Certamente que o leitor, caso seja um consumidor regular de notícias, jornais e revistas de qualquer tipo, já terá reparado que, muitas vezes, os meios de comunicação se inibem de escrever na sua totalidade certas e determinadas palavras que possam soar a uma afronta à boa educação e à moral vigente. É assim que, por exemplo, a grossaria com a qual muitos descrevem a genitália masculina se transforma em “c...” (ou “c******”, com asteriscos), o excremento se torna “m...”, e observações indelicadas sobre matriarcas alheias resultam num “filho da p...”.
Chamemos-lhe pudor, porque há que manter algum. Mas também há quem lhe chame censura, como os Fucked Up, banda canadiana cujo nome, em inglês, não pode ser traduzido devidamente para a língua portuguesa em meios respeitáveis como este (significa, de forma mais ou menos literal, “é f...”). No mundo da anglofonia, os canadianos transformam-se muitas vezes em “effed up” ou em “F***** Up”, raiando o medo na classe jornalística de cada vez que esta é levada a noticiar algo que o grupo tenha feito ou lançado.
O que, ao longo de 20 anos de carreira, tem acontecido sobremaneira: estamos, afinal, a falar de uma das bandas mais aclamadas dos últimos tempos no mundo da música alternativa e/ou independente, vencedores de um Polaris Music Prize em 2009, mais ou menos o equivalente canadiano aos Grammys. “É literalmente censura”, diz-nos o guitarrista Mike Haliechuck. Jonah Falco, baterista, mostra-se mais comedido: “É mais por cortesia”, garante. Seja como for, os Fucked Up não são, como o seu nome poderia indicar, um conjunto de gente feia, porca e má, como normalmente acontece no rock n' roll; são uns fofos, amáveis e prestáveis, respondendo de forma ponderada e sorridente às questões que lhes são apresentadas.
Essa “censura” pode, por vezes, levar a momentos mais ou menos ridículos nos jornais. “Às vezes somos mencionados no New York Times e eles nem sequer põem os asteriscos... Dizem que somos 'uma banda'”, explica Mike. “'Uma banda', cujo nome não se pode pronunciar”, qual Lord Voldemort [vilão dos livros da saga de Harry Potter]. “Se tocarmos numa rádio universitária, a FCC [Federal Communications Commission, órgão que regula as telecomunicações e a radiodifusão nos Estados Unidos] pode processá-los. Basta dizerem a palavra [“Fucked”], e são processados”.
A história por detrás do nome é simples: os Fucked Up vêm da cena punk, ergo, escolheram um epíteto que atuasse como choque por entre as massas, que marcasse posição na eterna dicotomia nós / eles. Há alguns anos, a banda explicou que escolheu este nome para evitar tentações mais ou menos comerciais, e torna-se óbvio perceber que com “Fucked Up” no bilhete de identidade não serão muitas as vezes em que os canadianos ocuparão primeiros lugares de tabelas de vendas onde quer que seja.
Além disso, há o humor – irreverente, juvenil, e que os levou a participar num festival “de bandas com 'fuck' no nome” (ou para bandas “f...”, para manter a piada), em 2008, juntamente com os Fuck Buttons, os Holy Fuck e os Fuck, na cidade de... Fucking, na Áustria. “Somos convidados a ir lá todos os anos, mas nunca conseguimos encontrar espaço na agenda...”, lamenta Jonah. Agenda essa que tem estado bastante preenchida nos últimos tempos, já que os Fucked Up lançaram um novo álbum, “Dose Your Dreams”, em outubro último.
“Dose Your Dreams” é um álbum conceptual que recupera uma personagem anteriormente explorada pela banda, David, que foi protagonista em “David Comes To Life”, disco de 2011. A história é mais ou menos assim: desapontado com uma vida que só lhe corre das 9h às 17h, David conhece uma mulher misteriosa, Joyce Tops, e procura quebrar a rotina ao mesmo tempo que vai quebrando a realidade em si (não contemos mais para evitar spoilers). A história é grandiosa e vem acompanhada por um rock energicamente punk, mas sem os dogmas tradicionalmente ligados a esse género; aqui não existem apenas três acordes, mas toda uma panóplia de texturas e de literatura, que bebe tanto do hardcore dos Hüsker Dü como dos delírios mais progressivos dos Pink Floyd.
O álbum andou quatro anos a ser preparado, entre o lançamento de “Glass Boys”, de 2014, e os singles que foram editando desde então (e a preferência dos Fucked Up pelo formato 7'' é bem conhecida; já lançaram mais de meia centena de registos nestes moldes desde que se formaram, em 2001). Pergunta: é difícil arranjar tempo e/ou inspiração para trabalhar em LPs? “Musicalmente, não”, revela Mike. “Tanto eu como o Jonah temos dado passos largos, no nosso percurso artístico. Tem sido um dos melhores períodos da nossa carreira”, ainda que as letras de “Dose Your Dreams” tenham levado um ano a serem escritas. “Não é uma questão de haver coisas menos importantes [como LPs], ou de nos termos resguardado mais delas”.
Não sendo este o primeiro álbum conceptual dos Fucked Up, será difícil escolher os alinhamentos para os seus concertos? Que acontece às histórias se as cortarmos em pedaços? “Nos concertos, focamos toda a nossa energia no Damian [Abraham, vocalista]. Ele é uma espécie de centro para tudo aquilo que se vai passando em redor”, continua o guitarrista. “Escolhemos as canções que fazem mais sentido num contexto de espetáculo ao vivo”.
Para este espetáculo em particular, no NOS Primavera Sound, os canadianos tocaram um dos seus temas acompanhados pela Escola do Rock de Paredes de Coura, nascida em 2014 e com uma atuação no festival da vila com o mesmo nome no seu currículo. A colaboração surgiu após a organização do festival portuense – que é a mesma do de Coura – ter enviado uma mensagem aos Fucked Up através do omnipresente Facebook, com o soundcheck a ser feito durante a manhã do concerto. Quinze pessoas em palco, para além dos próprios Fucked Up. Tudo por uma questão de diversão, ou para provar que o espírito de comunidade não pode morrer tão depressa, independentemente daquilo que se tem vindo a passar no mundo.
A Arte como Resistência
A tal não são alheios os canadianos, que nunca esconderam as suas posições de esquerda e até intitularam um dos seus primeiros 7'' como 'No Pasaran', referência clara a Dolores Ibárruri e ao seu discurso anti-fascista durante a Guerra Civil Espanhola. Numa altura em que existem movimentos populistas e fascistas a ganhar voz por todo o mundo, torna-se necessário recuperar o grito da resistente basca. A arte, como qualquer outra plataforma, também tem o seu espaço nesta luta. “Basta-lhe tentar chegar às pessoas, pô-las a pensar”, argumenta Mike.
Ainda assim, há quem diga que a arte e os artistas têm a obrigação de se separarem da política. “É precisamente o oposto”, remata Jonah. “A arte tem, muitas vezes, uma mensagem política. O que se passa é que as políticas progressistas se têm colocado, historicamente, do lado da arte, e agora há uma nova vaga, um forte pendor à direita. As coisas que víamos como garantidas, em espaços progressistas, já não ressoam tanto, ou ressoam de forma diferente”.
Como alterar esse paradigma? “Ou através do volume enquanto massa, ou intensificando a mensagem, ou mobilizando as pessoas de forma a lembrá-las que, apesar de terem acontecido tantas mudanças benéficas, ou de estarem a acontecer, ou de virem a acontecer no futuro, há um longo caminho a percorrer”, continua o baterista. “Lembrá-las de que não podem ceder, de forma alguma”. Uma ideia que é partilhada pelo colega: “As pessoas não têm que ter medo. Os fascistas e os capitalistas não vencerão. Os Fucked Up não têm medo. Penso que, de certa forma, é por isso que a banda começou por ser uma coisa, editando discos [como 'No Pasaran'], e depois inchámos o peito: 'o nosso nome é Fucked Up, e as pessoas não devem viver no medo”.
Aquando da eleição de Donald Trump, em 2016, houve quem visse um raio de sol na penumbra, argumentando que – com um “opositor”, um “vilão” – o rock n' roll iria ser grande outra vez. De facto, o que não falta nos dias que correm são músicos a insurgirem-se contra tudo o que essa eleição tem provocado, por todo o mundo. Jonah Falco parece concordar, mas com muitas reservas. “Foi uma vitória de Pirro”, diz. “Os danos que alguém como Donald Trump provoca durante a sua presidência são muito mais duradouros. É bom que as pessoas tomem consciência, expressem as suas opiniões, mas não têm acesso a uma bola de demolição como o Presidente dos Estados Unidos”.
E prossegue: “A presidência de Trump, e o tipo de coisas que ela provocou, como a viragem à direita no Reino Unido, [os conservadores] na Polónia, na Hungria... Estão muitas coisas prejudiciais a acontecer. Vai ser preciso muito para voltar a empurrá-las, oferecer um balanço relativo, continuar a assentar tijolos para que não os arrasem. Estes ciclos acontecem de 50 em 50 anos, por isso estaremos, espero, a passar pela pior parte. Espero que consigamos resistir à vaga”. A conversa sobre este tema termina com uma frase de Mike a ter em conta: “A boa arte também consegue refletir as coisas boas, e não apenas as assustadoras”.
Voltemos, então, à boa arte – nomeadamente à música dos Fucked Up –, e ao Polaris Music Prize que venceram. Regra geral, um prémio destes é visto com bons olhos pelas bandas e artistas a começar as suas carreiras ou que não conseguiram ainda firmar-se devidamente, e os canadianos não são excepção. Podemos, até, falar num antes e depois do Polaris. “Foi uma espécie de confirmação”, afiança Mike Haliechuck. “Tanto a nível artístico, como no que à divulgação diz respeito. Foi um grande 'nós bem avisámos'. Éramos uma banda muito orgulhosa, especialmente nesse período, e pudemos dizer 'vão-se f...' [aqui está o pudor jornalístico] a toda a gente. Mais do que o que já dizíamos”... O prémio acaba por significar, até, menos do que tudo o que vem a ele acoplado: “Dá-te dinheiro, dá-te uma base mais firme. Pudemos continuar a fazer aquilo em que somos bons”, explica Jonah.
Ora, os Fucked Up são exímios a lançar singles, como já referido, e um deles, 'David Christmas', editado em 2007, contou no seu lado B com a colaboração de um nome bem conhecido do público português: Nelly Furtado. “Ela estava a gravar no estúdio ao lado”, lembra Mike, ajudado por Jonah. “Desafiámos um dos nossos guitarristas a ir ao estúdio dela, e ele interrompeu-lhe as gravações. Disse-lhe: 'Olá, lamento imenso incomodar, mas estamos a fazer uma coisa, é para fins de caridade... Gostavas de dizer alguma coisa?', e ela foi imediatamente convencida”. O resultado tem como título 'Stars on 45' e conta ainda com nomes como James Murphy (LCD Soundsystem), Cole Alexander (Black Lips) e Matt Sweeney, entre muitos outros.
Só não contou com os Arcade Fire, que quase apadrinharam a estreia dos Fucked Up em Portugal. Escrevemos “quase”, porque a banda iria assegurar a primeira parte do concerto dos autores de “Funeral”, no então Pavilhão Atlântico, até que este teve de ser cancelado devido à cimeira da NATO que decorria mesmo ao lado, na FIL. Vai daí, os Fucked Up não tiveram meias medidas: anunciaram dois concertos, em Lisboa e Porto, na Galeria Zé dos Bois e no Plano B, respetivamente. “Não me lembro de nada disto!”, atira Mike, entre risos. Jonah tem melhor memória, mencionando um sítio “com um vidro enorme” que dá para a rua, no caso o espaço lisboeta.
“Foi muito estranho”, continua, “porque esses concertos marcaram o início da nossa digressão com os Arcade Fire. Não sabíamos o que esperar, porque era uma digressão de estádio, e fizemos esses dois concertos, que foram ótimos... Foi um início muito bom – e depois tivemos de viajar numa carrinha miserável e fria, enquanto os Arcade Fire andavam em autocarros e aviões e viajavam à noite. Chegávamos atrasados a todos os concertos...”, recorda.
“Tocávamos para 25 mil pessoas, que não queriam saber de nós. Os Arcade Fire foram muito simpáticos, claro, mas esses dois concertos foram enganadores porque pensámos 'isto vai ser incrível!' e, depois... ficámos gelados”. Mike puxa pelo passado e relembra: “Chegámos incrivelmente atrasados a um desses concertos, num pavilhão de basquetebol. Tivemos de levar a carrinha para o campo, montar o equipamento em palco com toda a gente lá dentro, as luzes ligadas... Foi uma vergonha”, conta. Uma vergonha que já lá vai; hoje os Fucked Up são uma instituição dentro do hardcore – e já não precisam de provar nada a ninguém. Ou de morrer de frio.
Comentários