Do mau tempo restou apenas a lama e o cheiro fétido proporcionado por dezenas de bexigas esvaziadas em locais que não os próprios, ali junto ao palco principal do Primavera Sound Porto, que ao sol geraram um perfume característico. O terceiro dia de festival foi um dia ameno: aproveitou-se dar os abraços que, antes, não se partilharam por frio ou vontade imensa de não ficar ainda mais molhado/a; bebeu-se mais cerveja e menos água da chuva; ganhou-se mais paciência para, de facto, assistir a concertos em vez de ficar abrigado debaixo de um qualquer toldo. Agora sim, estamos num festival de verão. Agora sim, podemos dar largas ao sentimento.
O maior deles foi proporcionado pelos Pet Shop Boys, cabeças de cartaz deste terceiro capítulo. Nos anos 80 e inícios dos 90, a dupla formada por Neil Tennant e Chris Lowe foi um dos maiores nomes da pop, quando a eletrónica ainda se encontrava a conquistar terreno face às guitarras. Para a eternidade ficaram temas como 'It's A Sin', 'West End Girls' ou 'Heart', bem como as geniais versões de 'Go West' ou 'Always On My Mind'. Influenciaram nomes como Lady Gaga, remisturaram Madonna, foram remisturados pelos KLF (e foi KLF que se ouviu, minutos antes do início do concerto no Porto). E foram, grosso modo, adotados pela comunidade LGBTQ+, ainda que nunca tenham erguido bem alto essa bandeira – Tennant procurou sempre que as personagens das suas canções tivessem género neutro, e só assumiu a sua homossexualidade em 1994, já quando era uma estrela.
De 'Go West' a 'It's A Sin'
Num dia onde o arco-íris se mostrou e se ouviu, não se pode dizer que os Pet Shop Boys tenham dado um concerto tão eterno como as supracitadas canções. A qualidade do som não foi a desejada, impedindo por muitas vezes que a voz de Tennant se ouvisse, tornando ténues as linhas de Lowe. Envergando máscaras e batas brancas, quais cientistas da pop, os britânicos deram início ao seu espetáculo com as melodias de 'Suburbia', canção-fetiche para todos aqueles que nunca habitaram dentro de uma cidade grande, e que se odeiam um bocadinho mais por assim ser.
Quando não era um grupo de operários a construir os cenários de palco a prender-nos a atenção, era o que se passava fora dele, como os rostos que irradiavam felicidade assim que se começou a ouvir 'Always On My Mind', um de vários temas alheios interpretados pelos Pet Shop Boys (um deles foi uma mescla entre 'Where The Streets Have No Name' e 'I Can't Take My Eyes Off You', que levou pelo menos uma pessoa a recorrer ao Shazam para identificar o que ouvia, sinónimo de que tem poucos discos ou vive debaixo de uma pedra, ou ambas).
'Go West', outro deles, foi recebido de punhos erguidos, ao passo que 'It's A Sin' não podia deixar passar um pé ou dois de dança. 'West End Girls' e 'Being Boring' fecharam um espetáculo que, não sendo glorioso, serviu para riscar os Pet Shop Boys das listas particulares dos 1001 artistas que se devem ver ao vivo antes de morrermos. Se puderem cá voltar depressa, por favor aumentem o volume.
Depois das Bikini Kill, Kathleen Hanna – figura-chave do movimento riot grrrl – formou as Le Tigre na companhia de Johanna Fateman e Sadie Benning, dando ao seu espírito punk uma saudável camada de eletrónica. A fusão permitiu-lhes serem apelidadas de madrinhas do electroclash, deu origem a três álbuns de estúdio e levou o nome Le Tigre às faculdades de todo o mundo. Faculdades, pois esta é uma música que só tende a fazer sentido quando estamos a estudar numa, quando temos de ser minimamente pedantes de forma a nos enturmarmos: de que outra forma se pode descrever uma banda que compõe uma canção sobre John Cassavetes?
Era das Le Tigre um dos concertos mais aguardados por gente com bom gosto, e depressa se percebeu que muita gente no Primavera Sound Porto tinha bom gosto. A zona do Palco Super Bock encheu-se de cima a baixo para assistir de perto à etapa portuguesa da sua digressão de reunião, seis anos após o início de um hiato.
Começaram com 'The The Empty', as letras de cada canção a surgirem no ecrã de fundo e incitando ao karaoke, o mesmo pelo qual puxariam em 'On The Verge'. Uma drum machine era a base para temas onde as guitarras soavam a sintetizadores, a cantoria soava a gritos numa manifestação pelos direitos das minorias (mulheres, negros, queers e tudo o mais, a quem dedicariam 'On Guard'), as coreografias de 'Yr Critique' e 'Deceptacon' soavam a bizarria de estudante de belas artes – e, ao mesmo tempo, pareciam fazer todo o sentido. O que importava do concerto das Le Tigre, além da mensagem, era uma pessoa divertir-se.
“Quando começámos as pessoas diziam que não éramos uma banda a sério”
Depois de ver aquele espaço repleto, saímos dali com a sensação de vitória – não porque o alternativo se tenha imposto ao mainstream, mas sim porque os principais palcos secundários, e o declive onde se situam ambos, se impuseram fortemente ao palco principal e sua nova disposição no mapa. E, também, porque as Le Tigre continuam tão essenciais hoje quanto o eram há 20 anos. E sabem-no: JD Samson, teclista que substituiu Benning em 2000, chegou mesmo a dizer que “era muito importante ocupar aquele espaço” enquanto banda. Pois que a sua música é uma de saltos e sorrisos, mas também de mensagem, pelo feminismo, pela comunidade LGBTQ+, pelas vítimas de abusos sexuais. “Quando começámos as pessoas diziam que não éramos uma banda a sério”, atirou Hanna. Hoje, são um assunto mais que sério.
De uma espécie de feminismo para outro, vimos Tokischa incendiar o Palco Plenitude a uma hora impeditiva (duas da manhã) e numa zona proibida (às vezes, o que se ouvia eram ou os Darkside, no Palco Vodafone, ou Central Cee, no Palco Porto). O público que a acolheu tratou-a, no entanto, como “a presidenta de todas as malucas” que afiança ser. De um vídeo em modo tempo de antena, onde as palavras de ordem eram “sintam-se à vontade para serem quem são”, passou-se para o mais sexual dos reggaetons, com a dominicana a fazer do seu corpo uma arma anti-conservadorismo.
'Linda', canção que fez com Rosalía, foi tão bem recebida que depois de ter surgido no início do espetáculo voltou para o encore. 'La Combi Versace', outra canção com Rosalía, fixou-nos o olhar no fio dental branco que deixou à mostra, bem como nos dançarinos e dançarinas que a acompanhavam, todos rebolando em palco ou ficando de quatro. Uma interpolação de 'Smooth Criminal', de Michael Jackson, fez-nos rir, e os beijos na boca que distribuiu a três fãs nas grades, quando já tinha descido até ao fosso, fez-nos invejar. E ainda houve 'Delincuente' para animar ainda mais as hostes. Perguntamos: Não teria merecido palco e público maiores?
O Primavera Sound Porto termina este sábado com concertos de Halsey, Blur, Karate, New Order, Unwound, Julia Holter ou Daphni, entre outros.
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