Considerando os livros das duas religiões principais do mundo, os Evangelhos relatam a vida de Cristo, e foram escritos depois do tempo em que viveu. Além das cartas de S. Paulo, não há testemunhos contemporâneos; quanto ao Alcorão, foi escrito pelo próprio Maomé e não diz nada sobre ele. Pelo que se lê no seu livro, há muitos relatos de quem o conheceu pessoalmente. Quem escreveu esses relatos?
Enquanto ele estava vivo, ninguém escreveu sobre ele.. porque estava vivo! Mas, como era uma figura muito interessante, todos queriam saber pormenores sobre ele. Tornou-se uma celebridade, nos últimos anos de vida. Então todos queriam saber qual era a sua altura, o seu peso, o que gostava de comer. Durante a maior parte do tempo como profeta foi um proscrito e era ridicularizado; mas nos últimos anos passou a ser aceite, ele e os seus ensinamentos. Quando alguém é mostrado negativamente durante tantos anos e depois se torna famoso, as pessoas interrogam-se: “aquele que julgávamos tão mal, afinal como era?” E perguntaram aos seus familiares esses pormenores.
Ele viveu numa sociedade muito conservadora, não foi?
Sim, era uma sociedade cheia de tradições e ele revelou-se muito progressista. Era uma cultura muito patriarcal, machista e misógina. Os homens obedeciam aos preceitos tribais, não podiam mostrar as suas emoções. Ele também foi duro a educar os filhos, mas tinha uma atitude aberta em relação à humanidade.
No livro mostra-o como uma pessoa boa, igualitário com as mulheres, contra a escravatura, um humanista. Mas o Islão continua a não ser assim. Sabemos que os árabes praticavam a escravatura muito antes dos cristãos; quando os cristãos, nomeadamente os portugueses, começaram a negociar escravos, compravam-nos aos árabes. E os muçulmanos tratam as mulheres como pessoas menores, para dizer de uma forma elegante. Então, isso vai contra os ensinamentos dele?
Exactamente. E, em parte, foi por isso que escrevi o livro, porque encontrei uma grande diferença. O que aprendi sobre o Profeta foi através das fontes do seu tempo e vi as contradições entre os seus ensinamentos e o comportamento dos fiéis.
Então não romantizou a sua vida?
De maneira nenhuma. Quis mostrar como é que este homem realmente foi. Pode ver-se pelo que ensinou. Não faz sentido que uma pessoa como ele possa inspirar atitudes negativas. Percebi que muitas atitudes de hoje são semelhantes às daqueles que ele quis mudar. Portanto, se queremos mudar essas atitudes, temos de recuar ao tempo em que ele fez essa tentativa.
Uma velha questão, nunca resolvida, é se a cultura faz a religião, ou se a religião faz a cultura. Vê-se isso, por exemplo, entre os protestantes e os católicos; o protestantismo impôs-se no Norte da Europa, que tem uma cultura característica, e o catolicismo manteve no Sul, que tem uma cultura diferente. Os muçulmanos é a mesma coisa, não? Há os talibãs... Usam todos o mesmo Alcorão como referência?
Todos usam. E é esse o problema. Sob que perspectiva se lê? Se uso óculos encarnados, o mundo inteiro é encarnado. Não porque o seja, mas por causa dos óculos. Mas é assim que o veem, e é assim que querem que toda a gente o veja. O que é preciso é tirar os óculos e ver as coisas como são.
Como é que os ensinamentos de Maomé se transformaram em leituras tão diferentes?
Isso aconteceu com o tempo, porque depois dele morrer, perdeu o controle da narrativa. São outras pessoas que controlam o que lhes convém que seja a narrativa. Por isso é que decidi ir às fontes primárias. Como Barakah, a mulher negra cristã que o acompanhou a vida toda. O que ela diz é a sua percepção em primeira mão. E outras pessoas que o conheceram intimamente. Os que vieram depois tinham impérios, queriam controlar os súbditos, e usaram o Profeta em seu proveito. É o que acontece quando se é o chefe de um império e se precisa da religião para controlar os pios, manipular os fracos. Infelizmente, em árabe as palavras podem ter sentidos diferentes e a questão é qual é o sentido original. Cada tribo, cada movimento, tem a sua própria interpretação.
Nesse caso, a cultura provocou as diferenças em relação aos ensinamentos originais. Aliás, surpreendeu-me saber que nos tempos de Maomé os judeus e os cristãos viviam em harmonia com os politeístas. Não havia animosidade entre eles.
Exactamente. E, quando se cria um império, é preciso que as pessoas se odeiem, para as poder conquistar. É preciso virar uns contra os outros.
Esse era um aspecto positivo do Império romano. Aceitavam todas as religiões. Eram terríveis quando queriam submeter um povo, mas depois eram tolerantes com a religião conquistada.
Durante o reinado dos Abássidas (750-1258), a Idade Dourada do Islão, também foi assim. Havia cristãos, muçulmanos, judeus e zoroatristas, a trabalhar juntos na ciência e nas artes.
Abraão é a origem de todas essas religiões, não é?
Sim, o Abraão era da Mesopotâmia e foi chamado por Deus para viajar por todo o Oriente e pregar a sua palavra.
E o anjo Gabriel também é referência comum? Para mim é muito confuso...
Há muitas referências comuns a essas religiões. Uma coisa que me apercebi durante as minhas investigações é que todos dizem o mesmo, apenas usam palavras diferentes. Dou-lhe um exemplo: havia um grupo de pessoas que percorria a Rota da Seda e discutia muito porque cada fé usava palavras diferentes para dizer a mesma coisa. Então apareceu um homem que disse: “Não precisam de discutir, eu tenho a solução” e apresentou-lhes um cesto cheio de uvas. E verificaram que, embora lhe dessem nomes diferentes, a fruta era a mesma. A solução é uma linguagem comum a todos.
Os cristãos e os muçulmanos tornaram-se inimigos ferozes. Quando chegaram ao poder em Roma, os cristãos queriam ser a única religião verdadeira e acabaram com a harmonia religiosa que existia.
Pois, a diversidade é essencial. Até na agricultura. Quando se planta uma única espécie, o solo torna-se estéril.
Falemos agora sobre si. Não nasceu muçulmano?
Nasci numa família muçulmana, mas que não era religiosa. Tive curiosidade em saber donde vinha o meu nome e o que significava. E quando comecei a estudar fiquei surpreendido em ver que as pessoas acreditam numa coisa que não corresponde à realidade. A maioria dos muçulmanos são pacíficos, normais. É a minoria radical que faz os outros terem essa impressão negativa do Islão.
Como o Estado Islâmico, que é diferente dos Talibã.
Pois é. E odeiam-se! Como se costuma dizer, ódio gera ódio, e amor gera amor.
No cristianismo também há várias correntes. E os cristãos não tratam as mulheres lá muito bem. Há cinquenta anos, aqui em Portugal, havia muitas restrições para as mulheres. Mas então, começou a viajar e a ir aos lugares sagrados do Islão?
Sim, fui. Queria ver o que Maomé viu. O ambiente era realmente inspirador. Deserto a perder de vista, onde não crescem nem ervas. Não há referências naturais, como árvores.
Então e Meca?
Meca era um entreposto comercial, um cruzamento de caminhos entre a Índia, África e o Império Romano.
Achei impressionante a sua descrição de Damasco, com os cheiros, os ruídos, o movimento nas ruas. E depois lembrei-me que agora Damasco é na Síria, está sob o controle daquele tipo sinistro, o Bashar al-Assad, não teve ter a vida colorida de há séculos atrás.
Na época de Maomé, Damasco era maioritariamente cristã. Ele ia lá como comerciante.
Como vê o futuro do Islão?
Bem, espero que o meu livro, e outro que estou agora a escrever, alarguem a compreensão sobre Maomé em particular e, por extensão, do Islamismo. Espero que abram a cabeça das pessoas e provoquem um Renascimento do Islão, um progresso em relação a estes tempos negros.
Às vezes cogito que o Islão está setecentos anos atrasado em relação ao cristianismo (a Egira, que marca o ano zero do islamismo, foi no ano 622 da Era Cristã) e que um dia também entrará na mesma decadência e os fiéis deixarão de ser tão radicais. Na Europa, mais de metade das pessoas dizem que não têm nenhuma religião. Mas com as questões culturais nunca se sabe.
Acho que o que precisamos é de um verdadeiro Renascimento do Islão. Entre os séculos IX e XIII, os muçulmanos eram a força cultural mais importante em termos de conhecimento. Aprendiam e traduziam tudo, estavam na vanguarda. Agora não há progresso no Islão.
Mas isso acontece com todas as culturas. Veja os gregos, por exemplo, que no início da Antiguidade Clássica eram os mais avançados nas artes e nas ciências e no final eram apenas uma colónia romana.
Todas as culturas passam por ciclos.
Há um historiador britânico, Arnold Toynbee que estudou em pormenor os ciclos das grandes civilizações. E o Arnold Hauser escreveu um livro sobre a ascensão de decadência das culturas que vale a pena ler.
Acho que esse Renascimento pode começar quando pudermos aproveitar o melhor de todas as culturas, sem preconceitos. O problema é que as pessoas querem ter uma identidade de grupo que as distinga dos outros grupos. Mas acho que se pode pertencer a uma cultura sem ser hostil em relação às outras. Tudo o que é preciso é auto-confiança. A grande vantagem de Maomé é que ele aprendeu de diferentes credos, judeus, cristãos... Um dos seus tutores era muito preconceituoso, e isso ensinou-o que não se deve ter preconceitos. Outro era um cristão devoto de Damasco. Todos têm algo para ensinar. Quando aprendemos com pessoas tão diferentes, podemos compreender-nos melhor a nós próprios e podemos interagir melhor com os outros.
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