A pessoa que veio com uma capa sobre os ombros representando Lana Del Rey enquanto Jesus Cristo deve saber de coisas que o comum dos mortais nem imagina. É que a cantora norte-americana conseguiu operar não um, mas dois milagres que deixariam os três pastorinhos estarrecidos: o primeiro foi evitar a tempestade que se previa durante a sua atuação no Palco Porto; o segundo foi fazer esquecer que foi a única cabeça de cartaz a subir ao palco no segundo dia do Primavera Sound Porto.

É certo que, se este dia foi o único a esgotar em todo o festival, deve-se em grande parte à devoção fervorosa — podemos mesmo dizer, dada a sua obra milagreira, que é “fé” — que a cantautora norte-americana gera perante os seus fãs, sendo que muitos pernoitaram junto ao recinto para reservar um espaço para vê-la de perto. No entanto, uma percentagem significativa terá feito planos para vir ao Parque da Cidade do Porto para ver os Justice, duo francês de música eletrónica que passou pela última vez por Portugal em 2018. No entanto, para esses festivaleiros houve “rien du tout”.

O caso já parecia mal parado quando o festival iniciou o seu segundo dia e o palco Vodafone encontrava-se interditado com barreiras móveis e seguranças a controlar o perímetro, vendo-se gruas a operar na estrutura. A situação foi-se agravando quando as atuações marcadas para a tarde foram sendo sucessivamente canceladas: primeiro Mutu, depois Classe Crua. Por fim, chegou a confirmação dos próprios Justice, com a pior das notícias: problemas técnicos impediriam os franceses de regressar a este mesmo palco onde tocaram em 2017, sem possibilidade de mudar de local ou horário.

As circunstâncias ainda não foram explicadas pela organização, que também não revela se o palco estará em condições para o derradeiro dia do Primavera Sound Porto. Com a honra do convento posta em causa, apenas Lana Del Rey seria capaz de salvá-la. E se salvou.

Muito se passou desde que Lizzy Grant fez a sua estreia em Portugal, em 2012, e não foi apenas o facto de ter sido há 12 anos. Na altura, a mulher que dá pelo nome artístico de Lana Del Rey tinha acabado de lançar “Born to Die”, segundo álbum e a estreia numa grande editora que a propalou para o estrelato; desde então, seguiram-se outros sete que fizeram dela não apenas uma das caras a serem esculpidas no Monte Rushmore da pop alternativa, como também um fenómeno de popularidade normalmente reservado a artistas mais mainstream.

Perante um cenário de uma velha mansão de estrela de cinema de Hollywood — com escadaria, varandas e até vegetação descontrolada —, a cantora deslizou para o palco após uma entrada orquestral como se fosse uma Norma Desmond por quem os anos não passaram, sem precisar de pedir ao Sr. DeMille o seu close-up porque as câmaras nunca pararam de gravar. Já muito se escreveu sobre a forma como Lana Del Rey mistura sensibilidades modernas com a evocação de uma era perdida da América — sobre as virtudes e as contradições de romantizar o passado da forma como ela faz —, mas quando a vemos em palco, é quase como se nada disso importasse.

O que Lana Del Rey apresenta em palco é como uma forma de cinema onde nos pede para suspender o descrédito e embarcar na ficção. O seu espetáculo está montado como se estivéssemos a assistir à rodagem do seu filme, onde cada canção é cortada  no tempo exato e requer gestos precisos: em “West Coast”, subiu à varanda acompanhada por um feixe de luz; em “Pretty When You Cry”, passou a música deitada no chão junto à sua coorte de bailarinas enquanto o efeito visual parecia fazer crer que estava caída à beira do mar.

“Hope is a dangerous thing for a woman like me to have – but I have it”

Assistimos em vários temas — particularmente em  “Ride”, com múltiplos clipes seus a passar no ecrã de fundo — como serve-se da sua própria iconografia para alimentar a fantasia, como que um trailer. O cúmulo desta postura viu-se já quase no fim, quando saiu para mudar de roupa e deixou um holograma seu a “cantar” “hope is a dangerous thing for a woman like me to have – but I have it”. De carne e osso ao virtual no espaço de uma hora — pode achar-se excessivo, infeliz até, mas ninguém poderá acusá-la de incoerência.

A ilusão da cena só se rompe quando é a própria a fazê-lo — como quando a meio de uma música faz um aparte para dirigir-se aos fãs. Nesse aspeto, Lana Del Rey fez também o seu passeio tradicional no fosso junto às filas da frente durante “Born to Die”, tirando fotografias, recebendo presentes e quase sendo abalroada por uma pessoa que conseguiu saltar a vedação. O mais provável é que tenha sido um fã especialmente zeloso e não alguém com más intenções, já que é esse o tipo de reações que desperta. Aliás, durante esse mesmo tema, o seu microfone apanhou não só a sua voz como também gritos e guinchos de excitação que se fizeram ecoar no Parque da Cidade.

Esse, felizmente, foi um caso isolado. No resto do concerto, só não ouvimos Lana Del Rey quando se calou para deixar os fãs cantarem sonoramente temas como “Summertime Sadness”, ou quando deu primazia às suas três cantoras de apoio no belíssimo momento gospel de “The Grants” e numa extensa versão de “Did You Know That There's a Tunnel Under Ocean Blvd”, tema título do seu último álbum.

De resto, Lana Del Rey esteve praticamente incólume, exercitando a voz de ave canora do seu registo mais grave e sensual aos agudos sofridos que a celebrizaram — conseguindo desdobrar-se entre a mulher madura desapontada com homens-criança mas também a jovem terrivelmente apaixonada, à beira do desvario. A única mácula, aponta-se, talvez tenha sido um excesso de descontração em alguns temas, onde as afetações que emprestou a algumas das canções fizeram-na soar estranha ou fora de tempo. Coisa pouca, no entanto.

The Last Dinner Party e Tropical Fuck Storm: duas estranhas partes de um todo

Se a teatralidade da atuação de Lana Del Rey não é exatamente a mesma praticada pela banda que a antecedeu, também não será imprudente dizer que as The Last Dinner Party provavelmente são fãs do trabalho de Lizzy Grant. O quinteto britânico — uma das, senão mesmo “a” banda com mais “hype” do Reino Unido neste momento — também é fã de letras que misturam verbosidade complicada com palavrões e referências sardónicas à cultura pop. E, tal como Del Rey, também assumem o ato de serem mulheres que reclamam para si o direito a não serem objetificadas nem minoradas por serem sensuais ou por quererem divertir-se.

A postura das The Last Dinner Party é jubilante e desafiadora face à desgraça. As próprias assumem —e isso deu controvérsia; injustificada, diga-se — que perante a descrença no futuro, a falência do Estado, a falta de oportunidades, a crise do custo de vida, preferem dançar. É de deboche que se forma a sua música, um indie rock teatral, barroco, que vai do mandolim à keytar tocada como se os Europe tivessem tido um filho com os Queen e a vocalista fosse prima da Kate Bush.

Em “Burn Alive”, a abrir o concerto, cantam sobre um amor doentio e masoquista, já em “Caesar on a TV Screen” desconstroem o poder da masculinidade frágil mascarada de forte. A vocalista, Abigail Morris, carrega a banda consigo, dançando e rodopiando com afã, cantando ora com a doçura malvada de quem tem uma faca escondida nas costas, ora com genuíno ardor. Durante uma hora, as The Last Dinner Party quase convencem-nos que toda a gente estava ali para vê-las, fosse para ajudar a cantar “Portrait of a Dead Girl” ou uma cover de “Wicked Game”, fosse para vê-las pegar nas notas do tema oficial de “Godzilla” e introduzi-las num pastiche divertido de blues rock à americana. No final, depois de Morris afirmar que este tinha sido “um dos melhores públicos” que a banda já tinha tido — não teve assim tantos, aponte-se —, o grupo atirou-se para o single que o fez ascender meteoricamente, com “Nothing Matters”.

Ali mesmo ao lado, no Palco Plenitude, assistimos ao que aconteceria se as The Last Dinner Party fossem punks da velha escola não contentes em lamentar divertidamente o declínio do mundo moderno, mas a tentar desmantelá-lo. Tropical Fuck Storm é o seu nome e, acredite-se, faz todo o sentido face ao que o quarteto — um supergrupo composto por elementos de várias bandas de culto australianas — apresenta em palco.

Tanto a nível lírico — com letras sarcásticas, distópicas e hipertrabalhadas, fazendo a concorrência parecer um livro da Anita por comparação — como sónico, o que os Tropical Fuck Storm trazem é um verdadeiro turbilhão vindo do hemisfério sul. A energia punk casa com a sonoridade noise e com um gosto especial para psicadelismo com o mesmo efeito com que uma tempestade perfeita se faz de circunstâncias pouco comuns para potenciar o seu rumo destrutivo.

Ao centro Gareth Liddiard — com uma t-shirt das Navegantes da Lua — grita e urra como quem não tomou a medicação (ou tomou-a em demasia), enquanto puxa a guitarra aos seus limites: fá-la ganir, zurrar, até mesmo soar a um trombone desafinado. Nas laterais mas com o mesmo protagonismo, Fiona Kitschin e Erica Dunn berram palavras de ordem e maltratam com igual prazer baixo e teclados. Lá atrás, diminuta mas gigante, Lauren Hammel estava a ver se saia de Portugal sem a sua bateria.

Foi desta forma que os Tropical Fuck Storm deram uma lição de como hipnotizar o público — nem todo, a moldura humana foi-se desagregando ligeiramente ao longo do concerto — ao espancá-lo até à submissão. Existe aquela célebre frase de origem incerta que é “the beatings will continue until morale improves” (“as tareias vão continuar até que a moral suba” — o quarteto fez isso mesmo e deixou os presentes a pedir por mais.

O contingente português

Sem esquecer o milagre “Del Reyano”, uma tese alternativa é que é bem possível que a chuva que ameaçou cair torrencialmente durante o dia — lembrando o que aconteceu no ano anterior —, tenha dado meia volta quando tentou interromper o concerto dos Máquina. O trio lisboeta abriu o palco Super Bock com o seu musculado rock dançável, que dá o “power” ao termo “power trio”. Mas a meio do set, ouviu-se um estrondo que não fazia parte da sua barulhenta oferta — não, era um trovão a anunciar chuva. Pouco depois, esta fez-se sentir copiosamente, obrigando a já considerável massa de pessoas que estava a vê-los a procurar abrigo, ficando apenas algumas dezenas a enfrentar o dilúvio. Será que isso bloqueou as engrenagens desta máquina? Nada disso, “a chuva não nos vai parar”, proclamou o baterista e vocalista Halison.

Tamanha demonstração de desafio pode ter intimidado a pluviosidade, que poupou André Henriques e restante banda de dar um concerto molhado no palco Plenitude. “​​Obrigado por escolherem a minha banquinha de fruta, há muita fruta por onde escolher”, afirmou. À boleia do seu excelente segundo disco “Leveza”, o cantautor — que muitos reconhecerão como vocalista e guitarrista dos Linda Martini — apresentou as suas canções sorumbáticas, exercícios que namoram com a pop sem nunca tornarem-se redondinhos. André Henriques chama os incautos com a gentileza de “Os Fantasmas de Amanhã” ou “Milagre na Óptica do Utilizador” para depois prendê-los com “De Tudo o Que Fugi” ou “De Repente”, com um clarinete oferecer um pouco de caos.

Igualmente caótico foi o final do concerto de Samuel Úria no palco Super Bock, cantando-se “Repressão” sem baterista — que veio para a frente do palco cantar — substituindo-o pelo ritmo do hino de eurodance que é “Cotton Eyed Joe”. Um dos cantautores mais consistentes e talentosos do nosso país, Úria pouco tem a provar e o que esteve a fazer neste fim de tarde foi uma sessão descontraída com centenas de amigos — chegou mesmo a estrear uma canção inédita apresentada assim: “se correr mal, a culpa também é vossa; se correr bem, a responsabilidade é daqui do maioral”. Lenço Enxuto não pôde contar com Manel Cruz como de costume, mas “Vem por Mim”, balada que normalmente não é tocada em festival, teve uma convidada muito especial: Milhanas, que pouco antes tinha estado no Palco Porto.

“Ainda bem que isto estava esgotado, senão pagavam o dobro só por este momento”, afirmou o cantor. Talvez merecesse ainda mais até, mas o valor do ingresso perdeu valor sem um palco disponível. E ainda não sabemos se no último dia do cartaz estará a postos.