Em maio de 1990, Quorthon – fundador dos Bathory, nome indispensável para que se possa entender toda a cena metal pós-1984 – esteve em Portugal para apresentar “Hammerheart”, disco lançado nesse ano. Duas sessões de autógrafos, em Almada e em Lisboa, possibilitaram aos fãs encontrarem-se de perto com um dos expoentes máximos do lado mais extremo do género. Nessas sessões, registadas para a posteridade, estiveram presentes alguns dos nomes que ajudaram a fazer a cena metal portuguesa: membros dos Theriomorphic, Decayed, Filli Nigrantium Infernalium e, mais importante para o contexto deste artigo, um adolescente Fernando Ribeiro, que à altura já tinha formado o seu primeiro grupo, os Morbid God.
Mais tarde, Ribeiro haveria de descrever esse encontro como “o dia mais feliz da sua vida”, excetuando o nascimento do seu filho e outras datas da sua vida pessoal. A descrição não é de somenos. Está aí, nesse maio de 1990, a primeira semente daquilo que viriam a ser os Moonspell, nascidos dos Morbid God em 1992, nos dedos e na alma a vontade de trazer para um país ainda mal refeito de meio século de ditadura uma sonoridade para a qual possivelmente não estava preparado: o black metal, ao qual Quorthon e os Venom deram uma estética, os noruegueses aperfeiçoaram e os franceses transcenderam.
Trinta anos depois, já praticamente não há black metal na sonoridade dos Moonspell. A banda soube reinventar-se, uma e outra vez. Abraçou o gótico, ao início (com “Wolfheart” e “Irreligious” à cabeça), experimentou no final dos anos 90, virou de milénio com a bandeira do metal bem erguida, e bem ao lado da bandeira portuguesa. Nunca os Moonspell tiveram vergonha de serem portugueses, e nunca ninguém fez mais que os Moonspell, dentro desse espetro gigante onde o peso e o negro alimentam corações e gerações, além-fronteiras. Talvez só Amália Rodrigues e os Madredeus estejam à sua frente, e só o estão porque o fado, lá fora, é exótico. Chegaram aos topes de países como a Alemanha, Finlândia, Bélgica, até Estados Unidos. Atuaram em três continentes, faltando-lhes apenas África e a longínqua Oceânia. Fizeram amigos de respeito, como os Rotting Christ, os Tiamat, os Behemoth, os Kreator ou os Cradle of Filth – tudo nomes que um fã de metal tão bem conhece, tudo nomes que deram os parabéns aos Moonspell, num vídeo exibido pouco antes do início deste concerto no Coliseu dos Recreios, pelos trinta anos de carreira.
Trinta é um número imenso no que a estas lides musicais diz respeito. É-o ainda mais quando o heavy metal, que tem milhões e milhões de fãs espalhados por todo o planeta, continua a ser encarado como uma música de nicho – os seus praticantes não são bonitas estrelas pop, os seus fãs não se vestem como a sociedade em geral o deseja, a sua música não agrada a todos os ouvidos como uma boa melodia. E pur si muove. Nesta noite, não se celebraram apenas os trinta anos dos Moonspell, mas sim o metal enquanto género, enquanto movimento, enquanto camaradagem, como tem que ser sempre que algum grupo ultrapassa em larga escala o prazo médio de vida de um grupo.
O Coliseu dos Recreios não esgotou, mas compôs-se para assistir de perto ao regresso dos Moonspell à capital. Junto do bar, uma mini-exposição reuniu alguns dos objetos com os quais também se fez a história do grupo: um crânio humano real (o mesmo que aparece na capa de “The Antidote”), ossadas de búfalo (da digressão em torno de “Extinct”), o desenho que virou logótipo (nascido em “Darkness And Hope”). O público, sempre vestido de preto, e atravessando várias gerações, ia fotografando e ia-se fotografando junto dessas relíquias, que os colecionadores com carteiras mais recheadas poderão obter mediante a oferta certa. Findo o concerto dos suíços Samael, convidados a fazer as primeiras partes destes concertos celebratórios (na véspera, os Moonspell passaram pelo Coliseu do Porto), findas as supracitadas parabenizações, eis que os Moonspell surgiram em palco, primeiro através de uma série de vídeos dos seus primórdios (onde ainda imperava o corpsepaint), depois escondidos por um véu que ocultou, mas não muito, a performance do primeiro tema aqui escutado: 'Serpent Angel', maqueta gravada em 1992 ainda com o nome Morbid God.
Desses tempos, já só resta Fernando Ribeiro (o baterista “Mike” Gaspar, que o acompanhava desde então, saiu dos Moonspell em 2020). É sua a presença maior em palco, o ponto que todos os olhares miram, seja quando pega no microfone com o jeito que lhe é característico, seja quando ergue o punho, ou os dedos, no tradicional formato dos cornos metaleiros, seja quando impele os presentes a mostrarem mais alguma raça. 'Serpent Angel', blastbeats e riffs demoníacos, tinha que abrir um concerto de aniversário porque a ideia era a de mostrar todas as fases dos Moonspell ao longo de três décadas – Ribeiro descreveu o alinhamento como “uma disposição de vários quadros”. O black metal indicava então o caminho, e continuou a fazê-lo nos dois temas seguintes, ambos retirados ao EP “Under the Moonspell” (1994), ambos com o título 'Tenebrarum Oratorium', movimentos um e dois. O verso satânico a preencher todo o ar, gritado como se o divino tivesse que ser expulso à facada do seu pedestal, naquele ali e agora: The majestic horns of Baphomet are indeed our occult banners proudly up in the air...
Num alinhamento que foi previamente escolhido pelos fãs, através de uma votação nas redes sociais, surpreendeu a presença de dois temas que os Moonspell gravaram para “Wolfheart” (1995), e que distinguiram, e continuam a distinguir, este grupo metal em particular dos demais: 'Trebaruna' e 'Ataegina', ambos com nomes de divindades da mitologia lusitana, ambos donos de uma sonoridade mais próxima do folclore português, ambos interpretados por Ribeiro ao lado dos Cornalusa, grupo dedicado à música de cariz tradicional. Foi nesses dois temas que os Moonspell, à altura, deixaram bem vincada a sua posição no mundo: mais que uma banda de heavy metal, eram uma banda lusitana. Que desse disco também faça parte 'Alma Mater', onde o espírito construiu o refrão (virando costas ao mundo, orgulhosamente sós), e que se tornaria no maior “hino” dos Moonspell, é apenas um bónus.
'Alma Mater' também se fez, com toda a naturalidade, ouvir esta noite, acompanhada pelo erguer da bandeira portuguesa (por fãs e pelo próprio Ribeiro), por um jogo de luzes que a lembraram, e por uma explosão de confettis, no final, com as suas cores. Seguiu-se outro grande hino dos Moonspell, 'Opium', também ele prenhe de Portugal – ou não tivesse sido inspirado por Fernando Pessoa, cuja assinatura surgiria projetada no fundo de palco. Correndo rapidamente pelos anos 90, onde os Moonspell mais experimentaram com os sons (black metal, metal gótico, rock gótico, rock industrial), chegou-se até “Sin/Pecado” (1997) e até 'Mute', para aquele que foi possivelmente o momento mais enternecedor de todo este espetáculo, com Ribeiro a entoar uma das suas canções mais românticas ao lado dos violoncelos dos Opus Diabolicum e do piano de Pedro Paixão.
Já depois de 'Soulsick' e 'The Butterfly FX', de “The Butterfly Effect” (1999), álbum onde os Moonspell abraçaram a eletrónica, voltou-se ao metal com a viagem alcatroada (e assustadora: é só recordar o vídeo) de 'Nocturna', até um pequeno interlúdio, cortesia de José Luís Peixoto, dar o mote para 'Antidote' e 'The Southern Deathstyle'. Em 2003, grupo e escritor uniram-se para algo nunca antes visto: um álbum de canções, e um livro de contos inspirado por essas mesmas canções. Não espanta que “The Antidote” seja o melhor disco dos Moonspell e um dos melhores da música feita em Portugal – e isso não é apenas culpa do conceito que se lhe aplicou.
'Finisterra', o único tema resgatado a “Memorial” (2006), e 'Night Eternal', o único resgatado ao disco ao qual deu nome (2008), acabariam por ceder lugar a 'Em Nome Do Medo', onde a língua de Camões voltou a ganhar proeminência e que contou com a ajuda de outro grande vulto do metal nacional: Rui Sidónio, homem forte dos Bizarra Locomotiva. Proeminência, também, a de vários corpos femininos nas imagens que acompanharam 'White Skies', até que 'Todos Os Santos' e 'All Or Nothing' anunciaram o fim de mais de duas horas da festa dos Moonspell no Coliseu dos Recreios. O fim propriamente dito estava alocado para 'Full Moon Madness', onde o uivo buscou a magia desse enorme satélite branco que ilumina as noites. Foi sobretudo uma viagem pelo passado, mas que não se pense neste espetáculo como um exercício nostálgico por parte dos Moonspell. Ainda há muito caminho por trilhar, como bem explanou o seu vocalista: “O futuro está à nossa frente”, disse, desejando também ver todos estes rostos no próximo concerto do grupo. E o futuro, como os acordes de 'Chorai Lusitânia!', escutada no PA mal as luzes se reacenderam, ameaça ser igualmente belo.
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