Não é fácil, para uma banda, sobreviver a uma tragédia tão grande quanto a morte de um dos seus membros. Particularmente se o falecido for nada mais nada menos que o seu frontman, o vocalista, o letrista, o rosto visível dentro do som. Assim foi com os Joy Division, que se viram forçados a lamentar a morte prematura de Ian Curtis, a sombra que alimentava a sombra que era a sua música. Nas biografias de Peter Hook (baixista que entretanto entrou em conflito com os ex-colegas) e de Bernard Sumner (guitarrista dos Joy Division) é possível perceber uma mesma ideia: só em retrospetiva é que os comparsas e amigos de Curtis conseguem perceber os motivos que levaram ao suicídio deste. Quando se é jovem, nunca se entende, nunca se aceita a partida de alguém tão próximo.
Com essa morte, os Joy Division viram-se obrigados não a crescer, mas a reinventarem-se. A base da banda ficou a mesma – entrou Gillian Gilbert, namorada do baterista Stephen Morris, para a guitarra e teclados –, e só o nome foi alterado: New Order. Uma nova ordem, um novo rumo, uma nova vida. Das cinzas de Curtis, Sumner, Morris e Hook renasceram e passaram a apostar não só no punk onde se tinham formado, mas também na eletrónica (via Kraftwerk) e no disco que adoravam. O resultado foi um grupo que mudou, à sua maneira, a história da música.
Fê-lo porque, até ao seu surgimento, nunca ninguém se havia lembrado de combinar a energia que brotava do rock e do punk com os ritmos e a toada maquinal da música de dança. Se “Movement”, álbum de estreia editado em 1981, ainda tinha algumas dívidas para com a sonoridade dos Joy Division, “Power, Corruption & Lies”, dois anos depois, já vai buscar a eletrónica para criar algo que, à altura, era novo, fresco e entusiasmante. E mais ficou com os três álbuns subsequentes, “Low-Life” (1985), “Brotherhood” (1986) e sobretudo “Technique” (1989), onde os New Order passaram a incorporar os sons que vinham da Ibiza noturna e do acid house que despontava então na nativa Manchester (e o qual também influenciaram).
Mas nem tudo era fácil. Ao mesmo tempo que os New Order ditavam a tendência, a Factory Records (a sua editora desde sempre) e a Haçienda (discoteca erguida em Manchester pela editora e alimentada pelo dinheiro ganho pela banda) batiam no fundo, financeiramente falando. No seio do grupo, as relações não eram as melhores, com a disputa Hook-Sumner a crescer cada vez mais. Um hiato nos anos 90 ainda tentou colocar alguma água na fervura, e o novo milénio trouxe consigo dois álbuns: “Get Ready” (2001) e “Waiting for the Sirens' Call” (2005). Até que, em 2007, tudo implodiu: o baixista bateu com a porta, e os New Order voltaram a esconder-se.
Até 2011. Sem Hook, a banda anunciou a sua reunião, que dura até hoje, tendo vindo a tocar em vários festivais e salas de espetáculo por todo o mundo, por entre litígios judiciais e trocas de palavras menos simpáticas para a imprensa. Os fãs viram-se obrigados a dividir as suas atenções entre os New Order e o seu ex-baixista, que também o tem feito com a sua própria banda, os The Light. Se a desilusão existe por já não ver os três Joy Division vivos num mesmo palco, a felicidade por poder escutar as suas canções de duas formas diferentes existe – e a isso atestam as muitas t-shirts, sobretudo de “Unknown Pleasures”, primeiro álbum da banda, que pintalgaram de preto o Vodafone Paredes de Coura.
Ainda assim – e começamos pelo negativo – não deverá existir um único fã que tenha ficado plenamente satisfeito com o assassinato “destes” New Order a dois dos temas mais emblemáticos dos Joy Division, 'Atmosphere' (interpretada completamente fora de tempo) e 'Love Will Tear Us Apart' (num tom mais elevado e, por conseguinte, mais “alegre”). Reservadas para o encore, essas duas canções foram uma bofetada de realidade para todos os que ali estavam: hoje em dia, aquilo que os New Order se limitam a fazer é a exploração nostálgica de um passado e do mito com o qual criaram toda uma carreira na música – e nem o rosto fechado de Ian Curtis, no ecrã de fundo, faltou.
Foi a mancha num concerto que até então nos tinha feito esquecer, grosso modo, que essa exploração nostálgica existe e existirá sempre por entre a grande maioria dos grupos mais veteranos. Antes de 'Atmosphere' e 'Love Will Tear Us Apart' já havíamos escutado, também, 'She's Lost Control' e 'Transmission', numa toada algo fraca mas que ainda assim não as prejudicavam. Foi preciso chegar até 'Your Silent Face' para que, por fim, a colina se transformasse numa enorme pista de dança, a mesma pela qual vínhamos suspirando desde que os New Order foram confirmados no festival.
Se aí a música se fez dança, fez-se assombro mais à frente: a cintilante 'Subculture' devolveu-nos os anos 80 alternativos que tanto amamos, 'Bizarre Love Triangle' fez-nos ajoelhar (está tudo no refrão: Every time I see you falling / I get down on my knees and pray...), o tech house de 'Waiting for the Sirens' Call' mostrou que houve vida nos New Order para além dessa mencionada década e 'True Faith' espalhou sorrisos, tão grandes quanto aquele envergado por Bernard Sumner ao interpretá-la. O final, mágico, deu-se ao som de uma remistura algo desconexa da inevitável 'Blue Monday' e da bola de espelhos erguida e colorida em 'Temptation', para colocar o ouro naquela que foi uma atuação que não nos havia feito corar de vergonha até então. Mas podemos sempre riscar da memória, tal como os New Order o fizeram com as suas próprias tragédias, o que se passou a seguir – e afirmar que o concerto que queríamos e merecíamos acabou com 'Temptation'. Será melhor assim.
Antes da dança, foi dos Car Seat Headrest, banda que é sobretudo um projeto a solo do norte-americano Will Toledo, o palco principal do Vodafone Paredes de Coura. Tendo trocado o horário da sua atuação com o dos Capitão Fausto, que fecharam a noite, o grupo deu um espetáculo coeso e cheio de ótimas canções, mesmo que no final a sensação que fique, do alto do seu rock n' roll juvenil, seja a de que lhe falta ali algum perigo, alguma vertigem. Isso pouco importa, claro; os Car Seat Headrest são de e para jovens, os mesmos que, nas filas da frente, não deixaram de cantar e de levantar poeira com cada um dos riffs que dali brotavam. Perto do final e perante um dilúvio de efusividade, foi 'Drunk Drivers/Killer Whales' a resplandecer já a noite ia alta.
Voltando um pouco o relógio, destaque-se Stella Donnelly, substituta de última hora de Julien Baker, que cancelou por motivos alheios à organização. Dizendo-se “honrada” por ter sido convidada a fazê-lo, a cantautora mostrou, mais que tudo, ter uma enorme apetência para a comédia – e nem faltou uma curta interpretação do tema-título de “Seinfeld” para o comprovar. Ora vejamos: em 'You Owe Me', explica que um dos versos se refere “a uma cerveja australiana de m...”, antes de perguntar ao público que cerveja portuguesa merecia o mesmo adjetivo (distinção entregue à rival da patrocinadora deste festival). Pouco depois, manda um abraço aos Khruangbin, «uma das minhas bandas favoritas», que atuavam à mesma hora. E sobre 'Mosquito', refere que é uma canção de amor – antes de contar que essa mesma canção deixou a sua própria mãe envergonhada, por falar num vibrador («que é herança de família, por isso a culpa é da avó»). Primeiro a solo, depois com banda, Stella encantou e deixou-se encantar pelo festival; tem necessariamente que voltar sem que seja substituta de ninguém.
Por falar em Khruangbin, o trio texano deu um belo concerto ao início da tarde, o momento em que grande parte do público ainda está a tentar descomprimir do almoço farto e dos banhos no rio. A música é psicadélica, com laivos orientais, onde se destaca a guitarra prenhe de wah-wah e o baixo, groovy e minimal, e por isso perfeito. «Este é um dos festivais mais incríveis onde já estivemos», disseram a dada altura, e não há como não acreditar. Mais tarde, os Alvvays mostrariam um rock sonhador e ruidoso (chama-se shoegaze) naquele que foi o último espetáculo da sua digressão atual (e sem se deixarem fotografar), e os Boy Pablo começaram por ser um grupo de cinco “manos” a chocarem uns contra os outros em palco, antes de mostrarem uma estética vaporwave (palmeiras, estradas, coloridos sóis em 3D) e uma música que oscilava entre a synthpop mais batida e o funk mais indie. O problema: os Parcels fizeram-no melhor na noite anterior, e n bandas fazem-no melhor a cada ano. Não ficarão para a história.
O Vodafone Paredes de Coura prossegue esta sexta-feira, com concertos de Spiritualized, Father John Misty, Black Midi e Peaking Lights, entre outros. Os bilhetes diários estão à venda, nos locais habituais, pelo preço de 55 euros.
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