Foi no dia 1 de setembro de 2016 que o filme São Jorge estreou mundialmente. A terceira longa-metragem do realizador Marco Martins estreou em Itália, no festival de Veneza, onde foi recebida de braços abertos. O ator principal, Nuno Lopes, que trabalhara anteriormente com Marco Martins no filme Alice (2005), venceu o prémio de melhor ator (na secção Orizzonti do festival), dado o seu extraordinário papel como Jorge.

Na realidade, Nuno Lopes fez mais do que representar: a história do filme foi definida pelo realizador, mas contou sempre com o seu apoio. Quando Marco Martins decidiu criar uma peça de cariz social, foi Nuno quem sugeriu a possibilidade de criar um filme sobre boxe, e dar início à ideia de São Jorge. Foi necessário um grande trabalho de pesquisa, conduzida por Mariana Fonseca, para a composição da obra, e após o primeiro rascunho do guião começaram as entrevistas nos clubes de boxe a verdadeiros prestadores de “cobranças presencias”. Durante estes quatro anos de desenvolvimento, a equipa de São Jorge dedicou-se de corpo e alma à produção do filme, que estreou no passado dia 9 nos cinemas nacionais.

Cariz social, boxe, cobranças. Do que fala afinal São Jorge?

Numa frase, o filme fala de Jorge, um ex-trabalhador de uma fábrica, que vive na margem sul de Lisboa com a sua família durante os piores anos de crise, e que, na tentativa de reaver a mãe do seu filho (Susana), aceita um duro trabalho como prestador de cobranças presenciais. A história é simples, mas o tema é particularmente difícil, até pela sua ainda proximidade e memória: a pobreza que se viveu durante os anos de presença da troika em Portugal e que afetou muitas famílias.

Assistimos ao fechar de fábricas, por um lado, e a restaurantes de luxo a abrir, por outro, - um retrato do que se passava há meia dúzia de anos em Lisboa e que é acompanhado por um tema transversal no filme e sobre o qual gira toda a ação: a dívida. Segundo o realizador, o próprio filme funciona como uma metáfora acerca da situação de Portugal, que não conseguia pagar a sua dívida internacional e por isso foi necessário enviar uma entidade intimidante para colocar as coisas no lugar (a troika) e cobrar a conta.

O tema do filme surgiu com uma vontade do realizador de falar sobre algo que era novo na sua geração: uma crise económica que se refletia na degradação da vida das pessoas, confessou Marco numa entrevista ao Diário de Notícias. Nuno Lopes, por seu lado, decidiu juntar-se ao filme pela afinidade que tinha com o realizador e pelo interesse especial que tinha no tema. O entusiasmo foi-se acentuando à medida que a pré-produção avançava. Durante os dois primeiros anos, Nuno juntou-se a um clube de boxe para apreender as emoções e atitudes dos verdadeiros cobradores, o que se revelou uma verdadeira transformação emocional para o ator. Mas a dedicação não ficou por aqui: nos últimos cinco meses começou a transformação física, que levou a um aumento de peso em 20 quilos, e que se deve essencialmente às seis horas de treino intensivo que Nuno fazia diariamente.

É mais ou menos natural, por tudo isto, que ao ver o filme seja o papel de Nuno Lopes o que mais se destaca. O filme é focado no seu protagonista e a sua representação apresenta um grau de autenticidade que lhe valeu justamente o prémio de melhor ator em Veneza. O olhar, os gestos e a voz ficam na nossa cabeça como qualidades da personagem, nunca do ator. A personalidade frágil e sensível do protagonista contrasta com o seu físico, na medida em que este é responsável pelo seu rendimento mas que simultaneamente asfixia a sua personalidade afetiva. É raro uma representação ficar na memória como esta certamente ficará. 

Todas estas modulações do personagem principal só perduram porque são capturadas de forma formidável pelo realizador. Há um cuidado extremo de Marco Martins na composição. O realizador, desde o início do filme, apresenta-nos imagens impressionantes de casas e outros edifícios deixados ao abandono. Exigiu um bom trabalho de fotografia, que é algo que o filme explora em pleno. Certos planos por vezes lembram Moonlight - o filme vencedor do Óscar. Em particular, as cenas filmadas no interior dos carros, que vão contra as regras do cinema mas acabam por resultar muito bem. Filmam o ator da perspetiva do banco de trás do carro e acabam por envolver mais o espectador na narrativa. A escala é usada com mestria. Numa das cenas do filme, o realizador apresenta-nos uma fachada de um edifício degradado com roupas penduradas, enquanto no canto inferior direito se observa, à distância, a ação decorrente. São exemplos que ilustram o engenho de Marco Martins e a dedicação da equipa à produção do filme. 

Há um fator que está pouco trabalhado no filme, que é o elemento musical. Em termos sonoros o filme está muito bem conseguido, com sons de fundo que refletem o meio ambiente e que dão ao filme o aspecto documental que era pretendido. Ainda assim, apesar de se ouvir música de vez em quando, sente-se por vezes uma falta de emoção que decorre da ausência de uma (normal) banda sonora.

Para espectadores menos habituados ao cinema português e ao cinema europeu, duas notas de preparação prévia. São Jorge é um filme com um ritmo bastante lento. O cinema europeu é, regra geral, mais lento do que o cinema americano, pelo que exige um outro olhar a quem não está habituado ou para quem está demasiado habituado a outro ritmo. É um filme praticamente todo passado durante a noite, o que aumenta o desconsolo da história.  Foi pensado para ser assim, com as inerentes dificuldades adicionais no que toca a realização e fotografia, mas pode por vezes tornar-se melancólico e repetitivo. 

É notável mencionar também que, devido ao longo trabalho de pré-produção com membros dos clubes de boxe e de bairros problemáticos, Marco Martins decidiu envolver os participantes da pesquisa no filme, desempenhando papéis secundários e de figuração e que na maior parte das cenas improvisaram de forma natural.

São Jorge é um filme português de elevada qualidade, bem capturado e que retrata de forma precisa uma situação que não deve ser esquecida (e muito menos ignorada). Muito do prestígio se deve ao realizador, Marco Martins, mas este papel não largará a pele de Nuno Lopes para memória futura.

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