É certo que, na história da música gravada, não existiu uma banda que tivesse o mesmo impacto social e musical que os Beatles. Os Fab Four influenciaram praticamente toda a pop que tem sido feita desde a década de 60, e alteraram inclusive a forma como se consome música: "Sgt. Pepper's", álbum que fez com que o mundo passasse a olhar para o formato "álbum" como obra de arte em si, deixando para trás o formato single que então predominava, é o culpado. Mas os Beatles não foram os únicos a influenciar, de forma tão grandiosa, a cultura e a música. No início da década de 70, um grupo nascido na Alemanha do pós-guerra abalou de igual forma as estruturas da música popular, principalmente quando abandonou sonoridades mais rock (e o "rock", aqui, era mais expansivo e experimental que o dos ingleses ou o dos norte-americanos) e adotou novas tecnologias na construção de uma música que, até então, nunca tinha sido escutada pela população em geral. O que não significa que a inventaram; tiveram os seus professores, como Stockhausen ou Xenakis, mas superaram-nos em estatuto. Chamavam-se Kraftwerk, e eram compostos por dois alunos da Universidade Robert Schumann, Ralf Hütter e Florian Schneider.
Primeiro foi "Autobahn" (1974), disco sobre a famosa auto-estrada alemã, onde se pode acelerar até ao infinito, a conquistar o imaginário dos ouvintes. Mais tarde, uma tríade de excelência composta por "Radio-Activity" (1975), "Trans-Europe Express" (1977) e "The Man-Machine" (1978) colocou-os, definitivamente, na história. David Bowie escutou-os atentamente (e os Kraftwerk influenciaram Bowie tanto quanto Bowie os influenciou: basta ouvir 'Trans-Europe Express', onde os alemães versam sobre encontrar Bowie e Iggy Pop) e criou a sua própria tríade, "Low", "Heroes" e "Lodger"; no Bronx, Afrika Bambaata samplou-os e criou 'Planet Rock', canção que é tanto precursora do electro como do hip-hop; também na América, um grupo de jovens de Detroit inspirou-se tanto neles como na sua própria cidade para criar o techno; em Inglaterra, órfãos do punk como os Depeche Mode ou os Yazoo venderam as suas guitarras (como diria James Murphy, dos LCD Soundsystem, que também samplou os Kraftwerk) e compraram sintetizadores. Um novo mundo nasceu com os Kraftwerk: o da chamada "música eletrónica".
Ver uma banda como os Kraftwerk hoje em dia é, sobretudo, um exercício nostálgico. Mas, para muitos dos presentes, esta é uma nostalgia diferente. Por entre a plateia, poucos eram os que aparentavam ter apanhado os alemães ainda no seu auge, sendo maioritariamente os mais jovens aqueles que não quiseram perder esta nova investida dos Kraftwerk em Portugal. Para estes, que nasceram e cresceram já depois da internet e que aprenderam desde muito cedo palavras como SMS ou 4G, a nostalgia existe por um futuro que não veio. Em “Fantasmas da Minha Vida”, Mark Fisher argumenta que «enquanto a cultura do século XX se viu acometida por um delírio recombinatório, convencendo-se de que a novidade estaria infinitamente disponível, o século XXI encontra-se oprimido por uma esmagadora sensação de finitude e exaustão. Não parece ser o futuro». Pelo que aquelas melodias da velha guarda e aqueles ritmos, para todo o efeito, datados, aliados aos visuais 3D e a referências antigas (o KGB é hoje o FSB, a Scotland Yard já não pertence ao imaginário dos espiões), são mais do que kitsch; são uma promessa por cumprir.
Desse modo, os Kraftwerk poderão, até, ser considerados como uma banda maior que os Beatles, que daqui a cem anos continuarão a ser ouvidos tal como Beethoven ou Mozart continuam a ser ouvidos. Porém, não serão o futuro – mesmo que um futuro preso em passado. Assim que Paul McCartney e Ringo Starr passarem para o mundo dos mortos os Beatles serão uma miragem; no caso dos Kraftwerk, que já só contam com Ralf Hütter entre os membros originais, basta trocar um membro por outro ou, melhor ainda, por um robô ou uma qualquer inteligência artificial que replique as canções do grupo exatamente da mesma maneira que têm vindo a ser replicadas há décadas. Esta noite, o espetáculo não divergiu muito daquilo que já lhes vimos em festivais como o NeoPop ou o EDP Cool Jazz: entraram um a um em palco, tocaram 'Numbers' e 'Computerworld' (um tema incrivelmente atual, se pensarmos que foi composto em 1981), provocaram um expectável burburinho na plateia assim que 'Spacelab' geolocalizou a cidade de Lisboa, mostraram carochas e Mercedes em 'Autobahn', entusiasmaram no êxito 'The Model' e terminaram, saindo também um a um, com 'Musique Non-Stop', já depois das inevitáveis 'Radio-Activity' (tanto a original como a remistura de “The Mix”), 'Tour de France', 'Trans-Europe Express' e 'Robots'. É normal que os alemães, no meio de todo o marasmo musical deste século, onde o retro é rei e senhor, ainda se apresentem como algo espetacularmente fresco; enquanto alguém salivar por um futuro, os Kraftwerk continuarão a existir.
O seu fantasma – e entenda-se “fantasma” como “influência” – esteve enormemente presente neste primeiro dia de MEO Kalorama, onde as principais atrações eram sobretudo eletrónicas. Os Chemical Brothers, encarregues de fechar a noite no Palco MEO, muito lhes devem. Nos anos 90, os britânicos foram um dos nomes cimeiros de um género a que se deu o nome de big beat que, como o nome indica, focava-se sobretudo no poder da batida, conferindo-lhe uma certa agressividade e aura rock (e não é de espantar que muita gente do rock os aprecie tanto). Após ter andado pelos lugares cimeiros das tabelas de vendas, a big beat desapareceu e deu lugar a outras linguagens, não tendo conseguido envelhecer da mesma forma que outros subgéneros que, ao contrário de si, já foram alvo de revivalismos vários.
Pese embora tudo isso, os Chemical Brothers conseguiram agarrar um público que tinha em mente o único propósito de dançar, mesmo que seja o espetáculo visual da dupla aquilo que mais cativa. Começaram com a incrível linha de baixo de 'Block Rockin' Beats', passaram pela majestosa 'Hey Girl Hey Boy', e terminaram com balões, com a 'Temptation' dos New Order a desaguar em 'Do It Again' e 'Star Guitar', e com a sempre fenomenal 'Galvanize', com a qual fecharam um set que, diga-se, só maravilha à primeira; vemo-los duas, três ou quatro vezes e o impacto já não é o mesmo.
Seja à tarde, seja à noite – e já o vimos de muitas formas... –, James Blake nunca vacila: a sua música consegue sempre apaixonar até os corações mais empedernidos, com a frase-chave, dita por um membro da plateia, a ser este gajo sabe mesmo cantar. "James Blake", o álbum de estreia, já lá vai, mas a sua presença continua a fazer-se sentir sempre que um rapper contemporâneo recorre a um piano ou ao autotune para acrescentar uma dose de sofrimento à sua voz. Porque é de sofrimento que se trata, sobretudo na versão que fez de 'Limit To Your Love', de Feist. Canção que, na verdade, já é sua. Blake, que nunca atuou em Portugal fora do contexto de um festival, ainda ameaçou entrar pelo circuito rave com 'Life Round Here' (a culpa é das sirenes), mas o ritmo nunca se apressou; houve algo próximo disso em 'Before'.
«Estou muito feliz por estar de volta. Obrigado pelo vosso apoio», atirou a dada altura. Até final ainda se escutaria 'Mile High', com Travis Scott a ecoar nas backtracks, e o portento dançável que dá pelo nome de 'CMYK'. Foi algo morno, mas ainda assim, e como de costume, bastante bonito.
Oriundos da Colômbia, os Bomba Estéreo apresentaram-se em palco vestidos de um branco angelical, até que se lhes juntou a sua vocalista, Li Saumet, uma espécie de Björk latina (e não só por causa das plumas cor-de-rosa que envergava). Uma bandeira colombiana erguida junto às grades procurou fazê-los sentir-se em casa, e a reação do público, quase sempre efusivo do início ao fim, há-de lhes ter removido as saudades do corpo. Certo: o português médio aprecia sobretudo duas coisas, o trip-hop e as chamadas "músicas do mundo". Mas poucos pensariam que os Bomba Estéreo, que nem eram um dos grandes destaques do dia, pudessem levar tamanha multidão ao Palco Colina, começando assim que James Blake terminou o seu concerto.
A música é feita de eletrónica com uns pós de folclore sul-americano, tudo resultando numa enorme vontade de dançar e levantar poeira, sobretudo com 'Soy Yo', que terminou com centenas de pessoas aos saltos. Pelo meio, 'Pájaros' contou com os silvos de uma ave de água e porcelana, e ainda houve tempo para uma canção nova, "roubada" a Manu Chao. Foram claros vencedores e é possível que as nossas pernas não recuperam tão cedo.
Para fechar o dia estava reservado um concerto dos Moderat, o seu quarto em Portugal continental. “Estava”, porque, quase à semelhança dos 2 Many DJs e de Tiga – que tocaram no Palco MEO praticamente à mesma hora que os Kraftwerk, e que abandonaram esse mesmo palco após 20 minutos devido a "conflito de som entre palcos" –, pouco se ouviu do grupo alemão, formado a partir dos Modeselektor e de Apparat. Se 'Reminder', logo a abrir, ainda aqueceu um grupo considerável de resistentes, a avalanche de subgraves que se lhe seguiu deixou muita gente sem vontade de continuar a assistir a tamanho desastre. Nada contra os Moderat, um dos grupos de música eletrónica mais interessantes da última década; tudo contra quem achou que deixar surdas centenas de pessoas era a melhor maneira de acabar com o primeiro dia de um festival que agora se estreou. Temos pena. Mesmo muita pena.
O MEO Kalorama prossegue esta sexta-feira, com o há muito aguardado regresso dos Arctic Monkeys em Portugal. Pelo Parque da Bela Vista passarão ainda Blossoms, Bonobo, Jessie Ware e Róisín Murphy, entre muitos outros.
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