Ainda hoje, o debate se mantém em relação aquilo que, concreta e objetivamente, define “música”. Musicólogos, melómanos, artistas e meros ouvintes vão divergindo de opinião, sem que seja possível formar uma opinião concreta. As opiniões vêm-se dividindo desde tempos imemoriais – desde o primeiro homem que bateu com um pedaço de madeira em duas pedras e gostou do som produzido, desde as primeiras composições de Bach, desde a guitarra de Chuck Berry, desde as rimas e os ritmos do hip-hop.
Parece que, em vez de se discutir aquilo que é a música, preferimos passar o nosso tempo a discutir aquilo que ela não é, de forma tosca ou humorística. Dizemos a um fã de heavy metal que aquilo que ele escuta não é música, é “barulho”; dizemos a um fã de techno que aquilo que ele escuta não é música, é pastilhada; dizemos a um fã de hip-hop que o que ele escuta é tipos a falar; dizemos a um fã de pop que aquilo que ele escuta é tudo fabricado... E assim sucessivamente. Gostamos de música, mas da nossa. A dos outros, não o é. É como uma discussão clubística ou partidária.
Isto para dizer que, ao longo das últimas duas décadas, Matthew Herbert tem desafiado, de forma consistente, aquilo que se entende por música. Não pelo seu estilo próprio, que abarca vários subgéneros dentro da música de dança eletrónica e até do jazz (já agora: tentem definir jazz, e o debate é quase tão aceso), mas pelo facto de recorrer a sons e a samples que não partem de instrumentos ou de gravações anteriores. Em “Around the House”, álbum de 1998, recorreu a vários objetos que qualquer pessoa tem na sua cozinha; em “Bodily Functions”, de 2001, utilizou sons produzidos pelos órgãos do corpo humano; em “One Pig”, de 2009, contou a história de vida de um porco, desde o nascimento até à matança (com guinchos e correrias e quejandos desse mesmo porco). Como se todo o mundo, ou todos os sons, fossem um instrumento musical.
Nada disso se (ou)viu, no entanto, durante o seu DJ set no festival Elétrico, dedicado à música de dança eletrónica, que se realizou no Porto no último fim de semana de julho. Ali, o seu público não era, quiçá, o mesmo que acompanha a sua carreira há já mais de vinte anos. Era um público mais jovem, mais predisposto a dançar que a pensar, mais preocupado em ter uma tarde de domingo bem passada, bebendo cidras, passeando cães e relaxando os músculos e os ouvidos. E Herbert cumpriu, selecionando diversos temas house, techno ou derivados, que levassem os presentes a esquecer por breves instantes a sua posição no mundo.
Vindo de um homem que afirmou anteriormente que um DJ set “é sempre improvisado”, este planeamento, ou esta escolha pelo denominador comum, talvez nos possam parecer estranhos. Mas ele mesmo no-lo explica, já depois de ter “improvisado” q.b. perto do final do espetáculo, quando uma faixa salta (o vulgo “prego”) e Herbert, sorrindo no meio da frustração, atira os headphones para trás das costas antes de voltar ao caminho correto. “Fiz asneira”, confidencia-nos, entre risos.
“Acho que a música só faz sentido se tiveres um ouvinte (...) Tens de aceitar que um DJ set é como um diálogo”
“Acho que a música só faz sentido se tiveres um ouvinte”, continua. “Não conhecia estas pessoas antes de vir [ao festival]. Tens de trabalhar aquilo que elas querem ouvir, e tentar dar-lhes isso. Mas também podes tentar dar-lhes algo de ti”. O que nem sempre resulta, claro. “Hoje passei um disco do qual gosto muito; fi-lo nos últimos três sets e as pessoas ficaram loucas. Mas, aqui, percebia-se que as pessoas não estavam interessadas [nele]... Tens de aceitar que [um DJ set] é como um diálogo”.
Ou seja; o trabalho de um DJ pode resultar num daqueles casos em que o cliente não tem razão. Não é, de todo, limitar-se a passar as canções que as pessoas querem ouvir, ou aquilo de que ele gosta. “Tem de ser as duas coisas”, explica Herbert. “Mas depende do tipo de DJ que és. Se estás a passar música às duas da manhã num clube em Ibiza ou num festival em frente a 25 mil pessoas, não podes passar o que te apetece. Tens de criar algo que se adeque àquela circunstância em particular. A dificuldade está em agarrares-te àquilo em que acreditas”. No Porto, esse lado mais experimental ficou, portanto, de fora – o que não significa que, para o britânico, tal tenha sido uma má experiência. “Diverti-me muito, não tenho críticas a apontar. Mas estive aqui em circunstâncias muito diferentes. É domingo, as pessoas já ouviram muita música”...
Quase tanta como a que Matthew Herbert vem ouvindo desde criança. Nascido em 1972, no Reino Unido, o músico / produtor / DJ começou a interessar-se por e a fazer música aos quatro anos de idade. “Ouvia muito a rádio. O John Peel [lendário DJ britânico que divulgou quase tudo o que importa em todos os quadrantes mais underground da música] foi muito importante, mas o Top of the Pops [programa de televisão com certas semelhanças ao “nosso” e “antigo” Top+] também. Quando eu tinha 5 anos, os Kraftwerk estavam no primeiro lugar das tabelas de vendas. Eram mainstream... Tal como o David Bowie, os Talk Talk, os Japan com o David Sylvian, o Prince... Sei que pensamos sempre que a música de antigamente era melhor, mas nos anos 80 existiu muita música incrível”.
Em particular no Reino Unido, que durante essa década atravessou vários períodos de cenas musicais que influenciariam praticamente tudo o que escutamos hoje em dia, como o pós-punk, o hip-hop ou o acid house, “padrasto” da música de dança eletrónica de hoje. “Foi um período muito entusiasmante para a música britânica. E também para o mainstream”. Ainda assim, Herbert admite prontamente que não foi tanto a música, e sim a tecnologia, aquilo que o fez querer seguir uma carreira nesta área: “Os meus pais compraram-me um sintetizador analógico quando eu tinha 14 anos. Foi isso o que mudou tudo, pessoalmente falando”.
Esse período fértil tem sido encarado com algum saudosismo, num tempo em que a grande maioria da música pop – salvo honrosas exceções – parece estar formatada nos mesmos exatos moldes. O britânico elogia “a democratização dos meios de produção”, que levaram a que se criasse cada vez mais música, “boa e má”. O único problema, especialmente para jovens músicos, é que “é cada vez mais difícil” ter na música um emprego. “É difícil que te paguem por ela, o que leva a duas coisas, uma boa e outra má: a boa é que as pessoas fazem-na por amor, e a má é que se sentem algo assustadas com a diferença”. Certo: a maioria das pessoas que escutam música preferem aquilo que conseguem reconhecer. “Ou, então, produzem música com a qual não querem assustar ninguém. Creio que o que falta à música de hoje é compromisso político”.
Um compromisso do qual Matthew Herbert nunca se absteve, tendo sido uma voz acérrima, no meio da música eletrónica, contra o Brexit. Dias após Boris Johnson ter sido indigitado primeiro-ministro do Reino Unido, seria difícil não lhe perguntar que futuro vê ele para o país. “De certa forma, acho bem que ele se tenha tornado primeiro-ministro. É um pouco à semelhança do Donald Trump, nos EUA: há um aspeto da cultura britânica que sempre ali esteve e que, como uma borbulha na cara, tem de ser espremida para que o lixo saia e possas voltar a ter um corpo saudável”, argumenta. “É bom que todas as pessoas que apoiaram o Brexit estejam agora encarregues de o cumprir. Se correr mal, a culpa será delas. Já não existe ninguém a quem possam deitar as culpas.
"O Brexit é mau mas não é tão mau quanto as alterações climáticas. Esse é o verdadeiro problema, e é isso que deveríamos estar a tentar resolver"
Assim sendo, existirá ainda alguma esperança de que o Reino Unido se mantenha na União Europeia? “Não creio que seja impossível, mas a situação muda diariamente. É como tentar prever um fogo-de-artifício: não sabes, até explodir, que formato terá, até onde subirá. O Boris Johnson é uma vergonha e um desastre para o nosso país mas, com sorte, irá pôr fim a um capítulo feio, para que possamos começar de novo, em melhor. O Brexit é mau mas não é tão mau quanto as alterações climáticas. Esse é o verdadeiro problema, e é isso que deveríamos estar a tentar resolver”.
Um problema, ou dois, cuja solução até poderá partir, se não da música, da inspiração que as pessoas sentem ao escutá-la. Lembramo-nos das free parties (festas gratuitas, muitas vezes ao ar livre e montadas sem permissão) dos anos 90, que se seguiram à explosão rave no Reino Unido, e que influenciaram milhares de pessoas por todo o mundo. Até serem proibidas por uma lei de 1994 (que, curiosamente, define “música” como “sons predominantemente caracterizados pela emissão de uma sucessão de ritmos repetitivos”...), foram – e alimentaram – uma espécie de revolução social no país.
“Foram muito revolucionárias, à altura – e é por isso que o governo acabou com elas”, conta Herbert, que viveu várias delas. Mas não são, de todo, a única forma de se fazer uma revolução ao som da música eletrónica. “O festival Sónar, em Barcelona, também deu início a algo de muito entusiasmante. Puseram pessoas como eu, ou como o Jamie Lidell, pessoas que não são muito famosas dentro da cena eletrónica, a tocar em grandes palcos, para grandes públicos. E essa é uma oportunidade fantástica, que só existe se alguém correr riscos”, comenta. A solução “não está só nas free parties, há outros métodos”. Venham eles.
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