“I'm usually homeboys with the same niggas I'm rhymin' with
But this is hip-hop, and them niggas should know what time it is
(...)
I got love for you all, but I'm tryna murder you niggas
Tryna make sure your core fans never heard of you niggas
They don't wanna hear not one more noun or verb from you niggas
What is competition? I'm tryna raise the bar high”
Foi com estas palavras que Kendrick Lamar tomou o mundo do rap de assalto em 2013. Convidado a participar na canção “Control”, de Big Sean, o rapper de Compton aproveitou a oportunidade para declarar guerra aos seus pares, dizendo ter “amor por eles” mas que os estava “a tentar matar” metaforicamente — ou seja, estava abertamente a dizer ser melhor que eles e que queria derrotá-los. “O que é competição? Estou a tentar elevar a parada”, afirma neste tema. São 11 os outros artistas que Lamar menciona diretamente em “Control”, como J. Cole, Pusha T, A$AP Rocky e Tyler the Creator. Apenas um deles, porém, viria a protagonizar a mais acirrada batalha que o rap — e, podemos supor, a música em geral — já viu: Drake.
O apelo em “Control” ao combate lírico podia não ter passado disso mesmo. Em retrospetiva, no entanto, foi a semente lançada há 11 anos que floresceu numa guerra aberta. Nas últimas semanas, Kendrick Lamar e Drake lançaram músicas que deixaram a internet num frenesim, não só porque esta era uma disputa há muito temida entre dois dos maiores artistas do mundo, mas porque foi o primeiro grande arrufo do género na era das redes sociais, onde cada farpa é escalpelizada, cada indireta alvo de investigação.
O mundo do rap não é alheio a rivalidades, sendo pródigo em canções polvilhadas de insultos ora subtis, ora diretos, a outros artistas. No entanto, aquilo que começou por ser descartado no final de abril como “uma data de tipos ricos a discutir entre si”, acabou numa batalha suja e até chocante, com trocas de acusações de desonestidade, falta de integridade artística, infidelidade, violência doméstica e pedofilia.
De um lado, Drake, o antigo ator canadiano da série juvenil “Degrassi” antes conhecido apenas pelo nome Aubrey Graham, hoje o artista masculino com mais streams de sempre no Spotify, dono de cinco Grammys e a um êxito de ultrapassar Michael Jackson no lugar de homem com mais canções no topo da tabela Billboard. Do outro, Kendrick Lamar, rapper de Compton, na Califórnia, “voz de uma geração” que já ganhou 17 Grammys e é o único músico a receber um Pulitzer fora do jazz e da música clássica.
Drake representa o rap mais sintonizado com a música pop, indo beber aos sons do momento e lançando álbuns a um ritmo constante, o que se foi refletindo no seu sucesso comercial. Já Lamar é um tipo de artista mais ponderado, com lançamentos espaçados e temas líricos mais profundos, indo desde o racismo e a experiência negra nas margens da sociedade até aos impactos que isso tem na mente de quem vive nessas condições. À partida, tanto Drake quanto Lamar não precisariam de se enfrentar, representando esferas distintas do mesmo género musical. No entanto, ambos acabaram por ter “beef” entre si.
Uma curta história do “beef”
Ao fim de contas, o que é ter um “beef?” Trata-se de guardar rancor, ressentimento, cultivar uma disputa que vai do mero desentendimento ao ódio figadal e que pode ser tida tanto publicamente como atrás de portas. A expressão existe há séculos, mas, apesar de lhe ser desconhecida a origem, hoje em dia é unânime que a sua aceção moderna decorre do rap. A forma como se materializa num género musical como este é simples: os intervenientes atacam-se mutuamente através de canções — ou, recorrendo ao jargão, “diss tracks”. Enviar farpas aos rivais através de músicas não é nada de novo nem exclusivo ao rap, mas foi aqui que se tornou uma arte.
Um dos pilares deste género musical é a cultura de autopromoção e, como tal, a tendência é que cada rapper se apresente como uma versão exagerada de si mesmo (“o melhor”, “o mais talentoso”, “o mais rico”, “o mais mulherengo”) — com inúmeras exceções, note-se, já que muitos artistas optam antes por uma faceta mais ativista e politicamente consciente. Além disso, falamos de um género musical cuja função como elevador social tem sido notória desde a sua criação no final dos anos 70. Daí que algumas das suas principais figuras tenham sido, e sejam, homens (principalmente) e mulheres que descrevem as dificuldades que tiveram ao crescer em meios pobres e estigmatizados e que se regozijam do estatuto de vida que conseguiram atingir através da sua música.
Uma das regras tácitas do rap mainstream é que é assumido entre os seus intervenientes que este é um género competitivo e que há sempre um nível de bazófia inerente e aceite entre todos — se todos são “o melhor”, então ninguém é; a negociação com o ouvinte trata-se de convencê-lo do seu talento através de uma mistura de jogos de palavras, vocabulário, destreza rimática, cadência, carisma e boas batidas a acompanhar tudo isto. A expressão máxima desta faceta é o battle rap, onde os adversários digladiam-se entre piadas e bocas, o equivalente norte-americano às célebres desgarradas da cultura tradicional portuguesa. Os exemplos mais famosos disso mesmo estão no filme “8 Mile” e em programas como o “Wild’ N’ Out” ou, no caso português, a “Liga Knockout”.
Os exemplos acima descritos, contudo, tratam-se de performances especificamente centradas no conflito e não músicas gravadas com um intuito artístico — o que acontece quando a vontade de mandar um recado interceta estes dois mundos? É nesse aspeto cultural que entra o desafio lançado por Kendrick Lamar em “Control”. A disputa está presente no rap e na cultura hip-hop desde a sua origem em Nova Iorque; como também é uma batalha entre egos, as colisões foram desde sempre inevitáveis. Em meados dos anos 80, KRS-One e Marley Marl foram dos primeiros a entrar no ringue lírico ao reclamar cada um o seu bairro nova-iorquino (Bronx e Queens, respetivamente) como a Meca deste género musical. No entanto, apesar desta disputa ser encarada como um embate clássico, os insultos nunca passaram dos limites. À distância de 40 anos, esta pode ser classificada mais como uma rivalidade do que um “beef”, pelo menos da forma como hoje isso é entendido.
O mesmo não se pode dizer da encarniçada disputa entre Ice Cube, Dr. Dre e Eazy-E no rescaldo da implosão do icónico grupo N.W.A, no início dos anos 90. Todavia, quando as pessoas pensam em “beef”, pensam naquele que estabeleceu um modelo para o que se seguiria até hoje. Provavelmente a colisão mais famosa da história do rap — tanto pelos protagonistas como pelos seus infelizes destinos — e que se inscreveu na cultura popular foi aquela que contrapôs as costas Este e Oeste dos EUA durante os anos 90.
Tratando-se de uma história longa e multifacetada, eis um resumo: se a Nova Iorque e outras cidades da costa Leste dos EUA foram as primeiras a abraçar o rap e a desenvolvê-lo, o outro lado do país prestou atenção, e do estado da Califórnia começaram a surgir rappers dispostos a disputar o trono. Entre os vários artistas bem sucedidos de um lado e outro, Tupac Shakur (ou 2Pac) veio a encabeçar a cena da costa Oeste carregado pela editora Death Row Records e Christopher Wallace (mais conhecido como the Notorious B.I.G ou Biggie) a da costa Este, ao leme da Bad Boy Records.
À partida, tudo isto poderia tratar-se de mera competição amigável, para ver qual era a cena de rap mais talentosa. No entanto, o que normalmente eleva uma disputa para um “beef” é quando os seus protagonistas começam a imiscuir o lado pessoal com o artístico. 2Pac e Biggie chegaram a ser amigos — aliás, atuaram juntos na imortal sala Madison Square Garden, em 1993. No entanto, tudo mudou quando o rapper de Brooklyn lançou “Who Shot Ya?” (“Quem disparou contra ti?”, traduzido à letra) no seu álbum de estreia em 1995 sem um alvo definido. 2Pac acreditou que se tratava de uma provocação à tentativa de assalto a que sobreviveu em 1994 em Nova Iorque, tendo sido baleado por cinco vezes. Pior ainda, o artista de Los Angeles acreditava que Biggie e companhia teriam sido os responsáveis pelo ato ou, pelo menos, sabiam quem foi. A alimentar essa crença está o facto da canção em questão ter um interlúdio onde se ouve Biggie a ameaçar um homem e a desferir-lhe, lá está, cinco disparos. Tanto B.I.G quanto Puff Daddy, o seu manager, negaram, mas de nada valeu.
Esta foi a fagulha necessária para espoletar uma resposta intensamente pessoal: no ano seguinte, 2Pac e os seus Outlawz lançaram “Hit ‘Em Up”, talvez a mais notória “diss track” da história do rap, onde Shakur, entre outras coisas, faz várias ameaças explícitas de violência a Biggie e a outros rappers a si associados e diz ter tido relações sexuais com a mulher entretanto separada do seu rival, a cantora Faith Evans. O rapper de Compton ainda lançou mais algumas músicas acesas, mas o seu adversário de Nova Iorque nunca respondeu — pelo menos diretamente —, ao contrário de outros artistas, que mantiveram a guerra entre Este e Oeste em curso.
A infâmia desta rivalidade, porém, não se deve exclusivamente à música — aliás, o que lhe sucedeu ofuscou tudo o resto. A 7 de setembro de 1996, 2Pac foi assassinado num carro em Las Vegas por atiradores de uma outra viatura junto a um cruzamento. Seis meses depois, Biggie teve igual destino — morto de forma igual, só que em Los Angeles. Nunca ficou provado que a rivalidade entre as costas Leste e Oeste tivesse sido a causa direta dos respectivos homicídios. Disputas entre gangues rivais e atritos motivados por dinheiro têm vindo a ser avançados como outros motivos, mas a falta de provas e o mau trabalho da polícia em ambos os casos levaram a que nunca se obtivessem respostas definitivas. Uma coisa é certa, a tensão no ar — em conjunto com a reportagem sensacionalista dos acontecimentos — inevitavelmente empolou a noção de que a guerra no rap estava a passar dos microfones para as ruas. Com isso, veio a necessidade de acalmar os ânimos, o que acabou por acontecer.
Lamar e Drake: a guerra fria que aqueceu de repente
Apesar das mortes de 2Pac e Biggie, os “beefs” no rap nunca deixaram de existir, e alguns ameaçaram tornar-se tão notórios quanto esse. Foi o caso entre Nas e Jay-Z, dois gigantes de Nova Iorque em disputa pelo trono da famigerada cidade no início dos anos 2000. Como destaque, diga-se que o assalto verbal que Nas dedicou a Jay-Z foi tão violento e pessoal que o seu nome, “Ether”, tornou-se sinónimo de tentar acabar com alguém publicamente. Já a resposta, “Supa Ugly”, envolveu pormenores de tal forma pessoais e escabrosos — como afirmar ter-se envolvido com a namorada de Nas no carro do casal — que a mãe de Jay-Z obrigou-o a um pedido de desculpas público. Os dois acabariam por fazer as pazes anos depois, em 2005.
Não parece que vá ser esse o caso entre Drake e Kendrick Lamar, sendo que os dois — um pouco à semelhança do caso acima descrito entre 2Pac e B.I.G — até começaram as respetivas carreiras em bons termos. “Thank Me Later” e “Section.80.”, ambos lançados em 2011, vaticinaram a Drake e Lamar, respetivamente, carreiras de sucesso. E se Drake trouxe Lamar para abrir alguns concertos na digressão “Club Paradise”, este respondeu com um convite para participar na faixa “Poetic Justice”, de “Good Kid, M.A.A.D City”, álbum que estabeleceu Lamar como um dos grande rappers contemporâneos.
No entanto, tudo azedou com “Control”. Se outros rappers levaram o desafio com desportivismo ou indiferença, Drake respondeu com altivez: “Sei muito bem que o Kendrick não me está a matar, de forma alguma, em nenhuma plataforma.” Foi o início de uma troca de bocas subliminares e indiretas ao longo de 10 anos, à medida que cada um ia cimentando o seu estatuto na cena musical.
Volvida uma década, em 2023, J.Cole, convidado na canção “First Person Shooter” do álbum “For All the Dogs” de Drake, afirmou que tanto ele como Drake e Lamar eram “o top três” dos rappers contemporâneos. Foi a desculpa que Kendrick Lamar necessitava para finalmente pôr o seu rival à prova.
Drake não é alheio a críticas. O seu mega estrelato provocou anticorpos em várias franjas da cultura hip-hop, que o acusam de diluir o rap com música pop e de ser um “culture vulture” — alguém que se aproveita de comunidades culturais específicas para ganho próprio sem lhes dar o devido reconhecimento ou elevá-las. Essencialmente, paira a ideia há muito de que Drake se serve do rap sem servi-lo de volta. A antipatia que tem vindo a gerar ficou bem patente no álbum “We Don’t Trust You”, dos ex-amigos e colaboradores Future (rapper) e Metro Boomin (produtor), lançado a 22 de março deste ano, e inteiramente dedicado a criticá-lo.
Em “Like That”, tema incluído nesse lançamento, Lamar diz abertamente nos seus versos que “não há nenhum top três, existo apenas eu” e que se Drake é Michael Jackson, ele é Prince — um nome que viveu mais tempo e foi mais artisticamente mais completo. A resposta, no início de abril, veio inicialmente da parte de J.Cole, com “7 Minute Drill”, onde acusava Lamar de estar acabado enquanto rapper e de ser sobrevalorizado. No entanto, o próprio J.Cole retratou-se publicamente num concerto, dizendo sentir-se “terrível" por atacar Lamar e que tinha cedido à pressão de responder. Além disso, prometeu retirar a sua canção “pateta” das plataformas de streaming, e assim fez. Foi o melhor que podia ter feito, dada a natureza da disputa que se seguiu.
Drake, porém, não tardou a morder o isco, lançando “Push Ups” em meados de abril. O canadiano aproveitou para mandar recados a várias pessoas, mas particularmente a Lamar, fazendo pouco da sua estatura diminuta e dos contratos discográficos menos lucrativos e vantajosos que os seus, além de acusá-lo de ter uma persona criativa pouco coerente com o facto de ter colaborado com artistas pop como Maroon 5 e Taylor Swift — e que isso se deveu ao facto de ser um “pau mandado” do seu manager. O rapper canadiano reforçou esses aspetos pouco depois com “Taylor Made Freestyle”, onde afirmou que o rival tinha medo de responder, afirmando que não o faria para não colidir com o lançamento do álbum duplo de Taylor Swift, a sua “verdadeira chefe”. Além disso, usou software de voz em AI para imitar jocosamente as vozes de 2Pac e Snoop Dogg, pedindo-lhe que lutasse pela honra da costa Oeste contra Drake, de Toronto.
Devido às ameaças da família de 2Pac em levá-lo a tribunal, Drake foi forçado a retirar a canção de circulação, mas esse seria o menor dos seus problemas. Como foi referido acima, aquilo que eleva uma disputa de uma rivalidade para um “beef” é quando se imiscui o lado pessoal. Ora, em “Push Ups”, Drake fez referência à mulher de Lamar, Whitney Alford, ao dizer “vou estar com alguns guarda-costas, como a Whitney” — uma referência ao filme de 1993 “O Guarda-Costas”, com Whitney Houston, mas também uma sugestão de infidelidade. Esta não seria a primeira vez que Drake ficava em apuros num “beef” ao fazer menções diretas aos familiares de adversários — no pico da sua longa desavença com Pusha T, em 2018, proferiu o nome da mulher do seu adversário num freestyle e acabou a ter de perfilhar publicamente Adonis, o seu filho previamente desconhecido após Pusha T fazer essa revelação em “The Story of Adidon”. Outros artistas teriam claudicado perante um escândalo desta natureza, mas Drake era, nesta fase, como o sistema bancário: “too big to fail”.
Terá sido a ultrapassagem desta linha vermelha o que levou Lamar a lançar “Euphoria” duas semanas depois, onde faz uma crítica violenta não só à persona musical de Drake, como ao seu caráter. “Tenho um filho para criar, mas vejo que não sabes nada sobre isso”, atira, referindo-se à revelação de Pusha T. Ao longo de seis minutos, Kendrick ataca Drake de todos os ângulos, mas as críticas mais pungentes são quanto ao facto de ser biracial e de sobrecompensar esse facto —pedindo-lhe para não usar a palavra “n***a”, ou seja, retirando-lhe negritude —, e de ser “um mestre manipulador e um mentiroso habitual também”. Acima de tudo, Lamar assinalou o desdém que nutre por Drake: “Odeio a forma como andas, a forma como falas, odeio a forma como te vestes”.
Não há fome que não dê em fartura e, 72 horas depois, Lamar seguiu-se com outra investida: “6:16 in LA”, uma referência jocosa à tradição de Drake em lançar canções compostas por hora e local. Aqui, o californiano abre o jogo e afirma que a editora discográfica de Drake, OVO, tinha espiões a passar-lhe informação e que estavam a torcer pela sua queda. “Falso rufia, odeio rufias, deves ser uma pessoa terrível / Todos dentro da tua equipa estão a sussurrar que tu mereces.”
De mal a pior — uma disputa para a história ou o rap bateu no fundo?
O que se sucedeu depois de “6:16 in LA” foi absolutamente vertiginoso, até para os padrões do rap moderno. Se antes um “beef” decorria ao longo de meses — as canções atiradas entre Jay-Z e Nas, por exemplo, foram lançadas durante 18 meses —, a internet veio comprimir esse espaço temporal a meros dias.
Apenas um dia após o segundo ataque de Lamar, Drake respondeu com “Family Matters”. Se o título — ”assuntos familiares” — não fosse claro o suficiente, os versos feitos pelo canadiano ao longo de sete minutos não deixaram margem para dúvidas de que esta disputa se tinha tornado bem pessoal. Entre as várias alegações, Drake afirma que um dos filhos de Lamar não é seu — sendo que a sua mulher terá tido um relacionamento com Dave East, homem próximo de Kendrick — e que o rapper terá batido na mulher e contratado uma empresa de relações públicas para abafar o caso. Para pôr sal na ferida, a canção vem acompanhada de videoclip onde Drake parece destruir uma carrinha igual à que figura na capa de “Good Kid, M.A.A.D City”.
Em condições normais, um ataque desta natureza tinha abalado seriamente Kendrick Lamar — não obstante nenhuma das alegações ter sido consubstanciada. Só que, quase comprovando a afirmação de que tinha espiões do lado de Drake, Lamar lançou “Meet the Grahams” meros minutos após “Family Matters”. Estruturada como uma carta endereçada aos familiares de Drake, Lamar acusa os seus pais de criarem um mau filho viciado em apostas e medicamentos sujeitos a receita médica, lamenta-se que Adonis cresça com um pai assim e, na maior revelação da música, dirige-se a uma menina de 11 anos, afirmando assim que Drake tem outra criança não reconhecida. Além disso, a outra bomba lançada na direção do canadiano é que é um predador sexual conhecido por envolver-se com mulheres muito mais novas que ele.
Se havia a ideia de que se estava a passar das marcas, a própria imagem a acompanhar “Meet the Grahams” adensou ainda mais o psicodrama, sendo uma fotografia de artigos supostamente pertencentes a Drake, onde constam receitas do medicamento para emagrecer Ozempic e do soporífero Zolpidem. E só piorou quando Lamar lançou o derradeiro tiro: “Not Like Us”, cuja ilustração é a casa de Drake supostamente incluída numa aplicação móvel onde estão registados criminosos sexuais.
Naquilo que tem sido descrito como um golpe de génio para derrotar Drake e colher a simpatia do público após a sinistra “Meet the Grahams”, “Not Like Us” é acompanhada de uma batida animada e festiva, pronta a passar em qualquer discoteca — o que, de resto, é o que tem vindo a acontecer, tendo até batido o recorde de música mais ouvida de sempre num só dia no Spotify. Apesar da ligeireza sonora, Kendrick manteve alegações tão ou mais violentas que as anteriores: reforça que Drake a sua equipa da OVO são predatórios em relação a menores e acusa-o de ser “não um colega” mas um “colonizador” que só colabora com outros rappers para se servir deles. “Not Like Us”, “não são como nós”, carrega a mensagem de Lamar desde o início do “beef”: vocês, falso rap, não são como nós, verdadeiro rap. Pelo meio, uma avalanche de acusações sem provas, chegando mesmo a acusar Drake de ser um pedófilo.
Se Drake tinha respondido a “Meet the Grahams” com uma piada no Instagram — ”se alguém souber de alguma filha minha, que o diga, por favor” —, “Not Like Us” mereceu uma música. Em “The Heart Part 6”, Drake usa o truque de Lamar ao servir-se do nome de uma série de músicas do seu rival. No entanto, diga-se que esse é o ponto alto desta canção. Com exceção dos seus mais dedicados fãs, a reação à derradeira resposta de Drake foi de desilusão, soando cansada e demonstrando que o canadiano não queria dar-se por vencido, apesar de parecer como tal. Neste tema, Drake apresenta o argumento pouco convincente de que alguém da sua equipa providenciou dados falsos a Lamar — como a hipotética filha — para fazê-lo parecer desinformado, e afirma não ser um predador sexual porque, dada a sua fama, se o fosse, já estaria preso. Mais embaraçoso ainda foi o facto de fazer pouco de Kendrick ao dizer que este vive obcecado com o tema do abuso infantil porque ele mesmo foi abusado — algo que, ainda por cima, partiu da interpretação errada da canção “Mother I Sober” de Lamar.
Desde então, nenhum dos dois rappers lançou qualquer outra música — a internet tem-se entretido a conjeturar quais as consequências desta contenda titânica. A ideia geral é que foi Kendrick a ganhar a disputa — quer pelo volume de canções, pela gravidade das críticas e pelo ambiente geral de apoio face a Drake. “Not Like Us” ajudou, e a revista Billboard referiu entretanto que os streams do catálogo de Lamar aumentaram 49% desde o fim de semana de 3 e 4 de maio, enquanto as de Drake diminuíram 5%.
Além disso, um comentário jocoso de Rick Ross — rapper que passou de aliado a inimigo de Drake e que é uma personagem menor nesta história — gerou um fenómeno paralelo, mas igualmente embaraçoso para o canadiano. Depois de acusá-lo de ter feito cirurgia cosmética nos abdominais e nas nádegas — criando a alcunha “BBL Drizzy”, ou seja, algo como “Drizzy Bumbum Brasil”, sendo Drizzy um dos nomes pelos quais o artista é conhecido — a internet tomou nota e um comediante criou uma música de paródia através de IA ao jeito de um cantor soul. Após Drake atirar uma farpa a Metro Boomin — “cala-te e toca bateria”, disse em “Push Ups” —, o produtor pegou nessa música e não só criou uma batida que disponibilizou online, como prometeu que oferecia outra a quem conseguisse utilizá-la melhor. O resultado foi uma enchente de versões da mais variada natureza. Como um internauta chegou a comentar, “Metro Boomin conseguir convencer civis a dizer mal do Drake numa faixa chamada “BBL Drizzy” é de loucos. Porque é que o Drake está a ser lixado por um jovem de 17 anos que nunca conheceu?”
“O que é que fazer com toda esta maldade?”
É comum nos “beefs” haver insultos de parte a parte com mais ou menos violência, mas um precedente foi aberto com esta disputa, já que ambos os rappers lançaram libelos de tal forma danosos que podem abrir investigações criminais — Kendrick e o caso de violência doméstica, Drake e as acusações de comportamento predatório. “É o espetáculo mais miserável da história do rap”, escreveu Alphonse Pierre, jornalista da Pitchfork, caracterizando a vitória de Lamar como “pírrica” e a derrota de Drake potencialmente catastrófica. “O que poderia ser verdade — ou meia verdade, ou uma mentira — tornou-se numa espécie de campanha de desinformação que durou um fim de semana e transformou o maior ‘beef’ de sempre do rap num conflito confuso e confuso que, no seu âmago, não é nada mais do que feio”, aponta.
O jornalista lamenta que todo o caso tenha sido tratado como um desporto, com os fãs a pedirem mais sangue e criadores de conteúdos a enriquecerem à custa de acusações capazes de ter consequências bem reais. Uma delas já pode ter ocorrido. Na madrugada de 7 de maio ocorreu um tiroteio à porta da mansão de Toronto de Drake — a tal que aparece em “Not Like Us” —, no qual um segurança ficou gravemente ferido. Não havendo indícios de que os disparos tenham alguma relação com a disputa entre o canadiano e Lamar, o momento sugere prudência. Já o facto de três pessoas terem tentado invadir a mesma residência desde o fim do “beef” parece ter uma ligação bastante mais provável.
“Ninguém ganhou a guerra. Não se tratou de habilidade. Foi um combate de luta livre na lama e do abate por todos os meios necessários — mulheres e crianças (e factos reais) que se lixem. O mesmo público que quer sangue vai em breve colocar posts a dizer “rip”, como se não fizessem parte do problema. O Hip Hop está mesmo morto.”, reagiu Questlove, baterista dos The Roots e reconhecida figura do hip-hop, na sua conta de Instagram.
Nem toda a gente, contudo, viu a contenda da mesma forma. No “The New York Times”, publicou-se que a vitória de Kendrick era uma vitória para a cultura do hip-hop em geral, com a pureza lírica de Lamar a sobrepôr-se ao apelo pop de Drake. Já Tom Breihan, editor do “Stereogum”, caracterizou mesmo este momento como um dos mais entusiasmantes do rap nos últimos anos.
“‘The Heart Part 6’ pode ser o capítulo final, ou pode haver outra música que saia segundos depois de eu publicar esta história. Não sabemos. Por isso é que tem sido tão bom. Adormeci cedo na sexta-feira à noite e acordei com novas faixas absolutamente ferozes de Kendrick Lamar e Drake. A poeira nunca tem hipótese de assentar. Desde que o Kendrick começou a lançar golpes em 'Like That', do Future e do Metro Boomin, há pouco mais de um mês, já recebemos um álbum sólido de material de dois dos maiores nomes do rap, ambos a atirarem constantemente golpes tóxicos um ao outro. Se és o tipo de pessoa que presta atenção às telenovelas do rap, então este é o tipo de merda pelo qual vives. Tem sido demasiado divertido”, admitiu.
No entanto, para lá dos insultos homofóbicos que mantém-se uma constante no rap desde a sua génese, a forma como várias mulheres, assim como as famílias dos respectivos rappers, foram usadas como armas de arremesso também não passou despercebida nesta disputa. E parece mais deslocada do que nunca num mundo pós-MeToo.
“Drake e Kendrick Lamar não percebem que a dor das mulheres não é uma piada”, escreveu Tayo Bero no The Guardian. “No decurso das suas desagradáveis trocas de palavras, fizeram das mulheres — mulheres que são possivelmente sobreviventes de abuso sexual, assédio ou violência doméstica — danos colaterais da sua violenta campanha de difamação”, afirma. Mais à frente no texto, lamenta a hipocrisia de uma cultura que “continua a proteger homens terríveis, mesmo quando o seu comportamento ou alegado comportamento é um segredo aberto”, já que “estes homens estão casualmente a fazer raps sobre abuso sexual de crianças, sobre abuso doméstico e sobre ocultar filhos secretos”, casos que, “presumivelmente, conheciam há anos, mas que só decidiram revelar quando estavam a lutar”.
Para lá das noções de vitória ou derrota, tanto Drake quanto Kendrick têm sido alvo de críticas devido à hipocrisia da sua postura. Como aponta o “The Ringer”, o canadiano, que atacou Lamar por alegadamente agredido a sua mulher, deu apoio a Chris Brown em “Family Matters” posicionou-se abertamente ao lado Tory Lanez nas redes sociais; tanto um quanto outro foram detidos por violência doméstica contra as artistas Rihanna e Megan Thee Stallion, respetivamente. Já Kendrick criticou Drake por ser alegadamente um predador sexual, mas convidou o rapper Kodak Black — que foi preso um um crime sexual — a participar no seu último álbum.
“O que é que fazer com toda esta maldade?” é o título do artigo de Craig Jenkins, um dos mais conceituados críticos musicais dos EUA, para a revista Vulture. Nele, Jenkins disseca as ramificações do “beef”. Se Drake dificilmente conseguirá livrar-se do fedor dos rumores que sobre si se abateram, Kendrick não sai muito melhor — daí a ideia de uma vitória pírrica. “Já não pode ser um modelo de respeitabilidade. Naquele fim de semana, deu um espetáculo demasiado malvado para que se possa esperar que valide qualquer política de unidade que “Alright” nos tenha levado a atribuir-lhe”, escreveu Jenkins, completando pouco depois: “talvez não seja sensato esperar que este artista, cujo trabalho até agora no angustiante ano de 2024 se centrou em atingir um homem, volte a fazer rap sobre espiritualidade e união”.
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