Cenário: uma linha férrea. Onde, não importa. A linha em si é um símbolo, assim como o são as estradas, ou os mares, ou o céu, desde que a humanidade aprendeu a percorrê-los. Numa ideia apenas, a de viagem, cabem vastos outros conceitos: descoberta, fuga, realização, evolução, transformação, mudança. Isto para dar apenas alguns exemplos. Desde que nos conhecemos que viajamos; no mesmo dia em que olhámos para o horizonte, decidimos que o que há agora (seja onde for que esse agora se situe) não chega, e que há que buscar algo mais. O mundo pode mover-se, mas não tanto quanto nós.

E o sol, torrado, abençoa essa mesma linha férrea. Nela passa não um comboio, mas três das figuras mais importantes da história do rock do século XX – Kurt Cobain, Kim Gordon e Thurston Moore –, que a escolheram como o local ideal para darem azo a essa alegria imensa que é a de ser jovem, sem preocupações, o rumo é o mesmo que o momento. Enquanto Cobain e Gordon dançam, Moore vai debitando um rap em estilo livre, tão irónico quanto inconsequente, o género de palermices que se perdoam aos putos, especialmente se forem nossos amigos e nós tão palermas quanto eles.

Este cenário, e este rap, abrem “1991: The Year Punk Broke”, filme-documentário de Dave Markey que regista a digressão que os Sonic Youth de Gordon e Moore (e Lee Ranaldo e Steve Shelley) fizeram pela Europa nesse mesmo ano, o ano que alterou para sempre as suas vidas, e as de tantos outros que como eles foram jovens, disseram baboseiras, tiveram amigos com os quais partilhar canções e canseiras. Não só nesse como nos anos subsequentes. Uma digressão que Moore descreve, logo a seguir, como um “desafio”: «aos nossos pais, e ao governo [George H.W.] Bush».

Para ouvir enquanto lê este artigo

1991 é o ano em que o punk se tornou mainstream, pela mão do outro amigo dançante, Cobain, e os seus Nirvana. É essa a ideia presente no título. Se quisermos ceder à tentação do false friend também poderemos chamar-lhe “o ano em que o punk partiu”, nos dois sentidos que a palavra partir guarda em português: despedaçou-se em mil pedaços, passando a significar não só o que veio antes mas também o que ali estava agora, e tudo o que daí viria, e seguiu numa viagem louca, banda-sonora de uma geração a que se atribuiu uma letra, o X. Enquanto «o governo Bush» largava bombas americanas no Iraque de Saddam Hussein, uma outra explosão derrubava para sempre a indústria musical. O punk, agora com um outro nome: grunge.

“Grunge”, substantivo: fuligem, sujidade

Claro que o grunge não surgiu do nada, e a sua ligação ao punk é filial. Consiste na fusão dos três acordes originais, cuja virtude foi propagada, no fim da década de 70, por bandas como os Sex Pistols e os Ramones, com o peso do heavy metal dessa mesma década, como exposto pelos Black Sabbath ou até mesmo os Led Zeppelin. Isto é a definição básica daquilo que é o cimento da sonoridade grunge. Mas até os punks terem começado a ouvir metal (e os metaleiros a ouvir punk) houve um longo caminho a percorrer.

Teremos que recuar alguns anos para perceber como é que um Noroeste selvagem, terra de lenhadores e da Boeing, onde a meteorologia – céus cinzentos, chuvas fortes, invernos frios – é motivo de depressão e de raiva, fez de Seattle a cidade mais emblemática dos anos 90. Enquanto o punk germinava na longínqua Nova Iorque, alicerçado no hoje mítico CBGB's, Seattle via-se adormecida pela flanela que lhe ia aquecendo o corpo. O número de bandas locais contava-se pelos dedos das mãos, e a grande maioria do rock n' roll que ali chegava era estrangeiro, oriundo não só de outros estados norte-americanos como do outro lado do Atlântico. Aos jovens locais restava alguma da energia e do idealismo hippie, que teve o seu seguimento no Evergreen State College, universidade localizada em Olympia dedicada às artes e com uma oferta curricular distinta das demais: os alunos podem escolher as disciplinas que querem seguir e os seus trabalhos não são avaliados com números, mas com crítica construtiva.

A ideia de base do punk – faz-tu-mesmo, D.I.Y. (Do It Yourself) no original – não iria, no entanto, ficar confinada a um único local. De Nova Iorque partiu para o Reino Unido, do Reino Unido regressou à pátria-mãe. Os mais atentos procuravam replicar a eletricidade e o espírito nas suas próprias cidades e subúrbios. Na solarenga Califórnia, outrora terra de paz, amor e muita erva, os “filhos” do movimento hippie, a braços com as crises energéticas da década de 70, encaravam o futuro como uma promessa inexistente, tal como os Sex Pistols o cantavam: no future.

Bandas como os Germs ou os Dickies começaram a mostrar à Califórnia que havia uma outra linguagem para lá do vai ficar tudo bem, algo mais niilista, visceral. E, quando essa primeira vaga punk morreu, uma outra se apressou a continuar o seu legado: o hardcore, uma forma musical ainda mais brutal e honesta, sem o pretensiosismo que caracterizava alguns dos grupos nova-iorquinos mas com o grau certo de raiva adolescente. Se o mundo era violento e opressivo, dizia o punk, então só poderia ser contra-atacado por algo tão violento e opressivo quanto ele.

Do hardcore brotaram os Black Flag, liderados pela guitarra de Greg Ginn e pela voz maltrapilha de Henry Rollins, cuja neurose pessoal se reflectia na sua oralidade e nas letras que escrevia, repletas de ironia e desprezo, não só pela sociedade contemporânea como pela alienação a que eram votados os jovens da sua idade – não temos nada melhor para fazer que ver televisão e beber umas bejecas, grita em 'T.V. Party', encarnando o protótipo de jovem despreocupado que odiava. Formados em 1976, e após várias mudanças na sua formação, os Black Flag acabariam a editar o seminal “Damaged”, obra máxima do punk hardcore e influência para todos os movimentos que se lhe seguiriam.

Henry Rollins, Black Flag | UCLA Library Special Collections

Um encore hardcore 

Mais intenso que a árvore que lhe deu frutos, o hardcore não tardou a encontrar o seu espaço entre uma boa parte da população punk norte-americana, assim como o Oi! – mais proletário, mais avesso a experimentalismos vagos – o fez no Reino Unido. As mohawks, cabelo espetado à índio, e os casacos decorados com alfinetes de dama davam lugar a cabeças rapadas e a um modo de vestir mais sóbrio. O que estava em causa não era a moda, mas a agressividade e um sentimento de pertença. O típico jovem branco suburbano poderia agora fazer parte de uma clique, tinha um local onde expressar o seu descontentamento, esquecer a ennui típica de quem habita longe dos grandes centros de decisão e espetáculo.

Claro que, para obter esse espaço, o hardcore precisou de se expandir. Sem o apoio dos media ou do capital, as bandas da segunda vaga punk tiveram que criar os seus próprios mercados no underground. O punk britânico e o D.I.Y. haviam provado que era possível lançar música e ter público e uma carreira fora das grandes editoras; mais que a questão dos três acordes, a grande vitória do movimento punk foi ter dado origem a inúmeros selos independentes, alguns dos quais criados apenas para lançar um único single ou uma única cassete. As grandes editoras deixariam, dessa forma, de monopolizar a cultura, particularmente o rock n' roll. Ou, como diz Thurston Moore em “The Year Punk Broke”: «Temos que destruir o processo capitalista que está a destruir a cultura juvenil. E o primeiro passo é o de destruir as editoras».

A história mostrou, mais tarde, que essa era e é uma tarefa hercúlea. As editoras independentes nunca podem ou poderão rivalizar, em termos de alcance mediático, com as suas congéneres de maior dimensão. O que não quer dizer que não possam cavar o seu próprio nicho, chegar aos ouvidos de milhões de pessoas. Em “Our Band Could Be Your Life”, livro que analisa o underground norte-americano da década de 80, Michael Azerrad explica que este «adotou a noção radical de que aquilo que nos era enfiado goela abaixo pelos media não era, talvez, o que tinha mais qualidade», e que outros percursos poderiam ser trilhados. Os Black Flag, assim como a editora de Greg Ginn, a SST, foram disso exemplo, criando uma rede de ligações por todo o território dos Estados Unidos, de norte a sul, de leste a oeste. Para que a sua música pudesse chegar aos fãs, não era necessário obter qualquer tipo de financiamento exterior: bastava uma carrinha, gasolina, equipamento e um amigo em cada esquina, que lhes pudesse dispensar um espaço onde tocar e um outro onde dormir.

Tais ideias deram frutos. Os Black Flag e o hardcore chegaram a todos os cantos, despoletando cenas regionais, mostrando o que havia a fazer, e como, no que à independência cultural e musical dizia respeito. E essas lições foram absorvidas pelas bandas que se lhes seguiram, mesmo aquelas que procuravam fugir à rigidez sonora do hardcore - como os Sonic Youth, que no espaço de quatro anos se transformaram na banda independente por excelência. Oriundos de Nova Iorque, ligeiramente mais velhos que a esmagadora maioria dos apóstolos do hardcore, e donos de um background de classe média, os Sonic Youth tinham encontrado no punk um escape, mas o que realmente lhes animava o espírito era o ruído; à energia do primeiro aliavam o vasto leque de possibilidades do segundo, estando ligados à cena no wave nova-iorquina (grosso modo, “sem descrição” e em oposição à new wave, ou “nova vaga”) e ao compositor vanguardista Glenn Branca, de quem foram alunos.

Sonic Youth | DR

A minha cidade é melhor que a tua

Dando continuidade ao trabalho dos Black Flag, os Sonic Youth viriam a ser encarados, ao longo da década de 80, como “gurus” da cena independente, não só pela sua música – que até hoje não conseguiu ser imitada na perfeição – como pelo seu gosto eclético em matérias musicais. Foram eles a abrir as portas de muitas outras bandas, de Chicago a Los Angeles, de Nova Iorque a Seattle. Até porque foram dos poucos a manter um lado ético, mesmo quando as grandes editoras procuraram obter uma fatia do muito que o underground norte-americano construiu: quando assinaram pela Geffen, já em 1990, o seu contrato estipulava que os Sonic Youth se reservavam no direito de contratar outras bandas para esse mesmo selo – trickle-down economics adaptada ao punk rock. Uma das bandas que levaram para a Geffen respondia pelo nome “Nirvana”.

Antes disso, que deu origem à “explosão” grunge como a conhecemos, outras bandas (Hüsker Dü, The Replacements) e editoras (Alternative Tentacles, Touch and Go) foram explorando as possibilidades geradas pelo mercado underground, apoiadas também pelos meios de comunicação que foram surgindo: fanzines e revistas independentes, que documentavam tudo aquilo que os grandes conglomerados media ignoravam. Criadas sobretudo por fãs, e muitas vezes com uma tiragem irrisória, as fanzines foram ainda assim extremamente importantes na disseminação do punk e das bandas por este influenciadas, trocando correspondência e cassetes com pessoas e grupos de pessoas com a mesma mentalidade. Uma delas era Bruce Pavitt, nascido em Chicago em 1959, e que ainda jovem se mudou para Olympia para frequentar o Evergreen State College.

Através de uma fanzine intitulada “Subterranean Pop”, e que mais tarde se tornaria na editora Sub Pop – a madrinha do grunge –, Pavitt começou a contatar com jovens de todo o país, escrevendo resenhas e chamando a atenção para as bandas que mais o interessavam e que, como todos os melómanos, achava que toda a população deveria escutar. Sem esquecer, naturalmente, a sua própria cidade. «Criei a Sub Pop porque acredito na localização da cultura», afirmaria anos depois. E a cultura chegaria, por fim, a Seattle, ainda que evoluída. Quando os Black Flag atuaram na região Noroeste, em 1984, a sua música já havia trocado a velocidade hardcore pela lentidão dos riffs sujos dos Black Sabbath – o que explica o porquê de o punk ter sido obrigado a chamar-se grunge; era uma sonoridade diferente, mais técnica, de combustão lenta.

Por esta altura já alguns grupos punk começavam a criar o seu próprio espaço dentro de Seattle, beneficiando também da existência da Showbox, uma sala de espetáculos que dava palco a diferentes formas de expressão musical. E sonhando, talvez, com Jimi Hendrix; foi nesta cidade que o famoso guitarrista nasceu e foi aqui que começou a desenvolver a sua carreira, ainda na adolescência, antes de ser obrigado a cumprir serviço militar e antes de se mudar para o Reino Unido, onde se tornou numa estrela rock. Mesmo que a economia local ainda não se pudesse comparar à de outros grandes centros urbanos dos Estados Unidos, a crise já não se fazia sentir tanto, mas dava lugar à anomia. «Um amigo meu diz que Seattle é “uma cidade à procura de uma tomada onde ligar a televisão”», afirma Pavitt numa das edições da sua fanzine. A cultura ainda não havia encontrado a sua identidade; o punk existia, mas como emulação do que outras regiões viviam.

Os Black Flag foram, por isso, uma necessidade. «Há que lembrar o quão terrível era a cena», escreve Ann Powers, crítica musical da rádio NPR, na coleção “Sub Pop USA”. «As bandas tocavam em centros comunitários, galerias de arte, cinemas antigos ou bares; mas o público que as via ao vivo contava-se pelos dedos de duas mãos». Após a sua passagem da banda californiana, outras formas de fazer música punk começaram a brotar por Seattle – porque, como acrescenta Powers, «quando nada se tem, nada há a perder». Grupos como os U-Men, das primeiras bandas de Seattle a percorrer os Estados Unidos, foram um elemento chave na criação do “Som de Seattle”, assim como os Melvins, cuja fusão de punk e metal deu origem a um outro subgénero, o sludge, e os Green River, cujos elementos formariam, mais tarde, os Mudhoney e os Pearl Jam.

Um mito “americano”

Formados em 1984, os Green River tinham a sua origem noutros grupos menos conhecidos e menos idiossincráticos, alimentados a hardcore. O seu EP de estreia, “Come On Down”, pode não ter sido um grande sucesso comercial (até porque o seu lançamento foi adiado quando a banda se preparava para o mostrar numa digressão pelos Estados Unidos), mas a sua importância não pode ser negada; foi com este disco que os Sonic Youth passaram a conhecer Seattle e o que por lá se passava. E, naquela altura, ser amigo dos Sonic Youth era passar a ter uma série de portas abertas dentro do underground. 

Os Green River são hoje vistos como “pais” da sonoridade grunge, ainda que esse seja um rótulo que muitos dos que marcaram a cena de Seattle rejeitem por completo. Não é possível, afinal de contas, traçar um paralelo total entre aquilo a que soam os Pearl Jam e os Mudhoney e aquilo a que soam os Nirvana, os Soundgarden e os Alice In Chains. As ligações entre todos estes artistas são sobretudo geográficas. Mas grunge é, apesar de tudo, fruto do marketing; a primeira utilização da palavra, para descrever a música de Seattle, foi feita por Pavitt ao editar “Dry As a Bone”, segundo EP dos Green River, através da Sub Pop.

Green River | Charles Peterson via SubPop

Começava assim a formar-se uma identidade em torno de Seattle. O relativo isolamento em que vivia ia-se esbatendo, fruto das ligações criadas pelo underground musical. E nascia, até, uma certa sensação de orgulho. «É um chauvinismo regional, do mesmo género que existe no desporto», explica Pavitt em “Our Band Could Be Your Life”. «As pessoas interessam-se por isso. É do género, 'vão-se lixar, somos de Seattle, e estamo-nos nas tintas para que os media estejam em Los Angeles; vamos criar os nossos».

A ideia de “localização da cultura” tão propalada por Pavitt não era nova. Foi assim, aliás, que muitos movimentos musicais se deram a conhecer ao mundo: Memphis tinha a soul, Nashville a música country, e Manchester será para sempre associada ao pós-punk negro dos Joy Division. Para que o “Som de Seattle” pudesse ser uma realidade, havia que adotar um certo empreendedorismo. A Sub Pop foi fértil nesse aspeto, comercializando não apenas música, mas uma imagem: algo que pudesse ser facilmente identificável, algo que alguém situado a milhares de quilómetros de Seattle pudesse apontar com exatidão a sua origem. No campo musical, a Sub Pop obteve a ajuda preciosa do produtor Jack Endino, que com poucos recursos conseguia extrair de uma banda da Sub Pop aquilo que a editora queria: uma sonoridade consistente, mesmo que não idêntica entre todos os seus projetos. E, de Inglaterra, chegou o crítico musical Everett True, que entrou em contacto com Seattle após um convite feito (com despesas todas pagas) por Pavitt e pelo seu sócio, Jonathan Poneman, para que documentasse os talentos que iam emergindo do seu núcleo.

Everett True, que mais tarde escreveria a biografia dos Nirvana, foi o homem que mais ajudou a vender Seattle além-fronteiras. Até porque foi o que mais ajudou à construção de uma mitologia muito própria em torno do Noroeste, região então desconhecida até para muitos norte-americanos. «A minha ideia», conta Pavitt em “Everybody Loves Our Town”, uma história oral do grunge, «era a de que os europeus se entusiasmariam mais com a música vinda dos Estados Unidos se, na sua perspetiva, as bandas parecessem autenticamente “americanas”. Os europeus não encaram os norte-americanos como alguém refinado; acham-nos espirituosos, mas algo rudes».

Partindo daqui, as bandas de Seattle passaram a ter um arquétipo: todas elas seriam formadas por jovens das classes trabalhadoras, lenhadores, talhantes, gente que vestia camisas de flanelas e botas pesadas. As palavras de Everett True para a revista “Melody Maker” ajudaram a vender o peixe grunge, apenas alguns anos após os Sonic Youth também terem encontrado um público fiel na Europa, quando no seu país eram alvo de ridículo. Nada disto era verdade, naturalmente: muitos músicos grunge eram oriundos de famílias que, mesmo não ricas, levavam uma vida confortável. E alguns tinham mesmo frequentado a universidade, longe do estereótipo do artista grunge como alguém menos dado à inteligência e mais fanático das drogas.

Contra o capital, o metal

Um deles, Mark Arm, acabaria como vocalista dos Mudhoney já depois da experiência semi-falhada (porque o sucesso comercial lhes fugiu) Green River. Em boa hora o fez, porque logo ao primeiro single – 'Touch Me I'm Sick', editado pela Sub Pop – os Mudhoney conseguiram ter aquele que foi o primeiro grande hino de Seattle. Ao humor negro presente nas letras juntava-se a distorção das guitarras, uma linha de baixo simples e eficaz e um som de bateria enérgico, tudo misturado num formato rock n' roll sujo. As rádios universitárias, que nos anos 80 também em muito contribuíram para a disseminação de sonoridades mais “alternativas”, não o deixaram de tocar. O trabalho realizado por todos os envolvidos estava feito: Seattle era finalmente um ponto no mapa cultural.

Mudhoney, 2018 via SubPop | DR

Percebendo que algo de muito importante (financeiramente falando...) se passava, as grandes editoras apontaram baterias para Seattle. Os Soundgarden, do falecido Chris Cornell, foram os primeiros a assinar por uma major, a A&M. Seguiram-se-lhes os Screaming Trees, de Mark Lanegan, e os Alice In Chains, a mais metálica das bandas de Seattle. Para Nick Terzo, representante da Columbia Records, 'Man in the Box', tema clássico destes últimos, «abriu dezenas de portas». «Eles foram a primeira banda desse movimento a ter sucesso [comercial]. O disco [“Facelift”] tinha saído em agosto de 1990, mas a rádio começou a passar a 'Man in the Box' em 1991. E, pouco depois, a 'Would?' abriu ainda mais portas dentro da rádio alternativa – e os Nirvana entraram a rasgar».

Todos os relatos da época apontam os Nirvana como uma espécie de irmão mais novo da cena grunge. Kurt Cobain era apenas um jovem como tantos outros, um grande fã de música que, mesmo sendo oriundo de Aberdeen, a 130 quilómetros de Seattle, se sentia mais em casa aqui que na sua terra-natal. Quando os Nirvana editaram 'Love Buzz', o seu primeiro single, em 1988, foi preciso convencer Pavitt a atribuir-lhes o selo da Sub Pop; ninguém poderia imaginar que, meros três anos depois, os Nirvana encabeçassem um dos maiores movimentos culturais da história do rock, ou que se transformassem no grupo preferido de milhões de jovens de todo o mundo. A banda-sonora da Geração X, «um grupo de miúdos que cresceu numa época relativamente confortável, cujos pais criaram um mundo onde não podiam viver», como a define Kim Gordon.

«O ano de 1981 foi extremamente importante para o rock underground norte-americano moderno», escreve Azerrad, «mas seriam precisos anos até que alguém percebesse o que havia sido plantado». Dez anos depois, o mundo finalmente percebeu: o punk chegou ao mainstream, reinventado, partido, pronto a cumprir por fim um desígnio insondável, pronto a chegar à sua meta após anos e anos de viagem por linhas férreas, voos transatlânticos, carrinhas velhas com quatro ou cinco indivíduos nela amontoados. A aposta das grandes editoras nesta nova cena era o resultado, também, de uma mudança de paradigma dentro da cena independente: já não se tratava de uma rede de fanáticos prenhes de verve, mas de uma indústria à conquista de outras posições de mercado.

1991: E tudo o grunge mudou

'Smells Like Teen Spirit', a canção, e “Nevermind”, o álbum, foram os catalisadores. Muito se escreveu, e ainda escreverá, acerca do impacto meteórico dos Nirvana no mundo do rock, mas poucos o resumirão tão bem quanto a jornalista Gina Arnold: «ganhámos». Por “nós”, Gina refere-se a tudo o que veio antes: os punks dos anos 70, as bandas dos anos 80, as editoras independentes, as fanzines, os jovens alienados e detidos nos seus subúrbios, as pequenas lojas de discos e toda e qualquer sala por onde uma banda punk tenha passado e tocado para não mais que uma dúzia de pessoas. A chegada do underground ao mainstream era a vitória de quem preservou, de quem apelou à localização e regionalização, de quem lutou por uma outra cultura que não apenas a popular. «1991 é o ano em que o punk chega finalmente à consciência de massas da sociedade global», clama Thurston Moore em “The Year Punk Broke”.

Mas esse mesmo sucesso era uma vitória de Pirro. Após anos a cavalgar contra o capital, o punk era por fim cooptado por esse mesmo capital. A cena e o “Som de Seattle” passaram a não ser mais que um produto, uma mercadoria. Seattle passou a ser moda e não modo. Menos punks que os seus antecessores, dezenas de jovens mudaram-se para a cidade no início dos anos 90, à procura do seu próprio lugar ao sol. Em “Hype!”, documentário de Doug Prey sobre o grunge, Eddie Vedder, o rosto mais visível dos Pearl Jam, fala numa certa perda da liberdade criativa dos músicos assim que a meta passou a ser comercial; em “Our Band Could Be Your Life”, Guy Picciotto, dos Fugazi (estertor do pós-hardcore e da independência editorial), define 1991 como o ano em que tudo mudou. «Antes, as pessoas falavam sobre música e ideais. Depois disso, as pessoas passaram a falar sobre dinheiro e negócios», lamenta.

O fenómeno grunge fez de Seattle a cidade mais badalada do mundo durante a década de 90, mas comprometeu seriamente todos os ideais punk de onde tinha surgido. Os artistas também se ressentiram, e permanece a ideia de que as suas melhores obras foram criadas ainda antes de serem engolidos pelo mercado – mesmo que “Nevermind” e Kurt Cobain tenham transportado nomes como os Meat Puppets, os Vaselines ou Daniel Johnston para as prateleiras de todo o bom coleccionador de discos. Nem Hollywood se escondeu do grunge ou de Seattle: em 1992, Cameron Crowe estreou “Singles”, comédia romântica passada na cidade e onde uma das personagens (interpretada por Matt Dillon) é um músico pertencente à cena, e um ano mais tarde Tom Hanks e Meg Ryan foram nomeados para um Globo de Ouro pelas suas performances em “Sintonia de Amor”, cujo título em inglês é “Sleepless in Seattle”. 

Hoje, “grunge” é uma palavra encarada com alguma suspeição. Foi o que impulsionou os Nirvana, mas o que também diluiu o rock independente, tornando-o presa fácil das garras do mainstream. Foi o que tornou grupos como os Soundgarden, Alice In Chains ou Mudhoney em algo imortal, mas também foi o que deu origem a dezenas de conjuntos de garagem inenarráveis. Foi o que mudou o mundo – mas não foi “o fim da história”, para parafrasear o livro de 1992 de Francis Fukuyama. As sementes que o punk plantou brotaram em 1991, mas as sementes de 1991, a ideia de que é possível ter sucesso e independência ao mesmo tempo, ainda estão por se cumprir numa indústria que tem hoje no streaming o seu principal sustento. Há anos que se fala na possibilidade de vir a nascer um novo Kurt Cobain. O melhor será falar na possibilidade de vir a nascer outra cena e outra cidade com tanto impacto como a de Seattle. A homogeneização da cultura não pode ser a meta. A viagem está, e estará sempre, ainda por fazer.


Ao longo de 2021, o SAPO24 irá lançar uma série de artigos focados no grunge, fenómeno e género musical que atingiu o seu apogeu há precisamente trinta anos: “1991: E Tudo o Grunge Mudou”. Acompanhe-nos nesta viagem.

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