Os últimos 105 dias da parede Norte da Capela do Fundador do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, contam uma história que só Almada Negreiros poderia imaginar.
Esta parede, com 587 anos de história, nunca foi nada além de uma parede, condição que não é coisa pouca, ou não fizesse esta estrutura parte de um dos edifícios mais nobres do Mosteiro da Batalha.
A capela, pintada pelo sol que ilumina os vitrais, alberga, no centro, entre os oito pilares que empurram a abóbada estrelada até um lugar mais próximo do céu, o túmulo conjugal de D. João I e D. Filipa de Lencastre. Nas paredes, onde se rasgam arcos em ogiva, estão os túmulos do Infante e Regente D. Pedro e da sua mulher, Isabel de Urgel, duquesa de Coimbra. Também ali jazem D. Henrique, o Navegador e Mestre da Ordem de Cristo, o Infante D. João, mestre da Ordem de Santiago e sua esposa, D. Isabel, D. Fernando, mestre da Ordem de Avis, que morreu com fama de santo, no cativeiro de Fez. Contam-se ainda os túmulos mandados construir pelo rei D. Carlos no início do século XX para albergar os restos mortais do rei D. Afonso V, neto de D. João I, do rei D. João II, filho de D. Afonso V, e, finalmente, do príncipe herdeiro D. Afonso, filho de D. João II.
Na parede norte, nada. Nem arte nem arquitetura. Só uma parede.
E assim foi durante centenas de anos, até esta se ver diante de Almada Negreiros, na década de 50, num encontro que mudaria a vida de ambos.
Almada encontrou ali a parede do retábulo que tinha imaginado e estudado nos últimos anos, o local de destino, entre outras pinturas, dos famosos painéis de S. Vicente, obra maior da pintura europeia do século XV, descobertos no final do século XIX e sobre o qual não há consenso relativamente ao lugar de origem/destino ou até mesmo sobre o autor. Alvo de diversas teses, são atualmente atribuídas a Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V, monarca sepultado a poucos metros da dita parede, acreditando-se que estariam originalmente integradas no retábulo de São Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa.
Aquela que era só uma parede, passou então a ser a tela dos estudos geométricos a que Almada dedicou os últimos 15 anos da sua vida, procurando a comprovar a sua tese, uma proposta radical e polémica para os painéis.
Tudo aconteceu quando Almada Negreiros, numa visita ao mosteiro, acompanhado pelo arquiteto José Cortez e pelo escultor Leopoldo de Almeida (autor da estátua equestre de D. Nuno Álvares Pereira, que ainda hoje eterniza o homem responsável pela vitória das tropas portuguesas na Batalha de Aljubarrota, o que levou à decisão de construir aquele monumento), teve uma epifania ao olhar para aquela parede. Viu ali o local de destino do retábulo, que acreditava albergar os painéis e outras quatro obras (número esse que viria a mudar, depois de avanços na investigação, tendo a versão final da tese integrado 15 pinturas: os painéis de S. Vicente e outras nove).
A visão de Almada sobre aquela parede, um trabalho desconhecido da maioria do público, começou a ser ‘desconfinado’ nos últimos anos, através do espólio do próprio, mantido pelas netas Rita e Catarina Almada Negreiros, tendo resultado numa exposição comissariada pelo investigador Simão Palmeirim. A mostra está albergada pelo Mosteiro da Batalha, na Capela do Fundador, no lugar onde Almada Negreiros imaginou o retábulo. Aqui expõem-se em tamanho real, numa composição com mais de 10 metros, as reproduções dos painéis de S. Vicente, para além de outras pinturas primitivas. Podem ainda ver-se as maquetes, textos, desenhos e composições geométricas com que tentou provar a sua teoria, naquela que foi a obsessão dos seus últimos anos de vida.
O trabalho exposto é fruto de estudo feito por Simão Palmeirim e Pedro Freitas, investigadores de centros universitários que trabalham com o Projeto Modernismo.pt sobre a tese avançada pelo artista há 70 anos e agora concretizada no local imaginado.
Simão Palmeirim é investigador do Centro de Investigação e de Estudos de Belas-Artes (CIEBA)/Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Pedro Freitas integra o Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT), da Universidade de Lisboa.
A tese de Almada foi oficialmente desconfinada no final de 2020, com uma primeira exposição dedicada ao estudo do artista sobre os painéis de S. Vicente, e volta agora a ser libertada do confinamento a que foi votada.
Inaugurada a 20 de dezembro de 2020 e encerrada a 14 de janeiro de 2021, devido às medidas de combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus, que empurrou o país para um segundo confinamento generalizado, a exposição esteve menos de um mês aberta ao público.
“Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha - quinze pinturas primitivas num retábulo imaginado” regressa agora, abre portas juntamente com o Mosteiro, no primeiro dia do plano da segunda fase de desconfinamento.
Esta é a história de uma exposição que é também a inscrição do trabalho, vida e imaginação de uma das maiores figuras da cultura portuguesa numa parede onde antes ninguém tinha visto nada e onde hoje, até ao final deste ano, conseguimos ver tudo o que Almada viu - e nos contou.
Um homem e uma parede
A relação de Almada Negreiros com o Mosteiro da Batalha está documentada com fotografias de duas visitas. Uma primeira, algures nos anos 20, a propósito de um filme que estava a ser rodado na região. Outra, já nos anos 50, no contexto de uma série de viagens que Almada faz com o arquiteto José Cortez e o escultor Leopoldo de Almeida, entre as quais uma ida à Batalha, quando Leopoldo tem uma escultura que está a ser preparada para lá.
“Não sabemos que tenham havido muitas mais viagens à Batalha por parte de Almada. Não era uma coisa necessariamente regular, mas sabemos que estas viagens marcaram-no muito. E a ideia dele de que este conjunto de pinturas, entre as quais os painéis de S. Vicente, poderia ter sido projetado para ali [a parede norte] é uma coisa que o ocupa nos últimos 15 anos da sua vida. Entre 55 e 70 ele insiste muito nessa ideia”, explica o investigador Simão Palmeirim, curador da exposição e coautor do estudo, que aborda a tese de Almada.
Quando esta visita, na companhia de Leopoldo de Almeida e Cortez, acontece, já Almada andava à procura de um local que pudesse albergar a sua tese de que os painéis eram parte de um retábulo. “Quando se depara com aquela parede específica, na Capela do Fundador, Almada tem um momento: é aqui, tem que ser aqui, faz todo o sentido que seja aqui”, conta Simão.
“Ao ver aquela parede que, especificamente, é uma parede nua, não tem qualquer intervenção, não tem nichos, não tem arquitetura elaborada, não tem absolutamente nada, ele tem a epifania de dizer "é aqui". Ele chama muitas vezes aquilo o lugar de destino original do retábulo, mas também diz, o próprio Almada, que tem perfeita consciência de que as pinturas nunca foram colocadas naquele lugar. Esta nossa instalação, esta reconstituição da imaginação do Almada é quase uma provocação, porque o próprio sabia que aquilo nunca ali tinha estado. Era o cumprir de um sonho de um grande projeto retabular”, comenta o curador da exposição.
Depois de ver naquela parede a tela perfeita para o que tinha imaginado ser aquela composição retabular, Almada encontra, no decorrer da sua investigação, mais elementos que lhe vão alimentar a ideia de que a sua tese segue no caminho certo. O principal acontece em 1962, quando descobre uma pequena iluminura num livro da sua biblioteca pessoal, uma pequena representação de D. Filipa de Lencastre em que parece que a rainha está de joelhos a rezar. A imagem leva-o a mais um momento de epifania. Almada, que tinha dois espaços em branco na sua composição retabular, que sabia existirem porque a geometria assim lhe dizia, vê claramente que estes devem ser preenchidos pelas figuras de D. Filipa e do seu marido, o rei D. João I. E assim o faz, através de uma reprodução dessa mesma iluminura e de um retrato de D. João, inspirado num retrato do antigo monarca que consta no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).
Porque é que estas peças do puzzle davam a Almada a sensação de que seguia no caminho certo? Porque, tendo em conta que o retábulo que imaginou estava destinado à Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha, a poucos metros daquela parede estava precisamente o túmulo de D. Filipa e D. João.
Curiosamente, na Capela que viria em 2016 a tornar-se Panteão Nacional, os dois monarcas que inauguraram a segunda dinastia da monarquia portuguesa não eram os únicos a estar representados no retábulo: D. Fernando, o Infante Santo, refém dos mouros no desastre da expedição portuguesa a Tânger (1437) e morto em Fez (1443) após prolongado cativeiro, está sepultado também ali, é uma das figuras mais analisadas nos painéis — ao ponto de existir uma tese, amplamente defendida pelo historiador José Saraiva, pai de José Hermano Saraiva, que defende que a figura glorificada naquela sequência de seis pinturas não é S. Vicente, mas sim o Infante Santo.
Paralelamente ao estudo geométrico, são publicadas em 1960 uma série de entrevistas a Almada Negreiros, pelo amigo e jornalista do Diário de Notícias António Valdemar, sobre esta tese. É nessas conversas que defende as 15 pinturas que hoje estão reproduzidas na exposição, às quais se junta um texto publicado também no DN, em 1962, com o título "Depois do Ponto Final", onde apresenta a sua conclusão sobre a integração das imagens de D. Filipa e D. João no retábulo que imaginava.
“Objetivamente, em bom rigor, aqueles painéis deveriam estar ali mesmo”
A proposta de Almada Negreiros para os painéis, em termos de tese, e de acordo com a historiografia nacional, está completamente “rebatida”, diz-nos Simão Palmeirim.
“A nossa exposição não pretende consubstanciar a teoria do Almada de que as pinturas teriam sido projetadas para ali. A nossa ideia é celebrar a obra dele, toda a produção plástica que foi consequência dessa ideia. Por isso é que nós chamamos aquilo um retábulo imaginado. Tentamos cumprir um sonho criativo que é consequência de muita investigação sobre geometria e também sobre história da arte. É muito interessante ali na exposição ver a dimensão de algumas das maquetes... Ele produz muita obra plástica, além de escrever muito texto”.
Para Joaquim Ruivo, diretor do Mosteiro da Batalha, o facto de a teoria de Almada “não ser muito considerada pela maioria dos investigadores”, não o impede de a acarinhar. “Como diretor do Mosteiro da Batalha, estou tentado a dizer que acolho essa tese de braços abertos para os painéis poderem virem para aqui”, diz entre risos.
“Acho que podemos pensar que não há outro lugar melhor para acolher os painéis do que a Capela do Fundador porque realmente são pinturas que representam todo um conjunto de personalidades que marcaram de uma forma extraordinária a nossa história. A segunda dinastia, a geração toda que iniciou os descobrimentos modernos, está toda ali na Capela do Fundador. Objetivamente, em bom rigor, aqueles painéis deveriam estar ali mesmo”, defende.
Até chegarem, ou não, os painéis, Joaquim Ruivo abraça a “nova dimensão” que a tese de Almada traz sob a forma como se olha a Capela do Fundador. “É uma herança do Almada, ver o mosteiro de outra maneira. Não conhecemos ninguém que tenha olhado para aquela parede com aquele interesse. Ali não existia nada. Foi Almada”.
Aqui, realça o cruzamento na exposição entre o trabalho de “um modernista” e “um espaço que é obra-prima do gótico europeu”. “É aliciante sob todos os pontos de vista”, afirma Joaquim Ruivo, lembrando que a combinação “remete para a intemporalidade da arte e do pensamento artístico”.
Para o responsável, a exposição confirma que “esta geração de modernistas, da qual [se poderá] dizer que Almada foi o porta-voz, sendo uma geração de rutura com os valores estéticos, artísticos e sociais mais conservadores, não rompe com o passado. Integra-o e valoriza-o”. Além disso, no retábulo imaginado para a Capela do Fundador será possível “apreciar os Painéis de S. Vicente - o ‘Santo Graal’ da pintura portuguesa - e mais nove pinturas primitivas em tamanho natural”, destaca o diretor, “além de obras inéditas” que ajudam a “compreender melhor a obra e pensamento de Almada Negreiros”.
É neste diálogo entre o moderno e o antigo que Joaquim Ruivo vê o papel de um monumento como o Mosteiro da Batalha, para que este possa ser pensado e um instrumento de reflexão e visão, para além da natural contemplação do edifício.
“O que o arquiteto Mateus Fernandes, por exemplo, fez no Claustro Real, há mais de 500 anos, ao raspar as decorações góticas primitivas para colocar novas decorações, manuelinas, foi um exercício de destruição do antigo para sfazer alguma coisa nova. Aos olhos de muita gente, imagino, que o que ele fez foi um crime, mas a verdade é que criou algo novo, uma marca do seu tempo. Temos de promover este diálogo entre o contemporâneo e o antigo. Não podemos ficar congelados num certo tempo, temos é de o fazer com senso”, sublinha Joaquim Ruivo, elogiado pelo curador da exposição pela "coragem" em dar vida a uma tese tão polémica sobre um tema tão delicado como todos os que rodeiam a história dos painéis de S. Vicente.
Uma exposição para fazer esquecer 2020
A exposição é uma das estratégias do atual diretor para dar a volta a um ano terrível, nomeadamente no que diz respeito ao número de visitantes. Devido à pandemia, 2020, que se esperava ser um ano em que o monumento voltaria a chegar ao meio milhão de visitantes, segundo estimativas realizadas no início do ano, com base na afluência dos meses de janeiro e fevereiro, teve uma quebra de 80% nas visitas.
“Para o Mosteiro da Batalha, 2017 foi o ano de maior relevo em termos de visitas porque tivemos as comemorações dos 100 anos das aparições de Fátima aqui ao lado. Tivemos 510 mil visitantes. Depois assistimos a um decréscimo e em e 2018 e 2019 ficámos ali nos 440 mil. O ano passado, as projeções de janeiro e fevereiro davam um aumento de 10 a 15% em relação ao ano anterior, o que significa que iríamos parar aos 500 mil visitantes controlados na bilheteira, para além dos 100 a 200 mil que visitam só a igreja, de acesso livre. Seria um ano excecional”, explica o diretor.
Segundo Joaquim Ruivo, a principal razão para a queda do número de visitas naquele que é o terceiro monumento mais visitado em Portugal, depois do Mosteiro do Jerónimos e da Torre de Belém, ambos em Lisboa, foi o facto de a grande maioria de visitantes serem estrangeiros, arredados devido às medidas restritivas com implicação direta na gestão de fronteiras.
Face a este decréscimo, e para evitar um 2021 igual a 2020, o mosteiro vai apostar na divulgação desta exposição, sobretudo junto das escolas, do ensino secundário e universitário, com natural atenção para os cursos mais ligados às artes e geometria.
Há muita matéria para ser discutida, mesmo ao lado dos polémicos painéis. “O que é que leva um modernista a elaborar tal tese? Porque é que ele inclui outros desenhos? O que o leva a tudo isto?”, questionam os autores do estudo que é lançado esta semana.
Afinal de contas, da mesma maneira que o jovem Almada se "apaixonou" por um "conjunto de pinturas portuguesas do Museu Nacional de Arte Antiga", de tal maneira que fez um pacto com Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita para as estudarem até ao fim da vida, tendo feito sobre elas "estudos geométricos complexíssimos", como nos conta Simão Palmeirim, outros poderão apaixonar-se por esta faceta de uma figura ímpar do modernismo português do século XX, que entre o desenho e a pintura, mas também o ensaio, romance, poesia, dramaturgia, e até o bailado, tinha a geometria como trabalho mais desconhecido.
A exposição “Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha - quinze pinturas primitivas num retábulo imaginado” na Capela do Fundador, que estará em exibição até dezembro, faz ainda ponte com "Almada Negreiros e os Painéis - um retábulo imaginado para o Mosteiro da Batalha", patente até 25 de janeiro na Sala do Teto Pintado do MNAA, em Lisboa. Duas exposições para desconfinar com Almada.
Comentários