27 de julho de 1996.
Oito dias após o pugilista Muhammad Ali levar a tocha dos Jogos Olímpicos no Estádio de Atlanta e assinalar a abertura oficial da edição 100 da era moderna das olimpíadas, o segurança Richard Jewell (Paul Walter Hauser), numa das rondas pelo Parque Centennial — a praça principal do evento na cidade —, depara-se com uma mochila suspeita, debaixo de um banco. Fazendo ouvidos moucos aos sucessivos apelos de que podia ser apenas mais um "falso alarme" e de que não se podia interromper o concerto dos Jack Mack and the Heart Attack, Jewell apressou-se a alertar as autoridades para chamarem a Brigada de Minas e Armadilhas. Não arriscou e cumpriu à risca as regras. E é por isso que quando foi confirmada a existência de material explosivo na mochila, foi possível evacuar a área, minimizar os ferimentos das vítimas e salvar imensas vidas.
Jewell tornou-se numa autêntica celebridade num ápice e o seu rosto invadiu noticiários. Apareceram propostas para escrever livros. O telefone não parava de tocar e uma secretária para atender as chamadas era um cenário bem plausível com todo o alarido em torno do seu ato altruísta. Porém, apenas três dias depois, o homem que era visto como autêntico paladino, passou de herói nacional a principal suspeito do FBI no atentado que fez mais de 100 feridos e causou duas mortes. E durante os três meses seguintes esteve sob um intenso escrutínio público, estimulado por uma cobertura incessante da imprensa e uma intensa vigilância inerente à investigação — bastante intrusiva — conduzida pelo FBI.
O filme é baseado no livro ("The Suspect") de Kent Alexander e Kevin Salwen e num artigo de fundo da Vanity Fair, mas o argumento de Billy Ray (Capitão Phillips, 2013) não é sobre o bombista (o verdadeiro) por detrás do atentado. Jewell ainda é referenciado como o bombista de Atlanta, mas aqui a história é sobre quem é o homem que apareceu copiosamente nos jornais e foi dado como culpado sem que realmente o fosse. Eric Rudolph, um ex-militar, confessou ser o verdadeiro autor do ataque, tendo sido apanhado em 2003 — enquanto estava à procura de comida no lixo. Esteve cinco anos foragido nos bosques da Carolina do Norte e tinha planeado mais ataques. Em 2005, foi condenado a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional.
Ora, no final deste filme, há uma coisa que o espetador pode ter a certeza: de que não vai sair da sala escura sem ficar a pensar no terrorista motivado pela extrema-direita e sem esfregar a cabeça enquanto pensa na situação política norte-americana. Porque se é o país que permite — e nalguns estados até incentiva — os seus cidadãos a terem acesso ao porte de armas, é também o que indicia alguém como suspeito apenas porque este tem em sua posse (legalmente) um número considerável delas, é solitário e tem o "perfil" de.
(Aqui destaque para o casting, que é igualmente desconcertante; basta olhar para o foto real do homem que lhe dá nome ao filme e perceber que as semelhanças são quase tiradas a papel químico.)
Jewell é obeso, vive com a mãe (a veterana Kathy Bates desempenha o papel de forma exímia e conduz a cena mais emotiva de todo o filme) e rege-se por crenças que não abandona: a de que está cá neste mundo para servir, proteger os outros e de que as leis são para cumprir. Às vezes excede-se e deixa-se levar pelos trabalhos que vai arranjando — o filme mostra que levava demasiado a sério a sua função de agente de segurança de um campus universitário. Mas é apenas uma característica estranha e que não ajuda quando se é suspeito de um atentado terrorista. Dificilmente se pode culpar alguém só porque preenche os requisitos de outros estereótipos sem a devida verificação. Eastwood demonstra-o ao longo de quase duas horas. Esta é, aliás, a visão do cineasta de 89 anos — e não o esconde. É o que acredita e é isso que mostra.
O filme é cronológico, linear e não tem saltos temporais. (Ser um cineasta de eleição durante umas poucas de décadas permite certos luxos.) Logo nas primeiras cenas conhecemos Jewell 10 anos antes do atentado, numa altura em que o seu trabalho consistia em empurrar um carrinho cheio de material de escritório numa sala com vários cubículos duma firma de advogados em Atlanta. E é durante uma das suas distribuições de rotina que conhecemos aquele que virá a ser o seu representante legal e principal defensor na encruzilhada com o FBI e os media: o advogado Watson Bryant (Sam Rockwell). E é também nesta cena que aprendemos que Jewell é alguém trabalhador, dedicado, atento ao detalhe e que vasculha o lixo da única pessoa que não o trata mal ou desrespeita na firma — o que o leva a desencadear autênticos atos de generosidade não solicitados.
Watson Bryant não é só uma personagem real munida de um poster com a mensagem "Receio mais o Governo do que receio terroristas" no seu escritório. Representa também o lado humano que acreditou na inocência de Jewells desde o início das acusações — apesar de todos os comportamentos estranhos deste, que o deixam irado da cabeça. Não só porque as provas assim o diziam, mas também porque lhe perguntou "nos olhos" se ele estava de alguma forma envolvido no caso. Talvez o seguinte diálogo ajude a perceber a relação de ambos:
Bryant para Richard: "Agora és um herói nacional".
Resposta de Richard para Bryant: "Obrigado, sir. Mas eu estava só a fazer o meu trabalho".
Porém, verdade seja dita, Bryant não acreditou sozinho. Durante a jornada, a sua secretária, com sotaque do leste europeu, deu o seu contributo: "Do sítio de onde venho, quando o Governo diz que alguém é culpado de algo, é aí que sabemos que estão inocentes. Aqui é diferente?". Sam Rockwell já tem uma estatueta na bagagem e é aquele ator que por norma fica com o papel secundário dum filme com cheirinho a Óscares; o que não quer dizer que não esteja sempre preparado para fazer brilharete e roubar as atenções, como acontece neste filme. Ainda assim, este é daqueles papéis que vive mais do carisma do ator do que das linhas do guião que lhe dá vida.
Contudo, para Jewell precisar de defesa, é porque é acusado de algo. E é nesta parte — ou melhor, com esta personagem — que o guião de Billy Ray tem ganhado alguma tração e críticas.
A personagem de Olivia Wilde é baseada em Kathy Scruggs, uma repórter que trabalhou para (que existiu de facto) o jornal Atlanta Journal-Constituition e que assinou a peça que dava Jewells como o principal suspeito do FBI no atentado. No fundo, a peça que deu início a todo o problema. É que Wilde dá vida a uma personagem da década de 90, mas difícil de construir nos nossos tempos, especialmente se tivermos em conta o movimento #MeToo. Numa cena aparece a praguejar com outras jornalistas da sua redação, noutra está a rezar para que o "autor do atentado seja alguém interessante", passando até por uma em que, embora não seja explícito, dá a entender que dormiu com o detetive do FBI a troco de informação privilegiada. Ou seja, alguém que é dona do seu nariz e que pouco se importa com aquilo que os outros pensam dela, mas que confiou demasiado nas suas fontes e que não fez o trabalho de casa antes de se atirar de cabeça numa história que tinha grandes dimensões.
(De resto, o Atlanta Journal-Constituition, já veio contestar a maneira como o filme abordou o tema e representou a jornalista — falecida em 2001 — numa carta aberta ao realizador. Porém, a Warner Bros., isto é, o estúdio que produziu o filme, afirmou que as alegações do jornal são infundadas e que as personagens estão representadas de acordo com várias fontes fidedignas. A própria atriz, Olivia Wilde — curiosamente filha de dois conhecidos jornalistas norte-americanos —, defendeu a sua personagem, alegando que esta está a ser descaracterizada por um momento do filme. No Twitter, indicou mesmo que Kathy Scruggs "era uma mulher moderna e independente cuja vida pessoal não pode por em causa os seus feitos".)
No entanto, críticas à parte, Kathy Scruggs é representada como sendo uma profissional ambiciosa e que parece ter uma relação prévia com Tom Shaw (representado pelo ator principal da série Mad Man, Jon Hamm), o detetive do FBI que esteve à frente da investigação sobre o autor do atentado. Shaw — que não é baseado numa personagem real — é tão insípido quanto à inocência de Jewell de início ao fim que, apesar de todas as provas que o colocam fora da rota do verdadeiro autor, parece ter criado um jogo pessoal para o prender só "porque sim".
Aqui Eastwood alerta para falta de sensatez com que se julgou um herói dum dia para a noite. Não haviam provas irrefutáveis ou indícios inegáveis. Apenas um suspeito vulnerável contra a máquina do estado e da opinião pública. Richard Jewell desconstrói um FBI que não faz o que devia — pois aqui atacou um daqueles que supostamente devia proteger —, como também manda alfinetadas aos meios de comunicação por exporem a vida privada dum indivíduo sem a devida confirmação ou apuramento de todos os factos, a troco de ser o primeiro a avançar com a "notícia de última hora" ou com o "furo". A mensagem de Eastwood é de que é simplesmente mais fácil tentar condenar um homem obeso, portador de várias armas e que se "encaixava" no perfil do que apurar se era ou não possível ter sido ele a fazer a famosa chamada anónima ("Há uma bomba no Parque Centennial. Têm trinta minutos").
Eastwood não investe muito nas personagens secundárias. Elas existem, estão lá, mas o foco é apresentar à audiência a personagem principal. O que não quer dizer que tente esconder algumas das facetas mais tristes e humanas de Jewell — apesar do filme ser um claro tributo.
Jewell parece ser uma personalidade um bocado deslocada da realidade e isso é mostrado no filme. Só que tal como aconteceu nos últimos trabalhos em que pegou em acontecimentos reais — 15:17 para Paris ou em Sully — Eastwood deixa claro que foi esse seu contexto, isto é, uma vontade cega de Jewell fazer parte da polícia — daí executar o trabalho de segurança de eventos ou num campus de uma faculdade com o mesmo afinco —, o que o leva a ser metódico, o que consequentemente o levou à descoberta da mala. Sem esse foco, sem esse afinco de querer fazer tudo como "manda a lei", não estaria munido das condições que lhe permitiram salvar vidas.
Muito ajudou a contar a história o trabalho do Diretor de Fotografia Yves Belanger e a fantástica montagem de Joel Cox (seu colaborador frequente e vencedor de um Óscar por Imperdoável), que nos catapultam de forma estupenda para os anos 90. Mas há que salientar igualmente o trabalho de Paul Walter Hauser, até aqui um ator desconhecido e confinado a papéis de gente falhada. Assim foi em Eu, Tonya e em BlacKkKlansman: O Infiltrado. Mas em Kingdom, série que explora o mundo das artes marciais mistas — MMA, Hauser já tinha mostrado que era capaz de dar vida a personagens emocionalmente complexas. Em Richard Jewell apenas confirma que está preparado para outros voos. Tanto assim que se deve estranhar se tiver uma nomeação para a categoria de Melhor Ator na próxima edição dos Óscares. (Há quem alegue inclusivamente esta performance está digna de Hauser entrar no campeonato de Paul Giamatti, por exemplo.)
Em suma, Richard Jewell conta uma história passada há 20 anos, mas que continua a ser atual como nunca. À data, estávamos no início da guerra das televisões pelas "notícias de última hora", num constante ciclo de 24 horas. E se é verdade que não se deve gritar "fake news" só porque a nossa opinião difere de alguma coisa também não é recomendável uma confiança cega e acrítica. Richard Jewell é isso mesmo, uma lição para que um erro destes não se volte a repetir.
(Poderá ler a carta aberta de um jornalista da CNN sobre o caso — "Eu ajudei Richard Jewell a ficar famoso — e arruinei a sua vida durante o processo").
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