Um sonho, um luxo, uma surpresa inesperada. Estas são apenas algumas das palavras que poderiam definir a forma como foi recebido, esta semana, o anúncio de que o festival Rolling Loud assentaria arraiais em Portugal, mais concretamente em Portimão, de 8 a 10 de julho. Tendo em conta os nomes revelados para o seu cartaz, a estreia não poderá ser, imagina-se, mais auspiciosa: A$AP Rocky está lá, Gucci Mane idem aspas, a dupla Rae Sremmurd também, e nomes como Lil Uzi Vert, Chief Keef ou Meek Mill deixaram muito boa gente a salivar. A nata do hip-hop feito na última década, lado a lado com duas mãos cheias de talentos emergentes e outras tantas curiosidades. Nunca Portugal, país onde boa parte das pessoas que gostam de música ainda estão presas ao rock n' roll (sobretudo ao rock dos anos 90), recebeu um festival de hip-hop assim.
Dizemos “Portugal”, mas poderíamos ter dito “o Mundo” em 2015, quando o Rolling Loud conheceu a sua primeira edição em Miami. Mesmo que não pensemos nesta grande cidade da Florida quando o assunto é o cânone hip-hop (Nova Iorque ou Los Angeles estão muito mais lá em cima), os seus contributos para o movimento são por ora conhecidos: foi aqui que nasceu o género conhecido como Miami bass, o rap sexualmente explícito dos 2 Live Crew e, nos últimos anos, rappers que brotaram da Internet para o estrelato, como Lil Pump.
Se dantes a história era uma nota de rodapé, Tariq Cherif e Matt Zingler, dois jovens promotores locais, procuraram torná-la numa enciclopédia. Primeiro, testaram as águas: fundaram a Dope Entertainment e organizaram, desde 2010 e por toda a Florida, concertos de rappers como Curren$y, Rick Ross ou Kendrick Lamar. Os lucros obtidos, à altura, não foram os maiores (e até havia avultados prejuízos, pelo menos para a carteira comum). Mas Cherif e Zingler ganharam mais do que dinheiro: ganharam a consciência de que, neste estado, existia um vasto público – ou mercado – interessado em ver concertos de hip-hop.
Tão interessado, que um festival só poderia ser a conclusão óbvia de todas as noites passadas por Cherif e Zingler a contar bilhetes, a preparar salas, a fazer das estrelas ou aspirantes a estrelas musicais amigos para a vida. O hip-hop, grosso modo, raramente teve o seu grande dia no que toca a eventos deste tipo. Ao pensarmos em festivais de rock, logo à partida teremos Woodstock na ponta da língua; festivais de cariz independente e/ou alternativo, encontramos o nome “Coachella” alojado no cérebro; festivais de música eletrónica de dança, o Tomorrowland, naturalmente. Mas um festival de hip-hop, apenas e só de hip-hop, tem sido uma coisa muito rara ao longo das mais de quatro décadas de vida do movimento (nos Estados Unidos, apenas o Rock the Bells, que terminou em 2013, conseguiu criar algum burburinho).
O Rolling Loud veio, por isso, preencher um espaço vazio. E não é à toa que se auto descreve como “o maior festival de hip-hop do mundo”, até por ser algo praticamente único. E por ter passado, desde a sua primeira edição, por um crescimento brutal: em 2015, cerca de 6 mil pessoas assistiram a concertos de artistas como Schoolboy Q, Juicy J ou Action Bronson. Em 2017, esse número já se cifrava nos 40 mil, esgotando entradas e mudando-se para um local mais amplo. Ou, como escreveu o jornal Miami New Times, em 2018: «foi como se um miúdo crescesse 1,20m e passasse do infantário para a faculdade em apenas dois anos».
A faculdade, e uma espécie de Erasmus. Colocados em pausa alguns planos de expansão para a China e o Japão, o Rolling Loud chegou entretanto a Los Angeles e à Austrália (com edições também elas esgotadas), e será em Portugal que conhecerá o seu batismo europeu. Pelo meio, em 2019, foi abortada uma edição planeada para Hong Kong, devido aos protestos anti-governo ocorridos naquele território. Mas o seu sentido de orientação nunca se alterou: o festival é ao mesmo tempo uma forma de testemunhar, ao vivo e a cores, aquilo que fazem alguns dos rappers mais badalados do mundo, e conhecer ou consagrar outros que começaram há menos tempo a dar os seus primeiros passos. O Rolling Loud, aliás, foi um degrau importantíssimo para alguns artistas das novas gerações, como Lil Uzi Vert. Alimenta-se da música, e alimenta-a em retorno. Uma ouroboros da cena rap.
O que é melhor, fá-lo sobretudo através da perseverança e lealdade dos fãs, com a venda de bilhetes e não com altos patrocínios de grandes marcas (que também existem, mas não são eles que mantêm o festival de pé). É (também) por isso que os preços dos bilhetes serão algo proibitivos: o passe geral para a edição portuguesa ronda os 179,37 euros, número que sobe para 210,47 caso os festivaleiros decidam adquiri-lo em três prestações. Já para não falar das entradas VIP, que chegam aos 299,47 euros, e que podem alcançar os 913 euros caso se opte por uma estadia incluída num hotel de luxo. Não é por acaso que Tariq Cherif explicou em tom de prece, ao jornal Orlando Weekly em 2015, que «os fãs precisam de deixar que os seus dólares falem por si, se quiserem continuar a ver o Rolling Loud em Miami e a crescer».
Daí que os cartazes, ao longo dos anos, tenham apostado fortemente em nomes que arrastam consigo milhares de fãs. Kendrick Lamar será uma potencial ausência de peso no Algarve: o rapper norte-americano estará em Portugal nessas datas, mas no NOS Alive, a 287km de distância. Mas há que ter em atenção as estreias de muitos daqueles nomes no país, como Chief Keef, a quem já chamaram de “Justin Bieber negro” pela sua aptidão musical, quer a nível de instrumentais, quer a nível lírico. Ou de Lil Uzi Vert, nome cimeiro do trap, que conta entre as suas influências um tal de... Marilyn Manson, e que editou em 2017 o já clássico 'XO Tour Llif3', um dos grandes sucessos do género.
Sem esquecer, até, algumas repetições: A$AP Rocky, nome de topo do hip-hop contemporâneo (o seu primeiro disco, “Long. Live. ASAP”, editado em 2013, alcançou o estatuto de dupla platina), também vai ao Super Bock Super Rock na semana seguinte, e Trippie Redd (que na primeira semana de lançamento do seu último álbum, “A Love Letter To You 4”, em 2019, atingiu mais de 125 milhões de streams) estará no Sumol Summer Fest, dias antes. O veterano Gucci Mane (que até já samplou temas black metal) e Meek Mill (“Championships”, de 2019, foi disco de platina) deverão igualmente fazer as delícias dos fãs de hip-hop, sobretudo dos mais jovens.
Ainda que uma notícia tenha desagradado muitos dos que já faziam planos para umas férias bem passadas em Portimão: o Rolling Loud fechará as suas portas a menores de 18 anos, declaração que já levou à criação de uma petição online para que esse número baixe para os 16, e a promessas várias, em maior ou menor tom de gozo, de arranjar identidades falsas. São os jovens que fazem mover a grande máquina pop (ou hip-hop), mas serão eles os mais afetados por esta decisão. Ao contrário do que pregava o grande Ol' Dirty Bastard, isto não será para crianças.
É certo que, como qualquer outro festival, o Rolling Loud não está imune a polémicas ou a críticas – e não apenas aquelas que se referem ao rap e ao hip-hop como “música”, entre aspas, menosprezando-os. Ainda guarda muito peso a ideia de que um evento ligado a este movimento é um potencial foco de violência extrema. Ao longo da sua existência, alguns casos foram manchando aquilo que, até agora, tem sido um festival tranquilo: em 2017, um rapper (não identificado) foi agredido e assaltado nos bastidores. Em 2019, uma briga feia entre alguns festivaleiros levou a rumores de que teria ocorrido um tiroteio, provocando o pânico e levando milhares de pessoas a correr furiosamente para a saída, o que resultou em vários feridos. E, nesse mesmo ano, o rapper Kodak Black foi preso ainda antes de subir ao palco, por posse ilegal de arma de fogo. Para não falar das várias detenções que ocorrem, todas as edições, por posse de drogas – que, admita-se, não são nem mais nem menos que em qualquer outro evento desta envergadura.
A quem vai a Portimão, isso pouco importará. E mesmo com a vasta quantidade de festivais de música que existe em Portugal (ainda para mais durante o mês de julho, onde há um ou mais todas as semanas), um evento desta magnitude não deverá passar incólume, sobretudo para quem gosta – a sério – do rap. É para esses que o festival é feito, e serão esses que poderão dizer, no final, que este mudou as suas vidas. Como os grandes festivais costumam fazer. À Forbes, em 2018, Matt Zingler disse que o seu objetivo é fazer do Rolling Loud «uma espécie de Starbucks»: uma marca registada, conhecida por todo o planeta. Portugal, ao que parece, irá ajudá-lo, e ao seu colega, a cumpri-lo.
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