Lá fora, chove. A trovoada faísca por entre as árvores exaltadas com o vento. O Boco desce emproado, com as ondas batidas, a caminho do mar. Lá fora, o país está em alerta laranja por causa da tempestade Felix. Lá dentro, porém, do lado de cá dos vidros duplos, as imagens são só uma espécie de decoração virtual. Os trovões não rugem, a chuva não estala. Lá dentro, ouve-se apenas um leve burburinho, risos e o tilintar de copos, pratos, talheres — antes mesmo de haver comida no serviço.
É um encontro do “clube do vira-prato”, qualquer coisa como uma associação de pessoas unidas pelo gosto de colecionar porcelanas da marca Vista Alegre. Em Ílhavo, onde a empresa nasceu, cresceu e hoje renasce, os sócios do Clube de Colecionadores Vista Alegre juntam-se no hotel da marca, inaugurado há dois anos por Marcelo Rebelo de Sousa, para a apresentação de mais uma peça.
Risos e dichotes pairam sobre os pratos. Os copos tilintam. Os talheres brilham sob os focos, enquanto se desfiam os medalhões de vitela ou o ‘zuccotto’ de que se fez o jantar. O objetivo era apresentar mais uma peça do projeto artistas contemporâneos. Almada Negreiros é o autor do desenho que adorna um enorme cilindro. O seu preço é de 480 euros, numa edição limitada e numerada de 500 exemplares.
Para lá dos jantares, as coleções perduram — feitas sob o quente dos fornos; feitas com a perícia de artesãos de bata branca. No terreiro, entre capela, teatro e fábrica, a lama lembra a pasta de que se fazem as peças. O busto do fundador observa. E os sócios do Clube de Colecionadores observam-no a ele. Os fungos que mancham a pedra branca da estátua contrastam com o cuidado que põem nas peças da coleção.
Alguns têm-nas aos milhares. E milhares de euros custam também estas peças, cujo uso é sobretudo decorativo. Com 33 anos de história, o clube conta atualmente com 2.500 sócios.
“Vale mais ser sócio da Vista Alegre do que do Benfica”
Para fazer parte deste “clube do vira-prato”, como lhe chama Filipa Quatorze, curadora do museu em Ílhavo, Aveiro, os sócios pagam uma anuidade de 35 euros, que lhes dá acesso a uma coleção especial e à reserva de peças de edições numeradas. Nuno Barra, administrador da marca, refere-se aos membros do clube como “os amigos da marca”, pessoas que estiveram ao lado da Vista Alegre nos bons momentos, mas também nas etapas mais difíceis por que a empresa passou.
António Santos é um desses amigos. É o sócio número 813 do clube. Veio de Lisboa para conhecer a mais recente peça do Projeto Artistas Contemporâneos, iniciado em 2008. Esta coleção lança anualmente duas edições especiais numeradas e limitadas, desenvolvidas por artistas nacionais e internacionais. Neste caso, o escolhido foi Almada Negreiros, no ano em que se celebram 125 anos do nascimento de um dos mais versáteis artistas portugueses.
Com mais esta peça, um cilindro onde foi pintado o projeto de uma tapeçaria, a coleção Vista Alegre de António vai crescer bem para lá do milhar. “Isto é uma paixão e acaba por ser uma doença mental”, atira o colecionador. As porcelanas são apenas mais um dos objetos que acumula.
Tudo começou pelas moedas, depois medalhas. Deu a volta ao mundo três vezes, da Ásia à América Latina e, pelo caminho, encheu duas casas — uma na Caparica e outra em Santo António dos Cavaleiros — com as mais de 10 mil peças que compõem as coleções. Teve mesmo de arrendar um armazém só para guardar livros.
“Há coisas tão bonitas que um gajo não resiste: fica teso e compra”, desabafa o colecionador de 68 anos. A coleção da Vista Alegre começou “por influência de um chefe de loja do Chiado”, entretanto já falecido. “A ideia cresceu numa fase muito má” da empresa, explica António. Colecionar produtos da centenária marca foi uma forma de a ajudar.
O colecionismo é uma ciência pouco exata. Mas há uma coisa comum: as peças não se usam. Valem pela beleza. Em casa de António Santos, por exemplo, só se usa, “de vez em quando”, um serviço de jantar.
Maria Helena Louro também não as usa. Sócia número 291, diz que as peças são “raras, bonitas”. Mas não só por isso vale a pena encher a casa com elas. É que são coisas “que nos dizem como portugueses”, explica. Tanto assim é que se tornam parte das tradições familiares.
Quando se casou, há 53 anos, a família ofereceu-lhe um serviço da marca de Ílhavo. Depois, quando os filhos casaram, tiveram todos também direito a um no enxoval.
A média de idades no clube anda pelos 55 anos. E fazer parte da agremiação dá acesso a peças exclusivas, que não podem ser compradas por alguém de fora, e também traz descontos. “O Clube nasce em 1985, com o objetivo principal de estimular o colecionismo de peças Vista Alegre”, explica a marca.
Caetano Costa, sócio número 779, está sentado junto à janela. Depois do jantar, levados os pratos, o negro da noite faz das janelas espelho. Caetano decidiu juntar-se por “apreciar as porcelanas e as iniciativas da Vista Alegre”.
“Vale mais ser sócio da Vista Alegre do que do Benfica”, atira. “É arte”, explica. Ao lado, a mulher concorda. Embora reconheça que talvez já tenha arte a mais. “Tenho a casa cheia de cacos”, desabafa.
Tantos que não sabe o futuro que é o deles. “Tenho pena de que não sejas meu sobrinho”, diz, enquanto pensa no destino em que cabem mais de trinta anos de peças da Vista Alegre.
Vindo do Porto, Manuel Pereira, sócio número 2020, não começou pela porcelana. Chegou ao Clube pelo cristal, pelo grupo de colecionadores da Atlantis, igualmente histórica marca portuguesa, a que a Vista Alegre se juntou, no início deste século, levando à fusão dos respetivos clubes. A Atlantis já não existe (as peças — cristal e porcelana — estão hoje todas debaixo da marca Vista Alegre), mas os fãs permanecem.
Fãs do “design moderno e contemporâneo”, que se revêm “nos princípios que norteiam a coleção da Atlantis”, hoje Vista Alegre, explica.
“O design ultrapassa a funcionalidade”
“Isto não dá para pegar”, atira uma senhora, de casaco pesado, enquanto tenta equilibrar nos dedos a fina asa de prata de uma chávena de café. A asa é um fio apenas, pespegado a um bojo de porcelana branca. As formas e a conjugação da cerâmica com o metal e a madeira indiciam um conceito para lá da produção de louças. E evidenciam bem. A arquitetura deste serviço de chá e café, cujo preço ultrapassa os 11 mil euros, foi desenhada por Siza Vieira, Pritzker de Matosinhos.
Ser sócio da Vista Alegre não é querer ter utensílios. Não é querer estar a par das últimas tendências dos serviços de chá e café; das novidades na gama de pratos e mostardeiras; das propriedades de cálices e cristais polidos. É, antes de mais, ter acesso a arte — e à arte perdoa-se a disfunção (se julgarmos não ter uso a apreciação da estética apenas).
O museu da Vista Alegre, cujo plano foi feito pelo Museu Nacional de Arte Antiga, põe à mostra isso mesmo — a arte da porcelana e do cristal. Das origens à atualidade, a história da marca mostra-se nas galerias. A história da marca e a história do design, das tendências, dos gostos de cada época, desde 1824. E também dos usos. Há peças que, finda a necessidade, deixaram de ter lugar à mesa, caso das lamparinas, por exemplo.
“Isto é uma escola e uma fábrica, há uma mística especial”, diz Carlos Beleza, também do Clube. E toda essa mescla, essa construção que põe arte no banal vale a pena, acrescenta. Mística que se mantém durante a criação das peças. “A Vista Alegre tem de ser sempre uma marca do seu tempo”, explica o administrador Nuno Barra em entrevista ao SAPO24. “Isto é uma máxima que nos vai orientando no próprio desenvolvimento do produto”, acrescenta.
Tendo em conta o passado, os planos são feitos com os olhos no futuro: “neste momento estamos a trabalhar nas novas coleções que vamos lançar para o ano e daqui a dois anos”, diz. Este desfasamento temporal obriga os criativos da empresa “a desenvolver um produto de acordo com as tendências atuais e cada vez mais em colaboração com quem define as tendências”, conclui o administrador.
Por trás do hotel e por trás da porcelana
Sopram os pneumáticos. Na mesma cadência, louças de todo o género encarreiram a caminho de uma afiada lâmina que lhes marca o bordo e a utilidade. Essa pasta, espécie de barro, há de ser uma chávena. Ou um prato. Ou um castiçal. Ou qualquer outra das milhares de peças que a fábrica da Vista Alegre, em Ílhavo, produz.
Rugosas, as mãos deslizam pela porcelana acabada de vitrificar, num baile delicado, numa carícia suave ao lado dos fornos que bufam por todo o piso. Os vagões atravessam a fábrica, pesados de louças de todas as cores, feitios e utilidades. Dentro, levam empilhada a massa fresca, pronta a cozer.
Consoante a peça, variam os processos. Se algumas podem ser feitas quase de modo autónomo pela maquinaria, outras precisam da presença atenta dos trabalhadores. Seja para as esculpir, para as acamar. Seja para as preparar de maneira cuidadosa e eficiente para o forno, seja para as pintar, delicadas, na manufatura. São à volta de 600 trabalhadores; 1.200 mãos a trabalhar a porcelana em Ílhavo.
É sexta-feira à tarde, chove. Longe do hotel e do palácio, robalos e tortilhas fazem o almoço dos operários. No refeitório, perto da creche, os pratos vêm cheios, aviados com legumes e forças para acabar a semana.
A Vista Alegre, que à volta da fábrica construiu uma aldeia — hoje grandemente desabitada, mas com planos para reconverter o casario em alojamentos turísticos — cedo trouxe ideias liberais para a indústria portuguesa. Inspirado pelo que se fazia lá fora, José Ferreira Pinto Basto criou em Aveiro um dos maiores bairros industriais da Europa. Da capela ao teatro, os trabalhadores viviam dentro do perímetro da fábrica.
No passado, a empresa foi pioneira numa procura pelo bem-estar dos trabalhadores. Da educação à cultura, a Vista Alegre providenciava ocupações para as mentes dos operários quando o corpo não estava dentro das naves fabris. Hoje, “têm os apoios normais da indústria”, adianta Nuno Barra, sem, apesar da insistência, especificar quais. “Foram processos que foram evoluindo ao longo dos anos, que se foram ajustando aos tempos”.
Hoje, partilham o espaço industrial com o museológico. E são parte do património fundamental da empresa. “Esta equipa que está aqui é como uma equipa de futebol. Cada um desempenha uma função e se há uma área que trabalha menos bem, o resultado final não será o mesmo”, conta Nuno Barra, administrador da Vista Alegre.
“Em grande parte das áreas há um ‘know-how’ adquirido ao longo de gerações; a porcelana é um produto muito frágil, tem um comportamento muito difícil e estas várias áreas, quando interagem com as peças, têm de saber o que estão a fazer, todos em conjunto: se põem mais dez graus, a peça pode acabar ali, se transportam a peça de uma forma errada, a peça pode acabar ali, se a calçarem de forma errada… É um trabalho conjunto”, diz Barra.
Na zona de pintura à mão, a concentração cirúrgica dos artesãos permanece mesmo quando, a espaços, os visitantes entram pela manufatura. Dispostos numa sala muito iluminada, os trabalhadores pintam com pincéis que são um fio de cabelo apenas. Ao lado, separados por um cordão, os turistas apontam e espantam-se.
O cheiro a diluentes e químicos afins enche o resto da sala. Como peças vivas de um museu, os pintores olham para os modelos e repetem os desenhos. Ali estão, rodeados de estatuetas, baixelas e caixinhas. Não se podem fazer fotografias. Há peças que são apenas testes; outras pedidos especiais e amostras.
Não há fífia que os distraia. O clique do espelho da câmara (aos jornalistas é permitido fazer imagens) ecoa; mas nem o estrondo do obturador os atira para fora da hipnose. Do lado de lá do cordão, os visitantes vão olhando.
No piso de baixo, numa das naves, debaixo de luzes fortes, há mais olhos precisos. Pegam em pratos e travessas, balançam-nos à claridade e apalpam cada aresta. Por vezes, traçam uma linha. E assim seguem. Um atrás do outro. São uma meia dúzia de mulheres, em fila, a bailar a louça no ar.
“Veja se encontra aí alguma coisa”, diz uma dessas operárias, enquanto entrega uma travessa branca aos jornalistas. Eles olham. Procuram. O trabalho de um jornalista é, muitas vezes, o de encontrar. Mas ali, nenhum dos três via alguma coisa. Eventuais indícios de mácula, mas dificilmente certeza de erro.
“Está ali”, aponta a mulher, enquanto rodeia um minúsculo traço na superfície da porcelana. “Está a ver, eu disse que tinha visto”, atira um dos repórteres. Uma pequena falha dita que aquela peça não será de primeira escolha. Das falhas dependem os preços. Se for um problema menor, a peça seguirá para as chamadas segundas escolhas, onde é vendida por preços mais baixos. Se a mácula for demasiado grande, a peça, por mais bela que seja, chumba o teste de qualidade e acaba destruída num contentor. Dali segue para a reciclagem.
As outras seguem para a pintura, de lá para loja. Da loja para as coleções. Tem sido mais ou menos assim desde 1824. Da Casa Branca ao Palácio de Belém; de banquetes triunfais a jantares desolados, debaixo desses pratos, é possível ver uma marca, que mais do que entidade comercial é também lugar. Lugar e as memórias que lhe constroem a tradição. Porque a pasta de que é feita a louça não há de ser muito diferente da que faz a história.
*O jornalista viajou a convite da Vista Alegre
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