Já 'tô nervoso!, desabafava, sorridente, um fã que naquele momento em frente à bilheteira parecia rezar a todos os santinhos para que um milagre se desse, e o bilhete que perdeu voltasse ao seu bolso, após uma investigação digital com recurso a NIFs e digna de Sherlock Holmes. Não sabemos se esse fã em particular conseguiu entrar na Altice Arena, juntar a sua voz à dos milhares de pessoas que encheram a sala lisboeta para ver ou, em alguns casos, voltar a ver Rosalía, a artista catalã tornada estrela pop depois de ter pegado no flamenco e lhe ter conferido uma roupagem moderna. O que sabemos é isto: na casa de Rosalía (já) não cabe só o flamenco.
“Nestes dois anos que passei nos Estados Unidos redescobri o meu centro”, contou à edição espanhola da revista “GQ”, em maio. “Se ocupas o teu centro a nível criativo, compões de forma honesta, produzes de forma honesta e fazes arranjos de forma honesta”. Rosalía já não podia, ou não queria, ser a mesma pessoa que compôs “El Mal Querer”, o disco que a elevou aos píncaros e que nasceu como um projeto de curso, em 2016. Flamenco, sim, mas um gosto musical não é – nem pode ser, se gostarmos realmente de música – estanque; pelos seus ouvidos passou e passa também o reggaeton, a bachata, o hip-hop, a eletrónica minimalista, a pop alternativa. Da fusão disto tudo e do amor por isto tudo nasceu “Motomami”, disco que a transformou em personagem. Ou, como ela canta em 'Saoko': yo soy muy mía, yo me transformo.
Transformou-se de tal forma que os puristas e tradicionalistas lhe caíram em cima, como o fazem sempre que têm medo de alguma coisa. Outros tantos fãs de “El Mal Querer” rejeitaram, da mesma forma, esta sua viagem por outros terrenos. Mas uma geração mais nova entendeu-a e, se quisermos atentar à história da música pop, geralmente são as gerações mais jovens quem entende, sempre, o que os mais velhos desvalorizam. Muitos deles estiveram hoje na Altice Arena, de roupas e cabelos garridos, com piercings ou glitter ou eyeliner, com a definição de palavras como hentai ou sakura decoradas há muito (para quem não sabe referem-se, respetiva e resumidamente, a pornografia animada e a cerejeiras). E muitos deles sabem, também, que “Motomami” é um álbum carregado de feminismo. “As pessoas são implacáveis quando uma mulher não faz o que se espera dela”, comentou tristemente à “GQ”. “No final, digo 'Motomami' e sigo em frente”.
“Motomami” tornou-se numa espécie de palavra sagrada, um mantra. Nasce da fusão das palavras “moto” e “mami”, e pode ser traduzida de forma algo livre como “miúda motoqueira”, mas significa mais que isso: para quem a entoa, parece significar liberdade, e um tipo específico de alegria que só se alcança com a verdadeira liberdade. Tanto assim é que a podíamos escutar, aqui e ali, ainda nem Rosalía nem os seus dançarinos tinham subido ao palco. Tanto assim é que foi enormemente aplaudida quando, a meia hora do início do concerto, surge grafada à mão no ecrã colocado sobre o palco, ao lado de outros rabiscos vários.
Eventualmente, e depois de um curto interlúdio gabber com grito nipónico à mistura, sob o crepitar das luzes, a “mami” surge, sem a sua mota mas com um capacete arrancado ao melhor da ficção cyberpunk, qual “Tron” com sotaque castelhano. Perdão, quase castelhano: não nos esqueçamos que Rosalía é catalã (e quando soltou um “o meu país” houve alguém que gritou visca Catalunya!), primeiro, e salientemos que durante boa parte do espetáculo a artista arranhou no português, segundo. Isto, quando nos era perceptível o que dizia, já que, e sobretudo no início do espetáculo, mal se escutou a sua voz, fruto de um problema de acústica tão comum a esta sala.
Arrancando com 'Saoko', depressa Rosalía procurou tomar de assalto todos aqueles milhares de pessoas, ladeada por um grupo de dançarinos e munida apenas de um microfone. A música era disparada de outro ponto, o DJ de serviço tornado sombra, para que no centro das atenções estivesse apenas ela. Visualmente, não se pode dizer que o espetáculo Rosalía tenha mudado muito desde 2018, quando a vimos pela primeira vez, no NOS Primavera Sound. O máximo de “distrações” a que o público teve direito foram dois ecrãs verticais, onde o seu rosto e o seu corpo iam surgindo, dando a sensação de se estar a assistir à gravação de um videoclip ou de um vídeo para o TikTok em tempo real. O que faltou em imagens foi, porém, superado pelo som: é impressionante a forma como a sua voz se transforma ao vivo, e mais impressionante o é quando sabemos que, em digressão, Rosalía faz isto todas as noites. Caso isso falhasse, teria sempre os fãs, que em coro não se esquivaram a nenhuma nota de 'Candy'.
Afirmando-se “muito feliz” por estar em Lisboa, cidade à qual “queria voltar há muito”, Rosalía desfez-se em obrigados antes de pegar numa guitarra elétrica para tocar 'Dolerme' (pop/rock chato que não valoriza em nada a sua voz e/ou a sua técnica), abandonando-a de seguida quando arrancou para o flamenco de 'Bulerías', acompanhada pelas obrigatórias palmas a compasso. “E se eu disser 'moto', vocês dizem o quê?”, brincou de seguida, sabendo perfeitamente que essa palavra já não é sua, e sim de todos os que precisam de uma abstração do capitalismo tardio. 'G3 N15' afirmar-se-ia como um dos momentos mais solenes de uma noite que foi oscilando em velocidades, dos ritmos mais dançáveis para as baladas mais dolorosas, com uma série de prolongadas pausas entre canções, tornando morno um espetáculo que se desejava fervente. Nelas, aproveitou para saudar quem tinha guardado lugar nas filas da frente há largas horas: o casal Alejandro e Ruben, uma pessoa vinda de propósito das Canárias, outra que dela só queria um abraço.
'La Noche de Anoche', canção que lançou ao lado de Bad Bunny, levou-a até junto do público, ao qual emprestou por momentos o microfone; voltaria a fazê-lo mais tarde com Alberto, jovem que a ajudou a recitar 'Abcdefg', no momento mais “Rua Sésamo” de um concerto pop em Portugal. De volta ao palco, sentou-se para ser maquilhada durante 'Diablo', antes de passar para o piano de 'Hentai' e receber prendas diversas: ramos de flores, peluches, o que pareceu, ao longe, ser um chapéu. “Obrigada por serem tão carinhosos”, disse. Um carinho que acabaria a ser agraciado com uma versão estrondosa, guitarra heavy metal e voz gitana, de 'Perdóname', sucesso da dupla panamenha La Factoría, e que terminou com uma Rosalía emocionada.
Até final, faria uma incursão pelo clássico 'Gasolina', de Daddy Yankee, antes de cantar um outro clássico, a sua própria 'Despechá'; interpretaria a remistura que fez para 'Blinding Lights', de The Weeknd; e terminaria com 'Malamente' (o famoso ¡Tra-tra! entoado em coro) e 'Con Altura', bomba-canção que a juntou a J Balvin e El Guincho. No encore, 'Chicken Teriyaki', 'Sakura' e 'CUUUUuuuuuute' puseram termo a um concerto que, não tendo sido extraordinário (e, se a quisermos comparar a um conterrâneo, C. Tangana espantou muito mais nesta mesma sala, há uns meses), encantou suficientemente os presentes – tanto, que na estação de metro do Oriente ainda perduraram, durante a espera para descer à plataforma, as canções que se tinham acabado de escutar. Mesmo a diferentes velocidades, esta 'Motomami' parece ter rodas para andar.
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