Altruísmo
Consideremos a aflição da Humanidade, que acaba por ganhar um significado para a sua existência, face à dimensão de suplício, sacrifício pessoal e entrega de um Jesus Cristo. Esqueçamos o «Pai, porque me abandonaste?», porque, em stress, todos dizemos coisas de que nos arrependemos. Graças a um gesto para o qual nem todos estamos preparados, Jesus salvou toda uma espécie — ainda por cima a que melhor pensa — endossando-lhe a salvação, a expensas do seu próprio corpo crucificado. Claro, estamos a pôr a coisa ao nível dos extremos, mas a definição de altruísmo passa um pouco por aqui: trata-se de um comportamento, ou atitude, cuja intenção é beneficiar outrem, mesmo que implique uma ameaça ao bem-estar do altruísta-em-exercício. Atenção, estamos a falar de acções concretas e não de manifestos públicos de atenções (chamemos-lhes posts de Facebook, pronto), uma vez que altruísmo implica agência, intenção materializada, consistência, e não simples postas de pescada. A acção é direccionada — salvar a Humanidade, doar uma fatia do rendimento a quem se encontra desapossado dos instrumentos básicos de subsistência, prescindir de uma posição vantajosa em favor de alguém sem as mesmas oportunidades concretas. Mas, atenção: no que ao altruísmo diz respeito, há que ter em conta um objectivo específico, o de aumentar o bem-estar alheio; os efeitos colaterais (mesmo que benfazejos) não contam. Ou seja, há que ser altruísta de forma consciente e não graças às manigâncias do acaso puro e simples. Melhor: as intenções são mais importantes do que as consequências. Meaning, se ainda assim a Humanidade preferisse a Torah ou os bezerros de ouro, inviabilizando a narrativa vencedora da religião cristã, o gesto de Jesus continuaria a ser altruísta apesar do resultado. Continuaria a ser, digamos, aquele que dá a outra face, mesmo com as estaladas que lhe reservamos.
Nacional‐porreirismo
Como definir a palavra «porreirismo»? Terá um carácter universal ou será muito nossa? «Porreiro» terá de vir acoplado à interjeição «pá», como em «Porreiro, pá», ou ficará melhor ao lado do adjectivo nacional? É costume dizer-se que a palavra «saudade» é que faz de nós únicos, mas «porreiro» andará lá muito perto, algures entre o território do bem-estar e da joie de vivre. Os Nórdicos encontraram maneira de vender-nos o hygge, inclusive em formato livro de alta rotação comercial, remetendo para um sentido de harmonia — que envolve design, mobiliário, paisagem e arquitectura — capaz de nos pôr de bem com a vida. Enfim, o Estado Social daqueles lugares é capaz de ajudar bastante à leveza, a juntar às linhas sóbrias das cómodas e das mesas-de-cabeceira. Além do hygge, os Vikings apresentaram-nos o lagom, vocábulo sueco que faz a síntese contemporânea do less is more, popularizado pelo arquitecto Mies van der Rohe, já citado neste incunábulo. Enfim, o porreiro andará nestas esferas, mas terá menos a ver com sobriedade e placidez. Pode significar clima agradável, comida saborosa e a custos controlados, facilidade nas relações interpessoais; o porreiro é, assim, uma espécie de estado de alma que, na versão mais sombria, pode transitar pelo universo pantanoso do compadrio. Nacional-porreirismo tem uma carga pejorativa, a verdade é essa. E se um tipo porreiro poder ser aquele que nos ajuda a carregar a bateria do carro ou a arranjar maneira de conseguir um seguro automóvel mais económico, um praticante do nacional-porreirismo pode ser sinónimo de facilitador, coloquialidades à parte. Ao contrário do que asseveram os dicionários, porreiro não é apenas aquele que inspira simpatia. É também aquele que pratica a complacência para com coisas duvidosas. Ou não. Pode ser apenas um gajo que nos faz um jeitinho. Outra palavra de fazer inveja ao mundo.
Populismo
Anda um espectro pela Europa. E pela América. E pela Ásia. E por todo o lado. O espectro do populismo. O caro leitor que me perdoe o parafrasear de Marx e Engels, mas o que se passa é que, para onde quer que nos viremos, ouvimos falar em populismo. E não se trata de espectro nem de amanhãs que cantam. Trata-se de uma existência de carne e osso que se farta de guinchar. Há quem fale até numa espécie de Internacional Populista em curso, desejo confesso do propagandista Steve Bannon, antigo estratega de Donald Trump, tal é a expressão actual do populismo. Embora este acabe por ser apenas um regresso do «encanto» populista, doutrina que já fez escola (e mossa) noutras épocas e geografias, unindo figuras como Júlio César e Eva Péron, Andrew Jackson e Berlusconi. Mas o que é, afinal, populismo? As definições apresentam-no prosaicamente como uma prática política que procura obter o apoio popular através de medidas que, à primeira vista, são favoráveis às massas. A definição peca por defeito, claro. Faltam as referências ao culto da personalidade, ao exercício do poder e da autoridade que apresenta os adversários como inimigos do povo, à desconfiança (para não dizer hostilidade) para com a imprensa e o seu desejo de escrutínio. O populismo também implica um confronto com a ideia de democracia liberal; do ponto de vista dos populistas, esta é sinónimo de corrupção e de supremacia rapace exercida pelas elites que devem ser afastadas por um líder forte; um líder que aja de acordo com o interesse dos de baixo. Nesta acepção política, o chefe acaba por ser a síntese das vontades e interesses do povo que diz representar, esgotando-se nele a representatividade. Só da boca do líder sai a voz do povo. E como podemos ver nos casos de Trump, Bolsonaro ou Erdogan, sai-lhes mesmo muita coisa da boca para fora.
Trumpismo
Aqui, lidamos com um conceito que nos coloca outros desafios. É como se estivéssemos ao abrigo — ou sob fogo — do método socrático: sem respostas definitivas e sujeitos a novas interrogações. O trumpismo está intimimamente ligado às idiossincrasias, trejeitos e obsessões de Donald Trump, claro. Mas a história deste ismo ainda está por fazer porque, à data em que estas linhas são escritas, é difícil perceber qual o seu legado. E qual o seu futuro. Foi o próprio a designar o seu tempo na presidência como a «era de Trump», num misto de narcisismo, falta de noção e também um pouco de verdade, tendo em conta o modo como os destinos dos Estados Unidos marcam a Humanidade. O trumpismo acaba por ser filho do populismo, uma versão deste último adaptada ao século xxi: contaminada por fake news, info wars e televangelismo político via múltiplos canais, a começar pelas redes sociais. Só que, em vez de lidarmos com uma figura autoritária que afirma ser a voz do povo contra as elites… temos um membro da elite a fazer-se passar pela voz do povo enquanto mantém os seus negócios privados e os benefícios para a família directa. Ainda por cima, às claras. O trumpismo será um sintoma, mas não uma causa, da deriva iliberal do mundo. Tem o seu capital de influência (chora, Brasil), mas foi precedido por outros fenómenos do género (chora, Hungria). Seja como for, é um ismo único, pelo que foi enunciado e pela influência que exerce num eleitorado conservador, capturado por um exemplo de sucesso que, levado ao limite, poderia estilhaçar toda uma democracia onde esses conservadores, muitos deles membros do Partido Republicano, já não teriam lugar. O trumpismo é uma consequência de Trump. Mas é muito provável que possa haver trumpismo sem ele. Parece um paradoxo, mas é bem possível que esta abordagem bully e sem estima pelos factos tenha vindo para ficar.
Machismo
Podíamos deixar aqui escrito Portugal e dar o assunto por encerrado. Brincadeirinha. O machismo está longe de ser um exclusivo nosso. Na verdade, a atitude de prepotência e dominação do homem em relação à mulher é relativamente universal e transversal à história do Homem (pronto, lá estamos nós a cair na mesma tentação). História da Humanidade, vá. Veja-se a condição da mulher na Antiguidade Clássica e no dealbar da democracia grega. A escassez de igualdade entre os dois géneros tem feito doutrina durante séculos e só nas últimas décadas — e limitado a algumas zonas do globo — tem havido um movimento estruturado e continuado que procura pôr em causa essa mesma escassez. Durante quase toda a História de que temos registo, os homens gozaram de mais liberdade, poder, oportunidades, justiça e rendimentos do que as mulheres. A nível político, social, económico, cultural, íntimo, enfim, é trazer à colação o adjectivo que preferirmos. Neste contexto, os Franceses e os Anglo-Saxónicos preferem a palavra chauvinisme, ou chauvinism (que também encontra paralelo nos nossos dicionários), para se referirem ao machismo que tem origem etimológica nas línguas ibéricas. No entanto, mais macho ou menos macho, o chauvinista, que é aquele que exacerba o ascendente de um grupo sobre outro, de um sexo sobre outro, glorifica a sua condição. Seja qual for a palavra usada, o problema reside no dogma da superioridade masculina, quiçá em virtude das habilidades físicas necessárias na época dos caçadores-recolectores. Hoje em dia já se fala em fragilidade masculina, cercada pelo óbvio ululante e pelas legítimas aspirações das mulheres, que não se limitam a ser parideiras ou figuras aparentadas do papel de parede. O que é certo é que o século xxi já vai bem lançado e as mulheres continuam a mandar e a ganhar menos do que os homens. Ai, Portugal, Portugal. E mais o resto.
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