Os últimos cantos e a tentação de Vénus

Lisboa, Janeiro de 1571

Já sem as roupas de fidalgo, Camões voltara com Jau para junto de sua mãe. Com roupas maltrapilhas, surradas, parecia que lhe doía mais a perna, que mancava mais. Mas até isso lhe mereceu riso, andava mais animado. Sua mãe cuidava-lhe dos resfriados com uma beberagem quente, leite com cebola antes de deitar, mas sobretudo com abraços. Retomou a vida calma. De manhã, calhando, acompanhava sua mãe à missa matinal na igreja de S. Cristóvão e, muitas vezes, ia sozinho ao convento dos dominicanos. Jau era dorminhoco pela manhã e pouco dado a rezas. Mas quando o sol aquecia, manhã alta, descia com o vate até às margens do Tejo, onde já brincavam crianças por entre as árvores. Era aí que pescava e Camões escrevia desalmadamente. Havia que reformar o corpo de algumas estâncias já escritas para censurar a podridão que sentia em seu redor.

“Que a celebração dum povo não talhe a reprovação que devo a esta gente que tem em mãos tão nobre herança.”

Por aqueles tempos, Diogo do Couto tinha regressado a Lisboa, onde logo ouviu falar do regressado Camões, e em como estaria a ter apoio dos dominicanos — foi por eles que o encontrou para um abraço apertado. Juntos, resgatavam agora as suas longas cavaqueiras, desafogando entre eles a dor que lhes tomava o peito. Estava o fidalgo mais gordo e de bigode mais alçado, que os bons tratos da família lhe faziam bem.

“Vim de Goa para fugir a um mundo que me era malvado. Uma terra de escandalho em que tudo andava à força de más palavras, ou de peitas, ouro e dádivas secretas”, comentava Camões, sentado numa pedra junto ao Tejo, partilhando carne fumada que cortava com uma faca e um jarro de vinho tinto. “Em pago de sofrer tantas durezas, acreditei rever em Lisboa o que de puro ainda sonhava, mas aqui encontrei somente novas lanças apontadas a mim, novas aleivosias por parte dos homens. Que pátria é esta?”

Frederico Lourenço junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 23 de maio, uma quinta-feira, desta vez com um horário diferente: pelas 20h00. Consigo traz o seu romance "Pode Um Desejo Imenso", editado pela Quetzal.

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Em maio, a propósito das comemorações dos 500 anos de Camões, o clube vai olhar de outra forma para o autor do poema épico "Os Lusíadas", através do romance de Frederico Lourenço.

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“Existem duas Índias, como existem duas pátrias”, replicava Diogo. E explicava depois que havia a Índia antiga, do tempo de Afonso de Albuquerque e dos valorosos com barbas pelo peito. Memórias de uma Índia de “conquistadores virtuosos, desapegados das riquezas próprias”. Mas entendia que tudo se perdera: “Dalguns tempos pera cá, mestre, é ver quatro maneiras de alvitres: primeiro, contra o rei; segundo, contra os homens; terceiro, contra Deus; quarto, contra todos. Assim vão as Índias e, meu caro mestre, assim vai toda a pátria. Como dizeis, nada é diferente nesta Lisboa vendida. Tal como em Goa, há muitos anos que se não buscam homens para os cargos, senão cargos para os homens. E quem os quiser buscar, achá-los-á por um certo preço! Embora toscamente, muito tenho escrito sobre isto, mas não fazei caso de tal!”

Camões baixou a fronte e murmurou: “Está a razão do vosso lado, Diogo, sois agre mas genuíno. Sim, é verdade, todo o brilho se perde, assolados que estamos por uma apagada e vil tristeza. Estais certos, ando eu a cantar laudas a um reino que já não existe. Tenho por isso a lira destemperada e a voz enrouquecida — não do canto em si, mas de cantar a gente surda e endurecida. A tais terrenhos, que lhes interessa a elevação da poesia? Nem o Gama, que do grande Gama tem o nome, teve a hombridade de amparar quem o canta”, concluiu em desalento. E assim, escreve em desalento:

… Às Musas agradeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus na lira nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga;
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga…

Com o amparo de Couto, discípulo, amigo de anos, companheiro de caserna em Goa, vai aos poucos reescrevendo os últimos cantos das Lusíadas, arrogando-se uma escrita mais cáustica a cada verso, ressentido que estava com tudo, com todos, em especial com os irmãos Câmara, os jesuítas que, por amizades obscuras “com reles poetastros” lhe travavam o passo. Eles que, manuseando os nagalhos, moviam como um títere o fraco-rei.

… Nem Camenas (1)
também cuideis que cante
Quem com hábito honesto e grave veio,
Por contentar o Rei no ofício novo,
A despir e roubar o pobre povo!…

… Nem tão pouco direi que tome tanto
Em grosso, a consciência limpa e certa,
Que se enleve num pobre e humilde manto,
Onde ambição acaso ande encoberta…

Deixa assim uma velada crítica aos portadores do hábito honesto, onde, sob o signo da humildade, se escondia a pecaminosa avidez.

Eis quando chega D. Manoel de Portugal a cavalo, sabendo onde os procurar. Desmontou, passou um lenço pela testa, pois transpirava, apesar do tempo fresco. Abriu o colete e retirou uma “sigilosa missiva” que lhe entregou. “De quem é?”, pergunta. O fidalgo não respondeu, apenas lhe estende a folha dobrada e lacrada, que ele abriu de imediato.

Livro: "O Livro do Império"

Autor: João Morgado

Editora: Clube do Autor

Data de Lançamento: 17 de abril de 2024

Preço: € 17,50

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Luiz Vaz,
li com prazer as vossas “Lusíadas”. Sou grata a Deus por tal honra. Que saiba o mundo, que não sois mais o poeta das vãs redondilhas de coração. Este é o Poema que vos pedi. Uma obra para a eternidade que, invicta às guerras dos anos, tardará na memória das gentes. Estou feliz por vós. Sou hoje, mais que nunca, rendida à grandiosidade da vossa arte, certa de que a glória será vossa, de que a morte não chamará por vós. Nunca. Mesmo que o vosso corpo se apague! Que este reino, sempre tão esquecido dos seus heróis, saiba reconhecer-vos e dar-vos merecidos louros, que o vosso canto é o aclamar da alma de todos nós.
Para além das grandezas pátrias, li mais de cem vezes o impossível amor de “Pedro e Inês”, e mais de cem vezes chorei. Outras tantas lágrimas chorarei ainda, certa de que, mais de cem vezes lerei de novo tão apaixonados versos.
Confesso, senti falta de um outro Canto mais dedicado ao amor, talvez o amor por sempre cativo nos sonhos, e que só vós, por vosso engenho, sabeis liberar na poesia. Esta obra carece ainda de um golpe de asa, uma centelha divina, para ser cabalmente vosso, sem cotejos nem paridades… universal!
Estarei por vós, sempre…
M.

Camões voltou a dobrar a carta, olhando para as crianças a brincar entre as árvores e junto às águas. Corriam aos gritos, em diversão, puras, soltas. “Tem razão! Ela tem razão!” Virando-se para os companheiros, apenas comentou: “Tenho de reescrever um dos cantos. Falta um hino final ao amor!”

*

Para grande alegria de Ana de Sá, regressara o homem que a desposara. Camões ficou feliz por sua mãe ter de novo o abraço do seu afecto de mulher, o amparo. Contudo, apesar do retorno d’el-rei a Lisboa, continuava ele responsável pela cavalariça real em Alenquer e queria levá-la para o seu lado. Descansou-a o filho. Tinha a amizade fiel de Jau, os restantes amigos, a sua escrita. Ela podia partir e ser feliz. Tinha direito a pensar nela, a agarrar a sua felicidade, um peito onde adormecer. “Fico bem”, sossegou-a, uma e outra vez. “Que não se te rale a alma, fico bem!” E ela partiu. Também o senhor D. Manoel de Portugal tinha mandado aparelhar o coche e rumado ao norte do reino, onde era proprietário de umas saboarias no Porto. Restava Diogo do Couto, que andava num vai-vem a tratar de negócios de família, e o fiel Jau sempre a seu lado.

Durante três meses esteve Camões embrenhado nas sagradas escrituras do seu Poema épico. “Só preciso de vinho e tinta”, dizia ele apartando a comida da mesa. Redigia cada vez letras maiores, como se o olho sobejo estivesse já cansado de miudezas. Usava por vezes um óculo com uma lente de aumento, que lhe tinha oferecido Damião de Góis, seu parente afastado, numa visita que lhe fizera na Torre do Tombo, com o amigo Couto. Recebera um óculo valioso e um exemplar do seu livro Urbis Olisiponis descriptio, todo em latim. “Uma preciosidade”, comentou mais tarde. Por umas vezes passou por lá, para lhe pedir informações para a sua composição, ou para conversar tão-somente, que o tinha por homem afável e de um saber sem fim. Era um exemplo raro das suas poucas saídas. Tirando isso, apenas uma ou outra visita aos dominicanos, ou ao padre Manuel Correia, o cura da igreja de S. Sebastião da Mouraria, mais um ou dois amigos, não mais que isso. Quase não falava com ninguém, apenas trocava olhares, por vezes sorrisos. Vivia meio alheado, arrastando a perna, mal alimentado, rebuscando apontamentos, relendo obras que os amigos lhe traziam. Lia de manhã, escrevia pela tarde; escolhia as horas de maior luz, de resto descansava. Parava numa taverna para comprar vinho, mas mal dava palavra, nem para se lastimar da sua perna, a cada dia mais tufosa e vermelha, a causar dores no andar. Jau pescava e vendia o peixe no mercado. Depois trocava moedas por outras comidas, azeite para a candeia, velas, algumas roupas, e, por vezes, um sabão branco feito de azeites e cinza. Os fidalgos, de forma encoberta, davam alguns reais a Jau para que provesse a família dos bens primários, o que ele cumpria de forma discreta e zelosa. Camões nunca perguntou de onde vinha a comida que via sobre a mesa. A sua mente estava no Olimpo, estava no mar, estava algures num limbo, num além que não era deste mundo. Tinha entre mãos o reescrever do que seria o canto IX, antes das estâncias do canto final, já escrito.

Só após longas semanas explicou aos companheiros as grandes alterações redigidas. Tal como já tinha escrito antes, depois de mil
provações e perfídias, os marinheiros de Gama retornavam à pátria. Ora, sublinhava o poeta, por tão longos trabalhos, feitos grandes e ousadia, mereciam tais homens uma recompensa divina. Assim, foram estes atraídos pela deusa Vénus a uma ilha fresca e bela — que Vénus pelas ondas lha levava. Plantada no meio do Atlântico (2), ali tinha a deusa reunido as ninfas marinhas com título de belas. Mas eis que aqui entravam as novidades no poema. Chegados, os embarcadiços divisam por entre os ramos das árvores as ninfas que correm pela floresta em risos, para mais lhes atiçar os já grandes desejos. E pouco a pouco, deliberadamente, se vão deixando tomar caindo aos pés dos portugueses. Já feridas pelas setas de Cupido, logo se mostraram ardentes…

… Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo…

(1) Ninfas da mitologia grega — há quem sublinhe a intencionalidade de Camões na escolha destas musas em particular, pela proximidade fonética entre as palavras Camenas e Câmaras.

(2) Eventualmente baseado na Ilha Terceira, Açores. Entre outros indícios, a Ínsula divina pode ser uma referência a Ilha de Cristo, que fora o nome primeiro desta ilha.