«Não acredito que acabei de ver os episódios todos de seguida!», «Tenho vergonha de admitir, mas vi e gostei...», «Eu nem costumo ver estes programas, mas juro que este é mesmo bom!». Estas são algumas das frases que tenho visto serem partilhadas nas últimas semanas, particularmente nas redes sociais. A maior parte delas está associada a um tema que não é unânime, mas que tem ganho a sua onda de fãs: os reality shows, mais especificamente os da Netflix.

Este tipo de programas não é novo, e muito menos foi inventado pela plataforma de streaming. Produzido lá fora ou em Portugal, já todos conhecemos o formato e já nos cruzamos com reality shows, consumindo mais ou menos episódios consoante os gostos de cada um. Mas a verdade é que, não querendo alimentar estereótipos, os programas que envolvem colocar à prova oito (ou mais) pessoas no mesmo espaço, com direito a transmissão para todo o mundo, são muitas vezes classificados como trash tv (ou lixo televisivo, numa tradução livre para português).

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Ainda que, anteriormente, a Netflix já tivesse lançado conteúdo baseado na vida real, 2020 parece estar a ser o ano em que a aposta em reality shows está a ser recompensada pelo público. Mas, afinal, que programas são estes, que têm feito pessoas de todas as idades e com todo o tipo de gostos ficar coladas ao ecrã e só parar quando rolam os créditos finais do último episódio?

O truque para a realidade pode estar na ficção

Foi o primeiro reality show da Netflix a sair em 2020 e não é um mundo estranho para quem está habituado às andanças do online. The Circle é um programa que junta vários concorrentes de diferentes contextos no mesmo prédio, com o twist de apenas permitir a interação entre eles através de uma aplicação ativada por voz. Cada pessoa vive num pequeno apartamento e dedica-se à construção da sua personagem e do respetivo perfil, uma tarefa que não se revela propriamente fácil.

Há quem opte por ser transparente e fazer de si próprio, ou até quem mude pequenos detalhes, como a idade ou a profissão. Nos casos mais extremos, há quem construa um perfil catfish (que é como quem diz, um perfil falso, criado com o intuito de enganar alguém). Entre os casos de quem se fez passar pelos respetivos cônjuges ou por amigos, ou até por desconhecidos, está, por exemplo, o caso de duas concorrentes com mais de 70 anos, que participaram em conjunto no The Circle France, fazendo-se passar por um rapaz de 25 anos, assumindo a sua personalidade.

Depois de estabelecida a persona, os concorrentes interagem entre si através de conversas casuais ou de desafios lançados pela aplicação e, semanalmente, fazem um ranking entre si. Aqueles que conseguires ficar melhor classificados, são considerados os influenciadores, decidindo depois quem vai ser expulso do programa.

Esta parece ser uma experiência que muitos já viveram antes de o programa existir, uma vez que a premissa de The Circle se aproxima do mundo que conhecemos nas redes sociais. Os mais dedicados a estabelecer uma presença online montam o seu perfil, escolhem milimetricamente as melhores fotografias e muitos filtram aquilo que publicam de forma a causar a melhor impressão possível. No fim das contas, nem tudo é realmente como parece e este parece ser um dos fatores que ajuda a explicar o sucesso do reality show .

O amor parece ser uma receita infalível

O cliché de ir encontrar o amor a um programa de televisão aliou-se à expressão “o amor é cego”, também ela cliché, e o segundo sucesso do ano chegou à plataforma em fevereiro. O conceito de Love is Blind não parece propriamente novo, e podemos encontrar algumas semelhanças a programas como Married at First Sight e Dating in the Dark. Ainda assim, esta aposta da Netflix destaca-se por parecer ter sido pensada na perfeição.

Os candidatos participam na experiência social com o objetivo de encontrar a sua alma gémea. Ao longo de várias semanas, têm a oportunidade de conhecer várias pessoas do sexo oposto e de estabelecer ligações. Numa tentativa de tornar a experiência mais profunda, as interações acontecem através de cápsulas individuais, colocando de lado o aspeto físico dos concorrentes, o que significa que ninguém sabe como é que a pessoa que está do outro lado se parece fisicamente .

Ao fim de algum tempo, os pares começam a formar-se e têm a oportunidade de se conhecer pessoalmente, mas só após o pedido de casamento. Depois dos encontros emotivos, os casais iniciam a sua vida em conjunto e começam a contagem decrescente para a união oficial, mas, como era de esperar, nem tudo corre bem, e nem todos os casos foram a prova de que o amor é cego.

Pelo pequeno resumo do conceito, Love is Blind tinha tudo para nos apresentar 20 pessoas diferentes e nos presentear com episódios infinitos que se dedicavam a cada casal em cada fase da experiência, mas foi aí que a produção da Netflix soube, mais uma vez, fazer as escolhas certas. A série tem apenas 10 episódios, com cerca de uma hora cada, os números ideais para mostrar tudo o que queremos ver. Esta é uma fórmula que também se aplica aos restantes reality shows de sucesso da plataforma.

A equipa de produção de Love is Blind revelou que, na experiência social, participaram entre 40 a 50 pessoas, mas apenas nos deram a conhecer profundamente seis casais. Para além dos casamentos e das "negas" a que pudemos assistir, houve mais quatro pessoas que saíram da experiência com um anel no dedo, mas, quem viu a série não sentiu falta das suas histórias. As escolhas feitas no produto final de Love is Blind transmitem a sensação de que conhecemos apenas os casos que precisávamos de conhecer, sem nos baralhar, confundir ou aborrecer. E essa parece ter sido a chave para o sucesso.

A fórmula “jovens-adultos com pouca roupa”

Por último, é impossível não destacar aquela que durante quase toda a semana foi a série n.º 1 no top de mais vistas da Netflix. Too Hot To Handle saiu há apenas uma semana e foi diretamente para o topo. O sucesso deste formato é mais complicado de perceber do que aquilo que parece, mas o melhor é mesmo irmos por partes.

Dez jovens adultos, vindos de vários países, aceitaram o desafio de passar por uma experiência em conjunto numa ilha. Se, por um lado, todos eles acharam que iam apenas passar umas férias casuais no meio de desconhecidos, a surpresa chegou quando uma das personagens principais, Lana, uma assistente virtual representada por um cone branco, chegou para lhes anunciar a verdadeira dificuldade.

Ao longo da sua estadia, os concorrentes são incentivados a criar ligações profundas e genuínas uns com os outros, e estão privados de qualquer envolvimento físico, em troca de 100 mil dólares. Por cada vez que estabelecerem contacto, através de beijos ou de algo mais íntimo, dinheiro será debitado do prémio final. Depois de percebermos a ideia inicial, há espaço para pensar que o desafio será relativamente fácil de ultrapassar, mas os participantes, que parecem ter sido escolhidos a dedo para a ocasião, conseguem surpreender-nos com o contrário ao longo dos vários episódios. Damos por nós a pensar se será assim tão difícil ficar cada um para seu lado.

Too Hot To Handle tem ainda um elemento que se destaca, e do qual muitos ficaram fãs: a narração. Conforme os episódios se vão desenrolando, os comentários sarcásticos ganham força num programa que parece saber-se rir de si próprio. Esta estratégia também foi usada em The Circle e, na perspetiva do espetador, funciona muito bem.

The Circle, Love is Blind, Too Hot To Handle e outros que ainda devem estar para vir mostram que a Netflix encontrou nos reality shows um filão em que consegue produzir formatos de qualidade e que agradam à audiência. E em altura de distanciamento social, quem é que não tem vontade de olhar para o que se passa na vida dos outros?