Que terror. Onde se viu coisa destas acontecer? Terrível miséria a desta família, tragédia ignóbil, a romper-lhes a honra, o nome, enquanto o pano sobe, a luz sublinha os rostos desapontados, retrato da triste tristeza que lhes coube no destino. Como pode? Como é?
Jacques está sentado à nossa frente. Está refastelado, poderá dizer-se, embora os pés lhe denunciem que não é de conforto a posição. Atrás a miséria já descrita, a suspirar o miserável: este mesmo jovem Jacques, que fadou a família ao fado indigente da desgraça.
É assim que abre “Jacques ou a Submissão”, texto de Eugène Ionesco, que Jorge Pinto encena no palco do Teatro Carlos Alberto, no Porto, numa co-produção do coletivo Ensemble e do Teatro Nacional São João. Estreou esta quarta-feira em cena física, depois de já ter estreado no palco digital do teatro portuense.
Mas o teatro se fosse para ser feito num ecrã teria outro nome. Jorge Pinto, o encenador e responsável pela cenografia, nem quer ouvir falar de alternativas ao palco de carne e perdigotos.
Traduzido por Alexandra Moreira da Silva, o texto do dramaturgo romeno-francês traz o burlesco e o grotesco; a comédia e a histeria. Num jogo que se disputa mais no plano das palavras, ditas pelo meio de ações sem sentido, como os corpos que “flutuam” nas traseiras do palco.
"A nossa vida como construtores de espetáculos é o reflexo da condição humana", conta Jorge Pinto, que além de encenar teve em mãos a cenografia do espetáculo. "Quando vamos buscar peças de há cem, trezentos anos, o que fazemos é ver o que continua a informar a mente, o coração e o espírito humanos — e o que continua a ser digno de reparo."
Escrita em 1950, levada ao palco pela primeira vez em 1955, "Jacques ou a submissão" é uma das peças menos encenadas de Ionesco. Sete décadas depois, porém, há novas leituras a fazer: "o comentário que Ionesco faz naquela época não é o comentário que fazemos agora", afirma Jorge Pinto.
"A forma como um indivíduo, um pensante de há setenta anos, vê a família — eu tenho quase setenta anos, posso pensar —, o comentário que fazemos à família no tempo da guerra do Vietname e do Maio de 1968, o comentário que fazíamos aos diversos poderes que conhecemos, à posição da religião vai mudando. Se estivermos atidos ao comentário que o autor faz na altura, corremos o risco de fazer arqueologia teatral."
É "uma comédia do insólito, não do absurdo", distingue o encenador, concordando com Ionesco.
A questão das batatas com toucinho
A primeira cena termina com a submissão de Jacques. O jovem admite, por fim, após toda a pressão, depois de toda a discussão, que, sim, também gosta de batatas com toucinho — perdão, adora batatas com toucinho.
A magia desta frase é isso mesmo: misticismo oculto, nunca revelado, tampouco entendido ao certo, mesmo por quem encenou e encarnou. Mas João Cravo Cardoso, o ator de 29 anos que dá corpo a Jacques, atreve-se a um caminho.
"As batatas com toucinho podemos preencher com muita coisa: ao longo do processo vamos questionando muita coisa. O espetáculo começa com a mãe a dizer 'meu filho, não sei como foste capaz disto'. Dá claramente a sensação de que há uma frase, há qualquer coisa que o Jacques disse, antes de o pano abrir, que o espectador não ouve nem o leitor lê, mas que implica diretamente aquela reação que vemos", revela João.
"Na realidade, pode ser imensa coisa". "Há muitos estudiosos que falam, por exemplo da eventual homossexualidade do Jacques e ter sido justamente isso — porque há coisas que o pai diz que são dogmas de alguma intransigência paternal relativamente a esses assuntos, um conjunto de termos que nos podem, culturalmente, levar um bocadinho para aí".
Todavia, o verdadeiro significado "não é determinante nem para o ator que o faz, nem para o espectador que vê", assegura João Cravo Cardoso.
Afinal, “a racionalização neste espetáculo é uma coisa que nós não procuramos muito. Na verdade, o espectador que termine a obra... Não há uma grande explicação intelectual para as batatas com toucinho: na verdade, o Jacques, aquilo que tem é não querer seguir a linhagem cultural, educacional, política da família."
Voltar às cadeiras para sentir o cheiro das pessoas
Emília Silvestre, António Afonso Prata, Clara Nogueira, Miguel Eloy, Filomena Gigante, João Paulo Costa, João Cravo Cardoso, Bárbara Pais e Gabriela Leão dão vida às personagens de Ionesco. Sobem ao palco numa altura em que o país ainda vai tenteando a saída do longo confinamento, isolamento que atacou com especial força a cultura.
Subir ao palco com gente nas cadeiras traz elementos de catarse, de redenção e renascimento. E sentar no auditório para ver teatro traz de igual modo 60 minutos de abstração com esta comédia do insólito.
Hoje é fácil olhar para o texto de Ionesco e encontrar-lhe encaixes na realidade pandémica. Assenta como uma luva pensar nas relações internas de uma família, olhar de perto as dores do sangue... "Comove-me de um olho, faz-me chorar dos outros dois. É a veracidade!" — mas não é. Só agora sobe ao palco, apesar de já trazer três anos de planeamento na falda. Foi uma proposta de Nuno Cardoso a Jorge Pinto, que, mesmo já tendo Ionesco no currículo, não conhecia este texto em particular.
“Venham sentir connosco. Nós atiramos coisas para cima do palco para que se sinta. Não estamos a ensinar nada a ninguém. Nós apenas propomos o jogo e o jogo é lúdico”, desafia Jorge Pinto.
O espetáculo fica em cena de quarta a sexta-feira, às 19:00, e, ao sábado e domingo, às 11:00. Os bilhetes custam 10 euros. No final da récita de 30 de abril está programada uma conversa com o crítico e encenador Jorge Louraço Figueira.
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