Como se pinta a fraternidade? Qual o som de um abraço, a cor de um toque. Como se sentem as lágrimas apenas vistas, ou o suor esquecido no chão? O coreógrafo Victor Hugo Pontes imaginou, ainda antes da pandemia, uma história sobre um “aqui” e um “agora”. Não incluiu no imaginário a punição dos toques, a retração das proximidades, o medo dos fluídos. Pensou numa relação, numa família, três irmãos, e viu-se a repensá-los, com uma mão cheia de gente, para enfrentar aquilo a que chama “anomalia” — o tempo que insistem dizer “novo normal”, mesmo que novo já não seja e normal nunca tenha sido.

Depois de meses parado, pegou num texto pedido ao escritor Gonçalo M. Tavares e, com música de Joana Gama e Luís Fernandes, fez dele uma homenagem ao tempo prévio: quando o toque não era pecado e o abraço andava despenalizado. O Teatro Viriato, em Viseu, prepara-se assim para o regresso de mangas arregaçadas com uma nova temporada, que arranca esta sexta-feira, 18 de setembro, com a estreia de “Os Três Irmãos”, às 21:30 (os bilhetes custam 10 euros e estão disponíveis aqui).

Dinis Duarte, Paulo Mota e Valter Fernandes dão corpo a Abelard, Adler e Hadrian, imaginados por Gonçalo, que, "quando se encontram naquele não-lugar, procuram o rasto dos seus pais, marcam a giz a sua ausência, lavam-se, comem juntos à mesa, carregam os corpos uns dos outros em sacrifício ritualizado, carregam-se aos ombros, vivem em fuga, praticam o jogo perigoso do encontro com o passado", descreve a sinopse.

"Abelard, Adler e Hadrian tentam fazer a sua ligação à terra e sobreviver à existência uns dos outros, mesmo se esta houver sido esburacada a berbequim, enrodilhada numa trouxa de roupa, transportada num carrinho de mão".

O espetáculo de dança conta com coprodução da Nome próprio, da Casa das Artes de VN Famalicão, do Cineteatro Louletano, do São Luiz Teatro Municipal, do Teatro Municipal do Porto e do Teatro Viriato. Depois de estar dois dias em Viseu, a nova criação de Victor Hugo Pontes será apresentada no São Luiz Teatro Municipal, de 25 a 28 de fevereiro (2021), e no Festival Dias da Dança, do Teatro Municipal do Porto, de 30 de abril a 01 de maio (2021). Ainda estará em Famalicão, antes, de, já nos primeiros meses de 2022, chegar a Loulé.

Antes da estreia, Victor Hugo Pontes falou com o SAPO24 — à distância de uma chamada de telefone — sobre a criação pré-pandémica e a encenação pós-pandémica. Sobre as linguagens e as materializações de uma arte que diz sem dizer, que provoca, falando do banal num tempo extraordinário.

Como pode uma arte corporal tornar um texto visível?

O corpo fala de muitas formas: com o corpo podemos dizer muita coisa — com as palavras também, mas são sempre muito mais concretas. O corpo é muito mais plástico, mais aberto, muito mais poético.

Aqui, o texto do autor está presente: o público tem acesso ao próprio texto durante o espetáculo. Ele não é verbalizado nunca pelos bailarinos, mas está presente, esse dispositivo está a nu. De certa forma, o público pode perceber como é que faço a tradução da linguagem escrita para a linguagem coreográfica.

É exatamente essa a proposta conceptual deste espetáculo: como se passa das palavras para os gestos; e ele está disponível para o espectador também.

Enquanto noutros dois trabalhos meus anteriores, fiz essa tradução da linguagem do autor para a coreográfica, mas a partir de textos clássicos e que o público conhecia — na peça "Se alguma vez precisares da minha vida vem e toma", em que peguei n'"A Gaivota", do Anton Tchekhov, ou no drama  em que parti das "Seis personagens à procura de um autor", do Luigi Pirandello, havia essa tradução, mas era feita mais livremente e são obras clássicas que grande parte dos espectadores conhecem, e mesmo que não conhecessem, teriam sempre uma outra interpretação do objeto artístico que está a ver, muito mais poético, porque não existem as palavras.

Aqui, quis pôr a nu a transposição das palavras para os gestos: o público pode seguir as duas coisas ao mesmo tempo e pode optar por ler o texto ou ver a coreografia, ou ir alternando entre uma coisa e outra.

Como se chega ao Gonçalo e diz "quero um texto para isto"?

Começou quase mutuamente: primeiro, porque nós já tínhamos falado, já nos tínhamos encontrado e ele manifestara esse desejo de escrever para eu dirigir. Portanto, a questão foi mesmo muito natural. Senti que seria o momento e desafiei-o para o fazer para este projeto.

Tenho trabalhado com elencos muito grandes, com muitos intérpretes, e queria fazer uma peça com menos intérpretes — três, foi logo esse o número que me surgiu e com o qual eu queria trabalhar.

Foi este o ponto de partida, dizer ao Gonçalo: "gostava de que me escrevesses um texto para três intérpretes masculinos". Depois fomos falando sobre o que poderia ser, sendo que a origem seria o "aqui" e o "agora" — nunca esperaríamos que este "aqui" e "agora" fosse o "aqui" e "agora" que estamos a viver nos dias de hoje [pandemia de covid-19]  —, e durante a quarentena, quando o Gonçalo estava no processo de escrita questionámo-nos se falaríamos [da covid-19] ou não: eu gostava de falar de família e, então, chegámos à ideia, ao conceito de que eles seriam três irmãos, e foi daí que surgiu o título do próprio espetáculo.

Como é pegar num texto do Gonçalo M. Tavares?

Primeiro, foi um grande desafio — mas foi um desafio a que me propus logo desde o início, a partir do momento em que convidei o Gonçalo para este projeto e também o desafiei a ele a escrever para estes três bailarinos especificamente.

Depois, é tentar entrar no universo do Gonçalo M. Tavares, tentar descortinar o que está nas entrelinhas da escrita e passar isso para a ação física, o movimento, a dança, nestes três corpos no palco, em relação com o dispositivo cénico.

E onde entra a música?

A dança está muito associada à música e para além de este trabalho de dança partir de um texto original, desafiei a Joana Gama, pianista, e o Luís Fernandes, músico que trabalha com eletrónica, a construirem a banda sonora deste espetáculo e é a primeira incursão deles neste tipo de construção ou colaboração para as artes performativas. Eles têm feito espetáculos, mas concertos e não propriamente criar para outros criadores.

Como se faz o briefing? O que se pede a um músico?

Primeiro, parte-se muito com ambientes. Eles já têm uma sonoridade específica, fui ao encontro deles porque achava que a sonoridade deles se encaixa naquilo que eu acho que o espetáculo pode ser. Depois, acaba muito por haver um diálogo de ambientes, dizer que tipo de ambiente gostava de que tivesse, que tipo de paisagem, se é uma coisa mais interventiva, uma coisa com ritmo, ou uma coisa mais alegre, mais sombria, mais nostálgica... Varia muito e vai-se dando quase estas introduções. Às mostram-se exemplos de outras pessoas, ou dos próprios, a dizer "isto que fizeste aqui podia perfeitamente servir esta cena", depois as pessoas não querem repetir a mesma coisa e constroem outra.

Depois, vão assistindo aos ensaios e propondo. É uma construção feita em comunhão e em colaboração, em que depois também  a música deles me inspira para fazer o movimento seguinte, ou a cena seguinte — vai sendo sempre uma contaminação de parte a parte, se bem que aqui também tínhamos o texto do Gonçalo, que foi a primeira coisa a ser partilhada como inspiração para a construção do próprio universo da peça.

A dança é intelectualmente acessível? O teatro ou o cinema quase sempre se veem diretamente; a dança também?

Sim, mas não é tão concreta. É como a pintura: se olharmos para a realista ou a abstrata, na primeira, olhamos e conseguimos identificar logo se temos um jardim, duas pessoas nuas e três senhores à volta e sabemos que estamos no "Le Déjeuner sur l'herbe", e conseguimos reconhecer qual é aquela situação. Olhamos para um Jackson Pollock, no  expressionismo abstrato, em que temos um gesto de expressão onde nada é definido, conseguimos perceber aquele gesto, quando olhamos para aquilo também nos diz coisas e nos leva a refletir, podemos ir para muitos lugares, mas não é tão concreto e não sendo tão concreto, deixa muito mais espaço ao espetador para ele próprio decidir o que é que aquilo é, ele é muito mais ativo, e acaba por se muito mais emocional também.

Que público esperam?

Curiosamente, costumo ter bastante público nos meus trabalhos e tenho já pessoas que seguem aquilo que eu faço e que acompanham o meu percurso e que também de certa forma reconhece a minha linguagem e já começa a reconhecer os códigos e a forma de eu trabalhar.

Por outro lado, sinto que existe uma vontade. Apesar de as pessoas estarem com medo  de sair de casa e de tudo o que envolve estes espaços públicos e o contacto com outras pessoas, o que acontece é que as lotações estão muito reduzidas neste momento. Portanto, muito facilmente os espetáculos se esgotam.

Neste momento estou mais preocupado com isso, porque rapidamente esgota. Falo como espectador, porque tenho tentado ir ver outros espetáculos e há alguns em que tinha a certeza de que lá chegava  e tinha bilhete, porque a sala era bastante grande e tinha  essa capacidade, e, de momento, sou confrontado exatamente com o contrário: chego e já está esgotado.

O que é regressar? E como se regressa depois de tanto tempo parado?

Primeiro, foi um grande entusiasmo, uma grande descompressão poder voltar, podermo-nos relacionar outra vez, estar no estúdio, tentar sentir o corpo outra vez. Há um dos bailarinos, o Dinis Duarte, que no primeiro ensaio disse: "parecia que tinha o corpo num ilha e tive de ir lá buscá-lo de novo".

A sensação era um bocado essa, que de repente tínhamos perdido também o corpo. Então, era um novo reconhecimento, porque durante a quarentena, tanto eu como os. bailarinos com quem estou a trabalhar não é que fizéssemos uma grande atividade física. Houve mesmo esta não-vontade, inoperância de trabalhar fisicamente — não havia essa motivação e acabámos mesmo por nos esquecer do corpo.

Este voltar foi uma grande descompressão, a tentar perceber que corpo era o nosso e como ele se estava a movimentar depois de tanto tempo em inação — ou confinado às paredes de uma casa. Foi tentar voltar a reconhecer que corpo era, tentar torná-lo ativo, torná-lo presente outra vez. Mas isto foi uma sensação sempre muito boa. Claro que tínhamos todas as contingências: não podia haver proximidade, tínhamos de manter a distância.

Isto manteve-se durante as primeiras semanas, mas a certa altura percebemos: pronto, vocês são três irmãos e em família pode haver proximidade, as pessoas coabitam — e resolvemos transformar exatamente nisso. Também trabalhamos em residência artística, portanto estivemos este tempo todo juntos e resolvemos começar a ter proximidade, a estar próximos. Na peça existia toque — todas essas contingências iniciais, do que não poderia acontecer, acabámos por ultrapassá-las desta forma, na medida em que começámos a viver em residência artística e por isso é que na peça existe essa proximidade.

A nossa memória coletiva ainda é muito mais forte no tempo em que nós nos tocávamos e nos podíamos tocar.

Não existe o risco de este produto artístico ser anacrónico, numa altura em que o toque é praticamente proibido?

Existe — mas seria muito mais anacrónico se três irmãos não se tocassem e não se relacionassem e não tivessem proximidade. A nossa memória coletiva ainda é muito mais forte no tempo em que nós nos tocávamos e nos podíamos tocar. Estar a fazer uma peça onde não existe essa proximidade parece-me quase ficção, porque acho que ainda estamos a viver numa anomalia: o tempo em que vivemos não é de normalidade. Não gosto de lhe chamar "a nova normalidade", acho que vivemos numa anomalia, até voltarmos a um outro momento.

Portanto, quando se coloca em cena esse afastamento, essa não-proximidade, parece que estamos a ficcionar algo, porque a nossa cabeça ainda não processa isto dessa forma, como sendo real. Colocado em cena, parece uma ficção e não a realidade com que estamos a ser confrontados neste momento.

Não nos podemos tocar, não nos podemos aproximar — isso colocado em cena parece-me demasiado. Poderia encontrar mecanismos para que isso acontecesse, mas o projeto não foi nesse sentido e eu também gostei de que não tivesse ido. A certa altura achei que não era esse o caminho e que, tendo todos os cuidados, preferia trabalhar com a memória do que são os relacionamentos e as relações e a proximidade e que dança é esta, em que existe toque e suor.

É quase impossível, na dança, não haver toque: ainda tentámos nas primeiras semanas e, passadas duas horas, o chão do estúdio estava completamente ensopado do suor — e ou eles não saíam de uma área de um ou dois metros quadrados, ou a seguir já estavam a tocar com as mãos no suor. E se estão a tocar com as mãos no suor do chão, porque não tocam no corpo?

A certa altura decidimos que tínhamos mesmo de assumir que somos família e que vivemos juntos — e vivemos, na realidade — e assumir esse comportamento. Curiosamente, a peça chama-se "Três irmãos", portanto, eles são uma família fictícia, mas na realidade tiveram também de o assumir; tornar-se família, coabitar nesta anomalia.

Há pouco dizia que esta peça começou a ser pensada ainda antes da necessidade de isolamento. O processo sofreu depois alguma mutação, foi obrigado a mudar a linguagem do espetáculo?

Não sofreu absolutamente nada. O início dos ensaios estava programado para 6 de julho, e nessa altura já era possível trabalharmos, já era possível estarmos juntos, ocupar espaços. Antes disso, estavam para acontecer umas sessões, mas que acabaram por não acontecer — foi um semana de ensaios que estava para acontecer inicialmente e não aconteceu, foi a única alteração que existiu, fora isso, não teve grande alteração.

De certa forma, não saímos muito prejudicados. Agora, esperemos conseguir apresentar o projeto e que não aconteça nada, porque estamos sempre nesta iminência do perigo, de alguém poder estar contaminado e de o teatro ter de fechar e não se poder apresentar. Isso é um perigo real — a qualquer instante pode acontecer.

A pandemia revelou completamente a fragilidade dos artistas; colocou-nos a nu e sem motivação para fazer absolutamente nada.

Em termos práticos, o que significou estar este tempo todo parado?

Foi muito difícil — acho que é essa a palavra. Foi difícil porque a incerteza era muito grande, vivíamos no desconhecido, não conhecíamos o futuro, não conseguíamos perspetivar o que era esse futuro e foi um momento muito complicado, foi perceber o que vai acontecer a partir de agora.

O facto de não sabermos quando poderíamos regressar, como poderíamos regressar, as condições que nós não tínhamos — e continuamos a não ter nenhum tipo de apoios por parte do ministério [da Cultura] —, deixou-nos numa situação muito, muito frágil, que revelou completamente a fragilidade dos artistas; colocou-nos a nu e sem motivação para fazer absolutamente nada. Não foi um período em que uma pessoa esteve em casa e teve oportunidade de ler imenso e se inspirar o que quer que seja.

A inspiração leva-nos depois a perspetivar a materialização dessas ideias: e, quando não temos ideia se vai ser possível essa materialização — e de que forma —, é muito frustrante, porque estamos a viver no escuro e não sabemos quando a luz vai acender. Não nos adianta estar a imaginar uma festa quando não sabemos se vamos ter eletricidade. Foi mesmo muito difícil viver nessa incerteza.

Trabalhar num teatro é um ato coletivo, há esta partilha com os bailarinos, mas também com os músicos, o cenógrafo, o desenhador de luz — é uma equipa que constrói um espetáculo e de repente uma pessoa vê-se confinada em casa, sozinha, a tentar fazer alguma coisa. Para quem está muito habituado a trabalhar em grupo, ficar de repente reduzido a um só elemento, foi muito difícil.

Qual será a vida desta peça?

Este espetáculo tem uma vida longa, mas espalhada: um bocadinho também por força da pandemia, porque há coisas que passaram deste ano para o próximo, com reagendamentos.

Estreamos agora no Teatro Viriato, estaremos em fevereiro no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, em maio estaremos no Teatro Municipal do Porto, depois passaremos pela Casa das Artes de Famalicão e, no início do primeiro trimestre de 2022, estaremos em Loulé, no Cineteatro Louletano.

Isto são as datas já fechadas com os nossos coprodutores, mas espero que depois o espetáculo ainda possa ser apresentado noutras cidades. Vai depender muito também dos reagendamentos e de o espetáculo estrear e outros programadores verem e terem interesse em acolhê-lo.