«É a ilha do sol, da areia branca e do Verão, Santa Maria. Dizem que nem parece Açores», refere Joel Neto, escritor açoriano, que no seu livro «A vida no campo», se sente o murmúrio da terra. Santa Maria é a ilha dos Açores mais meridional e mais a oriente, por esse motivo é a que tem um clima mais quente e seco, cobrindo com tons amarelos e torrados a paisagem distinta do restante arquipélago.
Rita Gago da Câmara, Diretora do Parque Natural da Ilha de Santa Maria, é “açoriana de gema” e após alguns anos no continente, assim que teve oportunidade regressou, «não podia mais suportar a falta da sua ilha», como explica Joel Neto, com o dom de encontrar as palavras certas para as profundezas da alma. Pela sua profissão, Rita explica o passado geológico da ilha, onde as rochas vulcânicas e sedimentares distam 6 milhões de anos, criando uma elegante praia de areia branca e fina que faz jus ao nome, a Praia Formosa. Acrescenta que «Santa Maria tem uma mística de cores e cheiros fora do comum, os odores das figueiras misturadas com vinhas de uva madura acolhidas em socalcos no anfiteatro da Baía de São Lourenço, são memórias que lembram a sua infância». É também nesta baía, que recorta o mar, que o Sol nasce e não deixa ninguém indiferente até na lenda dos seus descobridores. Conta-se que a descoberta é marcada pela promessa de Gonçalo Velho Cabral à Virgem Maria de dar o seu nome à primeira terra que encontrasse.
Após dias de tempestade e de rezas para encurtar distâncias, no meio de uma oração a “Ave Maria” surge a primeira ilha a ser descoberta pelos navegadores portugueses e a primeira ilha a ser povoada. Com um papel nos Descobrimentos, que não deixou indiferente Cristóvão Colombo regressado da América e o pirata Bei. Este último, que pela sua ferocidade massacrava a população quando avistava as velas do temível pirata dava sinal de alerta: «Vem aí o Bei!». Rita explica que ainda hoje a arquitetura de fortes e “fortinhos” marcam o cenário, onde «as covas abertas no chão permitiam esconder os mantimentos para preservar riquezas simples de uma vida». De sinal de alerta a expressão de espanto, os marienses exclamam «Bei, não me digas. Credo Senhor. Não pode ser!». Essa surpresa é sinal de admiração das paisagens pinceladas por cores de vida: o azul-turquesa das águas puras e calmas, os verdes dos campos, as praias douradas e o ocre das terras. «Devido à influência da oxidação das cinzas vulcânicas, o Barreiro da Faneca, conhecido por “deserto vermelho”, é um ponto de interesse geológico, mas não só. O andar descalço nesta coloração avermelhada, é uma sensação única.», sugere Rita. Por isso, não admira que seja um local privilegiado para a prática da meditação e yoga, pela leveza que se sente. Esta rotina é praticada pela nossa guia açoriana e partilhada por Helena Martelo, Técnica Superior da Direção-Geral do Património Cultural na ilha Terceira, que quando se sente cansada retira-se para esta evasão de vermelho.
Helena nasceu no continente e partiu para os Açores por três anos, está há 19. Começou por viver em Santa Maria e hoje vive na Terceira, no Grupo Central, com o marido e as duas filhas. «Apesar de ser velejadora, da necessidade do contacto com o mar e com a natureza», como refere esta natural de Sesimbra, augurava-se um tempo curto. Os amigos e a própria achavam que «não aguentaria a dor da distância, as mordomias do continente e as inúmeras atividades a que se dedicava, tendo como alcunha carinhosa “sport billy”». Mas tal profecia não se concretizou. Helena provou que os dois mundos não eram muito diferentes. A “sua ilha” no continente era a sua terra piscatória rodeada pela serrania da Arrábida, agora os Açores tinham acolhido Helena para continuar a realizar os desportos náuticos o ano inteiro, a oferecer múltiplos trilhos e caminhos por explorar e proporcionar liberdade, no sentido literal. Corrobora as palavras da mariense, a Praia Formosa «é um sítio do outro mundo», acrescentando que «os vales verdes e profundos de Santo Espírito, são um privilégio de tranquilidade e de equilíbrio numa vida sustentável oferecida pela generosidade da natureza, prolongada pelas «genuinamente endémicas pessoas, os açorianos», como humaniza Rita.
Foi isso que fez ficar Helena. Confirma a felicidade sempre que o Sol dá uma espreitadela, afastando a melancolia da névoa e descobre o Pico, a ilha vizinha, relembrando como diz Helena «que não estamos sozinhos». A Terceira vem confirmar a especificidade de cada ilha, unindo o encanto da natureza de origem vulcânica com o respeito da nobreza e grandiosidade do centro histórico de Angra do Heroísmo, classificado Património Mundial pela UNESCO. É uma ilha naturalmente festiva, com um calendário rico de celebrações, que convivem com a singularidade da natureza embelezando a banalidade dos pequenos hábitos. Helena recorda as socas de milho doce do Sr. José nos Biscoitos, uma zona balnear com piscinas naturais; as caminhadas ao pôr-do-sol pela Mata da Serreta, um parque florestal com uma vegetação extravagante e o silêncio do Monte Brasil que não nos prepara para um possível assobio das baleias.
A história de Helena Martelo «dava um romance», como sentencia o escritor Joel Neto sobre Santa Maria. Apaixonou-se por Tiago, o marido também do continente, que estava deslocado como professor no Arquipélago. Escolheram os Açores, «viram a vida pelo melhor prisma», provando a doçura das palavras de Rosa Lobato Faria, no seu «Vento Suão». E, é com forma de coração que Helena Martelo e Aida Bairos criaram o projeto «Organic Flow», onde nascem peças contemporâneas em vime. «Sempre que estou muito cansada, regresso ao Forno, em Santa Bárbara, na ilha de Santa Maria, para descascar, cozer e descascar o vime em conjunto com a comunidade, onde se partilham histórias antigas que passam entre gerações». O vime é a matéria prima oferecida pela natureza, de onde nasce natural e organicamente o processo criativo cheio de sentido e com todos os sentidos. Surgem estas esculturas que recuperam a essência artesã, criando corações que equilibram o mundo pela sustentabilidade e pela paz. Helena refere emocionada que «precisa do cheiro de Santa Maria que é o cheiro a vime, o cheiro a coração». Este coração (o de vimes) teria decerto confortado o açoriano Vitorino Nemésio e o seu poema:
«Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.»
Há alguns anos, o coração de Manuel Menezes de Sequeira, natural do continente, foi arrebatado pelo ponto mais ocidental de Portugal, onde passava férias. Hoje, passados dois anos, escolheu morar da ilha das Flores. Quando surgiu uma oportunidade de reconstrução da aldeia de Caldeira do Mosteiro não hesitou e definiu o seu projeto de vida. Parece uma «terra eleita de Deus», como diria o escritor Guilherme de Morais, sendo para Manuel uma das ilhas mais bonitas do arquipélago, «é gloriosa pelo seu clima atípico, húmido e chuvoso, cria uma beleza verdejante e luxuriante recortada por uma costa escarpada, onde as águas através das sucessivas cascatas rompem o olhar e tornam indescritível o cenário». São disso exemplo a Cascata do Poço do Bacalhau e a da Fajã Grande.
Mas se as cascatas oferecem o seu silêncio próprio, Manuel explica que «a vegetação pincelada pelas formações vulcânicas de basalto, motiva uma descoberta a pé, onde existem antigos caminhos que guiam encontros com caldeiras de antigos cones vulcânicos, vales e ribeiras que pedem uma paragem, uma contemplação». Há harmonia na diversidade de paisagens, que generosamente oferecem cor ao mundo «como o cedro-do-mato que resiste a séculos e é absolutamente indescritível», reforça.
Não admira que a Ilha das Flores esteja integrada na rede mundial de Reservas da Biosfera da Unesco. A ilha deve o seu nome à abundância de flores amarelas, os “cubres”, que revestiam toda a ilha, quando foi descoberta. Provavelmente, hoje manteria o nome pela vida sublime que respira na «comunhão de aromas e sabores» de Clarice Lispector, que são exemplos a Queijaria da D. Ilda Henriques e a melhor manteiga do mundo ocidental da Cooperativa, que têm «a essência da hospitalidade», confirma Manuel.
Este é um artigo da autoria de Rita Ferreira do projeto Desculpas para Ler.
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