Entredentes, um suspiro tímido. Chega-se ao fim do Primavera Sound Porto com o cansaço acumulado de horas passadas em pé e parcas noites de sono. As pernas, desfeitas, a lombar, latejando, os ouvidos, zunindo. No autocarro rumo aos Aliados, escoceses alcoolizados cantam e berram e despedem-se do Porto com uma sensação de dever cumprido. Valeu a pena? Acaba por valer sempre a pena quando se faz aquilo de que se gosta, que é ouvir música e ver concertos ao vivo. Encontrar gente de que gostamos pelo meio. Rirmos e discutirmos - “Kendrick Lamar foi incrível!” / “Não foi nada!” - e esquecer por quatro dias que o mundo lá fora ainda se move e não tarda volta a incluir-nos no seu turbilhão.
Porém, não podemos ignorar que esta foi uma das edições do Primavera Sound que mais nos deixou um sabor amargo na boca, dizendo-o de forma simpática. O último dia de festival deu as boas-vindas ao calor, mas também contou com uma cereja no topo do bolo para esquecer: estavam os New Order a tocar 'True Faith', de longe uma das suas melhores canções, quando o sistema de som deu de si e tudo o que restou aos milhares de pessoas que até ali se deslocaram de propósito, para reviver os seus anos de juventude, foi o silêncio. Segunda tentativa, e novamente o mesmo problema. “Já há Corruption e Lies, só falta o Power”, atira o membro limiano do coletivo Gin Party Soundsystem, ao nosso lado. “Lamentamos, mas a energia foi abaixo”, lamentou-se Bernard Sumner, antes de se resolver a situação e se ouvir, não o que restava de 'True Faith', mas outros dois êxitos, 'Blue Monday' e 'Temptation'.
No campeonato de quem levou mais gente até ao recinto nesta última corrida, os New Order e os Blur podem muito bem ter empatado. Era fácil perceber quem queria ver a banda de Manchester: ou eram as t-shirts brancas a dizer “New Order”, ou eram as já gastas t-shirts de “Unknown Pleasures”, dos Joy Division, a tapar os troncos. Estas últimas já são presença regular em tudo o que é festival de música e não só, é certo. Aliás, a ciência estará prestes a descobrir que caminhamos rumo a uma singularidade em que toda a gente envergará uma t-shirt de “Unknown Pleasures”, qual “1984” da música alternativa. Se quiserem uma imagem do futuro, imaginem uma loja da H&M a esmagar um rosto humano, para todo o sempre.
Adiante. Haverá muito boa gente, mesmo entre esses, que não terão ido ao Primavera Sound Porto para ver os New Order, mas sim para ouvir as canções dos New Order, inevitavelmente romantizando qualquer falha que o grupo tenha em palco. Uma falha não ao nível do sistema, mas ao nível do coração. Uma falha não ao nível de não se ouvir a guitarra, ou a voz, ou a bateria, mas ao nível de já nada disto ter chama, quais bonecos em piloto automático. Se em Paredes de Coura, em 2019, muito nos incomodou ver Sumner a olhar para o relógio a meio do espetáculo, como um operário à espera de picar o ponto para ir para casa, hoje incomodou-nos o facto de nem canções como 'Age Of Consent' (que, admita-se, ainda permitiu alguns laivos de entusiasmo) nos despertarem do torpor.
Os New Order foram uma excelente banda e fizeram discos extraordinários, a sua influência ainda hoje se faz sentir, mas acabaram no caixote a que nenhum artista quer pertencer: aquele que tem marcado em cima “do seu tempo”. Resta-nos a música.
Os Blur ainda querem fazer coisas novas ao invés de querer viver do passado
Pelo mesmo diapasão seguiram os Blur, ainda que Damon Albarn continue a mostrar-se um pequeno dínamo, em palco. Regressados ao ativo e com disco novo prestes a sair, os londrinos agradaram aos que ainda se lembram que, nos anos 90, houve uma coisa chamada “Batalha da Britpop”, em que os Blur (com 'Country House', que tocaram esta noite) venceram os Oasis (com 'Roll With It') por 274 mil cópias a 216 mil. Quase trinta anos após esse acontecimento inventado pela imprensa musical da altura, deverão ser os Oasis, que à hora a que este texto é redigido estarão a celebrar com todo o álcool do mundo a vitória do seu Manchester City na final da Liga dos Campeões, que se estarão a rir.
Abrindo com 'St. Charles Square', depois de quinze minutos de atraso (a típica pontualidade britânica a ser mandada para o galheiro, muito provavelmente por culpa do sucedido com os New Order), os Blur rapidamente passaram também por 'Popscene', já depois de Albarn ter descido para junto do público nas filas da frente, enquanto o baixista Alex James nos encantava com a sua tremenda pinta, cigarro nos lábios e postura meio blasé.
Olhamos para o lado de fora do recinto e há quem, nos prédios em frente, assista ao concerto do conforto da sua janela, e pensamos que uma ideia genial seria levar um festival para o centro de um bairro qualquer, para que deixasse de ser necessário andar aos encontrões a desconhecidos para apanhar um bom lugar.
O refrão de 'Beetlebum' foi um dos mais entoados da noite, mas 'Coffee & TV', que é de longe das suas melhores coisas (quem era miúdo na viragem do milénio continua a achar um piadão ao videoclip com o pobre pacotinho de leite), soou-nos admitidamente algo amorfa. 'Country House' mereceu um aviso sarcástico de Albarn: “a partir daqui é sempre a descer”. Era mentira, já que o quarteto se lançou de imediato a 'Parklife' e, pouco depois, a 'Girls & Boys', ao som da qual abandonamos o palco principal, sem ficar sequer para 'Song 2'.
Escrevemos “empatado”, mas se calhar os Blur ganharam mesmo: ainda querem fazer coisas novas ao invés de querer viver do passado. Melhor, parecem ter energia para isso.
Unwound: o melhor de todo o Primavera Sound Porto
Pouco passava das duas horas de madrugada quando uma trupe de resistentes, tanto aos Blur como ao próprio festival, se alinhou junto do Palco Vodafone. A ideia era a de ver os Unwound, banda rock para fãs de bandas rock a sério: barulho muito, guitarras metálicas, baterias que te fazem sentir coisas. Foram um dos trunfos da Kill Rock Stars, seminal editora independente dos anos 90, até que colocaram um ponto final na carreira em 2002, para regressar aos concertos em janeiro deste ano. Em boa hora o fizeram. Não é de ânimo leve que caracterizamos o concerto dos Unwound como o melhor de todo o Primavera Sound Porto, e provavelmente um dos melhores do ano.
Uma ideia que se construiu no caminho entre o Palco Porto e o Vodafone. Um som se escutava ao fundo, um peso que, em crescendo, se ia espalhando pelo corpo como um antiviral: o ruído, em doses prolongadas, é salvífico. A doença tinha sido a falta de concertos aos quais possamos apelidar de extraordinários. Não era, por definição, um espetáculo for the faint of heart, como dizem os ingleses. Unwound é o tipo de banda que só quem deseja ardentemente enlaçar a cauda de um cometa consegue entender, o tipo de música que se dedica a loucos e a poetas. O suor e o sangue, sobretudo o sangue, que dá cor à carne, que faltavam a um festival marcado pela água da chuva.
Em palco, quatro jarras de flores assinalavam que este ou seria um rito funerário em honra da música, que morreu e renasceu mais forte por via do som e da fúria, ou em honra do Primavera Sound, que se despediu colocando um dos nomes mais interessantes do cartaz a um dia e hora impeditivos para muita gente. Mas ali, sentados em transe na relva ou em modo headbanging, estavam os verdadeiros, estavam os que mantêm a crença na guitarra como religião. “Obrigado aos New Order por terem feito a primeira parte do nosso concerto”, chegou a brincar a baterista Sara Lund, a meio da tremenda sessão de pancadaria que os norte-americanos nos ofereceram. Por vezes, nem precisava de versos: bastava o instrumental angular, enérgico, bruto.
Perto do final, lembrariam “um amigo que não pôde estar em palco”, o baixista Vern Rumsey, tragicamente falecido em 2020. As flores, depois, seriam lançadas ao público por cada uma daquelas quatro pessoas ali em cima, enquanto o feedback sibilava e eriçava a pele. Grita-se assim: finalmente música!. Escreve-se assim: quando a terra treme há que dançar. Sente-se assim: não foi luz mas treva visível e a catarse foi correr na sua direção.
Nos anos 80, surgiu uma variante do hardcore à qual se convencionou chamar de emo, abreviação para emotional hardcore, isto é, música punk agressiva em que a temática incide mais sobre romances falhados, problemas pessoais, tudo o que seja. Anos mais tarde, o rótulo emo foi apropriado por grupos onde o eyeliner e as unhas pintadas constituíam traços característicos de quem se limitava a tocar pop/punk desinteressante (a primeira parte não tem mal nenhum, a segunda é só colocar mais mediocridade no mundo). Dentro do emo original, no entanto, estavam os Karate, banda que durou até 2005 e que regressou, no ano passado, para uma nova digressão. No Porto, não eram muitos os que conheciam a discografia dos norte-americanos, e muitos menos aqueles que estiveram no concerto que deram nesta mesma cidade, nos idos anos 90 (no final deste espetáculo, os Karate agradeceram a quem os trouxe nessa altura).
Com boa parte do público a aproveitar para queimar tempo até aos New Order, descansar sentado na relva e meter a conversa em dia, os Karate assinaram um concerto coeso, onde o que mais se destacou foram as linhas de baixo que iam saindo das colunas. Havia ali algo de extraordinário; eram elas a impelir a música para a frente, eram elas a reverberar pelos ossos. Tanto, que nos pareceu estranho quando Jeff Goddard pediu a um dos técnicos para que baixasse o volume do seu instrumento... Ouviu-se 'Gasoline' e 'Sever', vimos o vocalista e guitarrista Geoff Farina dizer que "não sabiam se as pessoas ainda gostavam deste tipo de banda", refastelámo-nos com a combustão lenta, guitarra ecoando no lusco-fusco, da sua despedida.
É por bandas como os Karate que muitos vêm ao Primavera Sound e é por bandas como eles que o continuarão a fazer.
Para abrir a tarde, não houve nada melhor que uma boa dose de PUP, mesmo que muitos prefiram gatos. Que a piada palerma não estrague a opinião: os PUP são bons, rasgam, iluminam, colocam gente no moshpit, parecem ser já uma banda essencial para quem marcou presença no Palco Plenitude, assim que bateram as cinco da tarde.
Uma bandeira transgénero em palco, um disco novo - "The Unraveling of PUPTheBand" - para apresentar, o quarteto canadiano trouxe uma dose de punk e duas de melodia, com letras cantadas como um orgulho privado, como a de 'Kids'. Stefan Babcock, vocalista e guitarrista, deu o mote pouco depois do início do concerto: "não vou falar muito, vamos só tocar o máximo de canções que conseguimos em 35 minutos". Depois disso foi a velocidade e a felicidade.
Ainda tentámos ver os Yard Act, ainda achámos graça ao facto de estarem a ensaiar a linha de baixo de 'Block Rockin' Beats', dos Chemical Brothers, mas dez minutos após a hora marcada para o concerto ainda estavam em modo soundcheck. Havia interesse em saber se são melhores ao vivo que em disco. Terá que ficar para a próxima.
O Primavera Sound Porto regressa em 2024 e já há datas: 7, 8 e 9 de junho.
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