mais além, de ter visões que são diferentes das do outro. Umas à direita, outras à esquerda, umas mais liberais, outras mais solidárias, umas mais europeístas, outras menos. Aí está uma revolução deste momento, a revolução europeia, está a acontecer, nunca foi feito isto num tempo histórico: nações com diferentes histórias e diferentes tempos que decidem juntar-se num espaço político comum, partilhando coisas tão importantes como orçamentos, um parlamento e até a defesa, uma das funções consideradas clássicas da soberania. Portanto, a revolução continua e nós temos de voltar a acreditar em nós próprios, no sentido de perceber que nós é que fazemos a nossa história. Não podemos ficar presos no presente totalitário que é a rede social,, aquele rolar de imagens a cair infinitamente no vazio.
Quanto à questão das diferentes representações — e do combate ao maniqueísmo fazer-se dessa pluralidade de representações — o romance retrata um lado pouco visto do 25 de Abril — as figuras que, apesar de serem parte constitutiva do Estado Novo e de ajudarem a perpetuá-lo, não lhe deviam lealdade ideológica. Eram funcionários, não defensores nem paladinos. Que náufragos do regime foram estes?
A ficção alimenta-se dessas zonas cinzentas. A complexidade... aliás, o humano, faz-se dessas zonas cinzentas. Nós não somos todos bonzinhos ou todos mauzões. Aliás, isso percebe-se — as ficções mais básicas são aquelas em que o maniqueísmo é óbvio, é bidimensional. As personagens são de cartão. O que é que isto quer dizer? Que o humano é complexo, e que as zonas cinzentas são as zonas do dilema, onde se revela o caráter individual de cada pessoa. Se fosse tudo fácil, não havia decisão, não havia dilemas e não havia necessidade de decidirmos ir por aqui ou por ali. Portanto, de sermos julgados como bons ou maus pela história. A história de cada um e a história coletiva não são uma só decisão, um só momento, um só totobola. Claro que há momentos decisivos — "onde é que estavas no 25 de Abril"? (risos) — mas faz-se de muitas e pequenas escolhas. Como é que eu trato o mendigo na rua? Vou à manifestação em relação à austeridade ou não? Faz-se de várias decisões, é um puzzle.
De facto, houve muitas figuras assim. Quer dizer, todo o país, de certa maneira, vivia sob um regime e teve de se adaptar, de mudar para outro regime. Até nós já sentimos isso em democracia, quando muda um governo, de certa maneira. Imaginemos o que é mudar todo o regime. De repente, há liberdade de expressão, pode-se dizer o que se quiser, pode-se votar em quem se quiser, vai haver eleições livres. Subitamente acaba a guerra, dá-se uma grande mudança. E aí, muitas pessoas tinham graus de cumplicidade diferentes, até por silêncio, por omissão, outras vezes por participação, mas em diversas escalas. E cada um também com as suas culpas, que tomou ou não. Cada pessoa aí é uma pessoa, é uma balança em si mesma. E foi um pouco isso que eu quis quando comecei a escrever,. Ou melhor, nem quis, porque, na verdade, é assim que acontece: nós facilitamos ou racionalizamos quando estamos a falar sobre os textos, mas na escrita, como qualquer criador sabe, para sermos honestos, as coisas aparecem ao fazer. As pessoas vão, um pouco como na vida, encontrando situações e vão ter de decidir, de uma maneira ou de outra. Isso vai construindo-as, tornando-as mais de carne e de osso, dando-lhes corpo. E o Augusto Reis é uma dessas figuras. O padre jesuíta com quem ele fala também, o António. E, de certa maneira, também as pessoas do novo regime, da democracia, também têm qualquer coisa disso, como o Djalma dos Santos.
Achei particularmente interessante, por exemplo, uma figura como o estudante de doutoramento que segue Augusto Reis, o João Batista. Ele, como tantos outros, queria singrar, e fazê-lo naquela altura implicava adaptar-se às regras do Estado Novo. E, de repente, vê-se fora de pé com o 25 de Abril, mesmo não fazendo parte do aparelho.
É uma figura que tem qualquer coisa de triste e de cómico, ao mesmo tempo. Às vezes os secundários das histórias têm esse efeito, dão matizes à história geral. E sim, é verdade, houve casos difíceis, de pessoas que ficaram com vidas penduradas. Uma revolução tem qualquer coisa de rutura e que depois tem efeitos em vidas individuais. Um pouco como uma paixão. "Ele de repente apaixonou-se, mas o quê? Era casado e agora apaixonou-se por outra pessoa, então o que é que acontece?" Ou uma morte, ou um nascimento. São situações que mudam tudo. E isso é que — pegando um pouco no nosso começo de conversa — por vezes gera uma impressão de absoluto nas pessoas de um lado e nas pessoas do outro, cria esta ideia de que foi tudo assim ou foi tudo mau. Ou então mudou-se, mas está tudo pior, "agora é uma bandalheira, tal e tal". E, do outro lado, foi tudo bom. Claro que o fulcral — haver democracia — nós sabemos que é bom. Mas perceber em concreto, individualmente, o que é que isso foi em cada vida, isso para um escritor de ficção é o essencial.
No caso em concreto do Augusto Reis, abordando essas tais matizes que estava a falar. Por um lado existe esta ideia de que ele tenta a início ignorar as convulsões da Revolução, continua a trabalhar, segue o seu quotidiano, espera para ver o que é que vai dar. Não é uma pessoa entusiasta em relação ao rumo do 25 de Abril, mas também não é catastrofista em relação ao que vai acontecer. E depois há um momento de reflexão, mais tarde, com o padre António, de uma certa culpa que começa a dilacerá-los. A frase é "antes da Revolução, também não sabia o que hoje todos sentem ao ouvir a expressão 'viver sob uma ditadura'. António bem sabe que este é o tipo de argumentação que vários nazis usaram”. Isto é algo que lhes dói muito.
Há aqui várias coisas. Uma é a ideia do processo. A Revolução, e isso sabe-se historicamente, passou a chamar-se o PREC, o processo revolucionário. Mas não foi só a Revolução a ser processo, não foi apenas aquele dia, é um tempo. A democracia que é instaurada a partir daí também é um processo, e isso é uma coisa que ainda é menos falada e vista. Tudo isto é um tempo maior e o que torna mais interessante é que há qualquer coisa de vivo nisso. Esta é uma Revolução que faz 50 anos, que tem a minha idade — eu nasci em 74 — e portanto há uma maturação, um crescer, ela continua, Por outro lado, não é tão fácil definir o alvo como seria se fosse apenas um dia, de que "num dia tudo mudou". Há qualquer coisa de puro, de heróico, de brilhante, como no poema de Sophia, nessa manhã. É um pouco "o amor à primeira vista", a ideia de que foi naquele momento. Os poemas e as histórias têm de dizer assim, têm de dizer que foi num momento, "foi quando ela entrou naquela porta, a luz batia-lhe de trás, e contra a luz eu vi, era aquela miúda, a miúda da minha vida".
E quando se coloca por palavras, torna-se real de certa maneira para quem o diz, não? Ou pelo menos torna-se real essa construção.
Sim, o que estou a dizer é esta ideia de processo, de ser distendido no tempo. Claro que há esses momentos de paixão, esses momentos únicos. No 25 de Abril há a manhã, "o dia inicial e limpo" é esse momento. Mas, na verdade, é mais complexo do que isso, porque é um processo — e ainda está a acontecer. Esta é que é a beleza da Revolução, é que ela está a acontecer, e se nós comemoramos o 25 de Abril apenas porque chegámos aos 50 anos, como um museu, como uma efeméride, como ir pôr flores no dia dos mortos à campa, isto é matar o 25 de Abril, é trágico. Pelo contrário, é preciso perceber que é um processo e que para a frente também há caminho. Se não continuar a haver caminho para a frente, aí sim há risco de acabar.
Outro aspecto que acho que tem a ver com a pergunta, talvez mais indiretamente, é a ideia de empatia. É essencial escutarmos o outro, mesmo o outro com o qual à partida não concordamos ou achamos que vem do lado completamente errado. "Este tipo vem do Estado novo e foi cúmplice, agora está aqui a mandar bitates? O que é isto? Como é que este tipo vai falar agora?" Ao não escutarmos, perdemos a capacidade de nos pôr na pele do outro. Essa é outra coisa que hoje também está em perda. Deixarmos de nos transportar para o outro, tudo agora parece que tem de ser literal, tem de ser com dados. Se dás uma ideia, tens de mostrar os números que comprovem isso. Se não somos capazes de nos pôr nos sapatos do outro ou da outra, daquilo que não somos, não há comunidade. Não há possibilidade de discurso. E a ficção e a imaginação também servem para isso, para nos transportar, para vermos o mundo dos outros sítios. E, portanto, escrever sobre estas pessoas é também uma maneira de eu procurar olhar a realidade de um sítio de onde eu não estou — e em certa medida não poderia estar, porque nem vivi esse tempo.
No pior dos cenários, mesmo havendo essa falta de empatia, esses tais proscritos da história não desaparecem só porque queremos não é? Continuam a existir, só que nas sombras do que consideramos ser o correto.
E não se consegue descrevê-los nem desconstruí-los. Lembro-me de ser miúdo, nessas fases do princípio da democracia, e o meu pai, que era político, além de professor de Direito, ia comigo comprar o jornal. O meu pai comprava todos os jornais, e eu a certa altura já percebia que o Avante era o jornal do PCP, que era um partido comunista e que estava nos antípodas do que o meu pai pensava politicamente. E eu em miúdo, também farto — porque já sabia que quando o nosso pai ia aos jornais, eu e o meu irmão Rafael ficávamos na parte de trás do carro à espera que ele lesse as manchetes —, perguntava-lhe "mas pai, porque é que está a ler o jornal do PCP?" E o meu pai dizia "tem de se ler tudo, tem de se perceber tudo, até para se conseguir contra-argumentar". Porque se não se ouvir, se não se perceber as razões de um lado, não se consegue contra-argumentar, e sendo que algumas razões podem ser válidas até. Isso está em perda e acho que é uma das razões do panorama difícil da atualidade.
Aproveitando a menção ao seu pai, apesar de ter tido um percurso que em nada tem a ver com o de Augusto Reis, ele foi um político que despontou nessa era, exatamente no pós-25 de Abril, nessa fase da convulsão. Foi de alguma forma beber ao seu legado familiar para construir esta história?
Não, ouvi várias histórias, mas não foi por aí. Há um lado de saber algumas histórias que se passaram, de ter lido algumas coisas sobre o momento que me interessavam, mas sobre as quais eu não saberia falar diretamente, enquanto não ficção. Só quando encontro uma personagem de ficção, um princípio de enredo, é que consigo ficcionar o 25 de Abril. Porque não sou um historiador nem um jornalista — embora escreva não ficção de vez em quando, é mais pensamento. Não consegui ir para o passado sem esses olhos de escritor de romances, de ficcionista.
A personagem da realizadora, a Sofia Bessa, parece até fazer as vezes do leitor, quando se indaga como é que o poeta Augusto Reis coexistia com o banqueiro e com o ministro dos discursos cinzentos na Assembleia Nacional. Tendemos a criar figuras unidimensionais, mais fáceis de digerir?
Sim, e as figuras têm muitas camadas. Nós, aliás, vemos várias figuras do Estado Novo que eram mais complexas e interessantes do que meros funcionários de um regime ditatorial. E pessoas da democracia também — quando se tornam figuras públicas num certo registo, depois parece que ficam presas a um certo contorno público, mediático, e não têm outros lados. Na minha experiência — quanto a essa brincadeira do meu currículo ser um bocado extenso — sinto algo disso, das pessoas desconfiarem, ou de haver uma desconfiança nas entrelinhas. "Então, como é que este tipo que escreve agora faz filmes?"
"Não pode ser bom em tudo, não é?"
Exato. "Como é que este tipo era um escritor e agora faz música? Como é que é isto?" Como se as pessoas tivessem de ser só uma coisa para sempre.
É um bocadinho o espírito tecnocrata dos tempos
É a especialização, que acho que também é um drama. A hiperespecialização atual faz com que pessoas se dediquem a uma só coisa, porque só são valorizadas por esse rótulo que lhes colocaram. Às vezes têm um acidente de início de vida ativa, entraram para um sítio e ficaram lá, e agora têm de ser o melhor que conseguirem naquilo, mas parece que não podem fazer mais nada à volta. Sendo que uma pessoa que é só uma coisa não é tão boa nessa coisa como poderia ser se tivesse uma visão mais abrangente, uma mundivisão digna desse nome. Eu sei que, sem falar obviamente da qualidade ou da falta de qualidade do que faço, sou um melhor romancista por escrever teatro e se calhar por ser músico do que se não fosse. Não quer dizer que seja bom romancista, mas sinceramente sinto isso.
Ainda quanto a Sofia Bessa. De início, nem quer incluir Augusto Reis no documentário que está a fazer e depois até acaba por compreender a complexidade daquela pessoa. Na minha interpretação, quando ela começa a pensar nele e no tipo de planos que vai fazer, no choque que pretende entre as imagens de arquivo do Estado Novo e as imagens a cores da Revolução, ou mesmo atuais, esse é um pouco o papel do escritor, ou não? De escolher como é que representa determinada coisa?
É interessante, não tinha pensado nesses exatos termos, mas isso faz muito sentido. É verdade que escrever, aliás ficcionar, tem muito a ver com manipular o tempo. Fazer escolhas de montagem, digamos, como essas de que estavas a falar, mas também manipular o tempo num sentido ainda mais direto. O tempo é o material da ficção — saber onde é que queremos esticá-lo e onde é que queremos condensá-lo, apressá-lo. E essa escolha às vezes implica um segundo... Vou escrever 20 páginas sobre aquele segundo, porque é o momento da grande decisão. E se calhar décadas podem passar-se num parágrafo, porque é um tempo morto para a história que quero contar. E também há qualquer coisa disso quando se fala de história, da macrohistória, em que escolhemos momentos — dependendo do ponto de vista que temos e da personagem sobre a qual estamos a escrever. Há momentos que são importantes e que às vezes se ligam a essa macro-narrativa, à história coletiva, e há outros que são mais apressados. E nem sempre a história coletiva tem de ser coincidente com a história da personagem. Ela atravessa-a porque é assim a nossa vida. Interessa-me muito a ficção e gosto de alguns autores — estou a lembrar-me do Don DeLillo — que juntam o macro e o micro, que juntam a história com H maiúsculo e a história com H minúsculo, quase como se nós não notássemos a passagem. Quase como se o 11 de Setembro acontecesse no nosso corpo, como se o 25 de abril fosse uma coisa na nossa janela. E que as revoluções ou os grandes acontecimentos coletivos, não fossem manchetes que pairam no cérebro abstrato da história maiúscula. Como é que isso se transfere para a vida pessoal, até íntima, de cada personagem?
Isso é um pouco até o que acontece n"A Gargalhada de Augusto Reis". Porque quando ocorre o 25 de Abril, ele está às portas do Hotel Mundial e é tamanha a calmaria que ali, naquela praça, não se estava a dar qualquer espécie de revolução.
E depois o temos o processo revolucionário, que tem um percurso dentro do Augusto Reis e das outras personagens.
Relativamente à questão até do papel da arte, o Augusto Reis é um homem cuja atividade, indiretamente, consistia em manter a população portuguesa num estado de infantilidade, e a sua poesia acaba por emancipar um filho de imigrantes num bairro social na periferia de Lisboa. Para mim, um dos temas centrais do romance até parece ser a capacidade de salvífica da arte, mesmo que involuntariamente. Concorda?
Também não tinha pensado nisso, mas é totalmente involuntário, é totalmente acidental. O que eu acho é que certos objetos de arte — não a arte com letra maiúscula, mas certas obras de arte — mudam a vida das pessoas. Eu lembro-me que da primeira vez que vi o "Pedro, o Louco" do Godard, sabia que a minha vida tinha mudado. Sei de atores que decidiram ser atores a ver um só espetáculo. Viram um espetáculo e a vida deles mudou. "Eu quero ser ator, eu vou ser ator". Aliás, não é "eu quero ser ator", é saírem dali para acabarem com a vida que tinham e tornarem-se atores. E, portanto, não sei se é salvífico, mas tem qualquer coisa de epifania, individualmente. Eu sei agora o que é que quero ser. Encontrei um chamamento, digamos.
E isso casa com o 25 de Abril. Porque sem a liberdade para criar, não se criam esses objetos capazes de mudar a vida das pessoas.
Isso é verdade. Por outro lado, há um problema que é um bom problema — o da variedade, da fartura, do desenvolvimento, do bem-estar. De repente, quando se tem muitas hipóteses, parece que é mais fácil ficar-se de pantufas no sofá em vez de perceber que a vida é um acontecimento frágil, necessário, de todos os dias e de cada pequena coisa. A arte não é um entretenimento — a arte e outras atividades, outros trabalhos. Não são brincadeiras necessárias para uns tostões, são construção, são mudança, são a busca de qualquer coisa melhor. Mas eu acho que isso é um bom problema.
A inclusão da realidade social de Djalma, desde a pobreza que o rodeia no início de vida, à própria forma como é violentado polícia, deixa transparecer também que nem tudo que Abril parecia trazer foi cumprida. Noutro momento, o Padre António desabafa que "depois de tanta ideia, tanta luta, tanta dor, tanta mudança, afinal o mundo ainda é uma imensa desigualdade". Como é que encara o país nestes 50 anos da Revolução?
É por isso que eu dizia que a Revolução continua e tem de continuar. E a democracia não pode parar, não pode ficar refém do seu próprio museu, da sua própria efeméride. A desigualdade continua a existir e o acesso à informação, à educação, a formas de melhoria de vida, continua a ser muito desigual. Este "Bairro de São Paulo" que eu crio aqui n'"A Gargalhada de Augusto Reis" onde vivem o Djalma dos Santos não anda muito longe de um bairro que tem vindo a destruído, o Bairro Santa Filomena, na Amadora, onde eu estive. Fui lá levado pelo José Fernandes quando escrevi um livro de não ficção para a Gulbenkian chamado "Vamos", com o fotógrafo Tiago Cunha Ferreira. Há lugares assim e lugares que até parecem de classe média por fora e depois vemos que as famílias que lá vivem não têm acesso a uma vida digna mínima, a padrões europeus mínimos. Aliás, vê-se nos números das pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. Isso é trágico e estes momentos de festejo, de celebração da Revolução e da democracia deviam servir essencialmente para isso, para perceber quase tudo para ser feito.
Normalmente temos terminado estas entrevistas com o repto "uma frase para o 25 de Abril". No entanto, façamos aqui uma exceção — há um momento do livro quando Sofia Bessa está a refletir quanto a uma fotografia tirada por Alfredo Cunha no dia da Revolução onde surge um jovem negro a olhar diretamente para a câmara. Esse capítulo acaba com "uma revolução como uma pergunta para a frente". Que pergunta é essa?
Vamos a isso?
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