Assim que se cruza a porta da vila, o ambiente muda. As bandeiras vermelhas e azuis, com floreados de ouro, ladeiam o caminho e são cada vez mais as pessoas vestidas a rigor para a ocasião. É o Mercado Medieval de Óbidos, um recuo no tempo que não deixa de se adaptar às necessidades de hoje.
A cada ano, o tema muda. Em 2017, as mulheres têm lugar garantido no palco, e é a partir delas que tudo o resto se desenha. Com o tema “Ser Mulher na Idade Média”, o Mercado aposta na recriação de todos os tipos de mulheres da época.
"Por quem sois, senhora?"
Humberto Marques, presidente da Câmara Municipal de Óbidos, não esconde o orgulho que tem num projeto que conta já com cerca de 15 anos. Em pleno camarote nobre, de onde se assiste à liça, com combates apeados ou a cavalo, Humberto Marques fala ao SAPO24 sobre esta edição do festival.
“Por quem sois, senhora?” A pergunta é feita com tom de convite, para que a dama conceda ao cavalheiro uns minutos da sua atenção. E é precisamente sobre elas, as mulheres e rainhas, que Humberto Marques começa a falar.
“Hoje, as mulheres têm de ser ainda mais consideradas. Normalmente não se fala muito delas na História. Na Idade Média muito menos. Entendemos que este era um tema fundamental e também atual: posicionar a mulher no centro das decisões. Temos de ver as capacidades das mulheres e quisemos marcar isso aqui", diz o responsável, lembrando que "Óbidos é uma vila de rainhas", um presente oferecido pelos reis.
Mas não são apenas as mulheres de coroa que merecem destaque nesta edição. "Quisemos dedicar o tema não só à rainha mas também à mulher comum, e registar todos os estratos sociais que existiam na época. É isso que queremos retratar e que vamos recriar todos os domingos, no que era comummente conhecido como Assalto ao Castelo, e que este ano se transforma no Rapto da Rainha”, explica.
Mas porquê um mercado desta dimensão entre as muralhas? Humberto Marques conta que “a ideia resultou precisamente de Óbidos se destacar, sobretudo, por duas épocas: a época barroca e a época medieval. A medieval era aquela que iria justificar uma recriação histórica, que permitia às pessoas recriar não a dimensão da obscuridade, daquele espetro negro da época medieval, mas reviver a época numa dimensão mais de festa. Portanto, entendemos fazer esta vivência, esta viagem ao passado, mas a um passado que nós também queremos conduzir com esta alegria. E com um grande objetivo: transformar o que era uma época baixa e dinamizar o destino turístico”.
Por esta altura, a Vila das Rainhas é mais do que uma atração para quem vem de visita. A comunidade local passou a ser “ator da própria cultura”. Se no início era necessário “recrutar fora”, agora dominam os grupos portugueses, muitos deles locais. Para o presidente da Câmara, esta é, “já que estamos a falar da época medieval, uma grande conquista".
"O concelho de Óbidos tem mais de 13% das pessoas a praticar cultura e, do mesmo modo, tem um evento que está sustentado em mais de mil pessoas da comunidade local, ou seja, cerca de 10% da população está aqui a participar. É um daqueles eventos construídos a partir da comunidade e para a comunidade. Note-se que mais de 50% das coletividades na área da cultura e de outras áreas provém precisamente do mercado medieval. O Mercado é, também, uma forma de apoiarmos a comunidade local”, salienta.
Encarnar personagens para viver a época em pleno
A atenção desvia-se de novo para a liça, na plateia o público aguarda a entrada dos cavaleiros. Como exige a ocasião, são muitos os que entram no espírito e se vestem a rigor para embarcar nesta viagem no tempo.
“É evidente que as pessoas começam a ser recorrentes, começam a vir todos os anos e, mais do que isso, querem encarnar uma personagem. A melhor maneira de viver o Mercado Medieval é vestir a indumentária medieval porque se cria, a partir daí, um ambiente de relação muito pessoal, mesmo com desconhecidos. Há um ambiente muito personalizado na primeira e na segunda pessoa, do ‘eu’ e do ‘tu’. E isso só se consegue viver verdadeiramente com os trajes. Há uns anos começámos a incutir o aluguer de trajes e promover alguns descontos para quem recorresse ao traje e quisesse participar, porque faz parte da encenação. Felizmente, hoje esta ideia está a ser muito propagada e podemos ver aqui à nossa frente imensa gente já trajada a rigor. O Mercado Medieval começa também a ser muito internacional. Temos atrás de nós alunos que vêm de Macau e temos seguramente muitos franceses e muitos espanhóis, que já começam a conhecer e a querer vir”, explica o presidente.
Prestes a começar o combate, há uma pergunta que não pode deixar de ser feita. De vestes azuis e vermelhas, mas de forma discreta no meio dos demais, quem é Humberto Marques? “Na verdade, sou um duplo. Está a falar com alguém que, sendo jovem e presidente da Câmara, não deixa de fazer viagens ao passado, de procurar ir à Idade Média, de olhar para temas que podem vir a ser interessantes, que se podem transformar de alguma maneira em argumentos de festa e alegria, para esta edição e para as futuras. Mas, se estivesse na Idade Média, apresentava-me como o Rei”, remata entre risos.
“Nem só de homens vivem as espadas”
No espaço destinado aos combates surgem dois cavaleiros. O primeiro é D. Vieira, recebido com entusiasmo por todos. Logo de seguida, o Cavaleiro Negro. De figura altiva, arrogante e enigmática, aparece de cara coberta. O mestre da liça, que apresenta os combatentes, não esconde a sua indignação pelas atitudes do homem. “Nem uma vénia, nem um cumprimento”.
De lança em riste, os cavaleiros, a galope, terão de acertar no centro de um escudo. É o “estafermo”, um alvo constituído por um capacete medieval, traves de madeira em vez de membros e um escudo. Que tenha início o combate!
Ao que parece, D. Vieira precisa de “um pouco mais de pujança” para superar a prova. O Cavaleiro negro é chamado e demora a vir. “Que falta de consideração para comigo, não admito!”, diz o mestre da liça.
Mas mais provas se seguem. Cortar um pepino em partes iguais, a cavalo, é um desafio que leva espetadores ao rubro, mesmo quando pedaços do vegetal atingem todos. De seguida, um guerreiro apeado também entra na liça. E apenas porque quer desempatar os anteriores combates. Entre guerreiro e um escudeiro, a luta. As espadas ressoam, mas a morte é proibida.
“Poupai-lhe a vida, senhor. Mostrai quem sois”, apela o mestre. O escudeiro, de cara coberta, vence o adversário de ar feroz. Quando retira o elmo, surpresa. Uma mulher derrotou um “homem de barba rija”. É este o espírito do Mercado este ano, na liça: “Nem só de espadas vivem os homens”. E é assim em todo o espaço entre muralhas.
Em entrevista ao SAPO 24, os afamados guerreiros apresentam-se. São Os Cavaleiros do Tempo, um grupo criado “há muitos anos por um senhor chamado Olivier Bidault. Esta equipa é a continuação do trabalho dele, que agora tem um parque temático em Odiáxere, a Tapada do Infante”, explica Joaquim Moreira, mais conhecido, quando em trajes medievais, por mestre da liça.
Consigo estão Manuel Vieira, o cavaleiro D. Vieira; Pedro Mendonça, o Cavaleiro Negro substituto de Olivier, que encarnava a personagem em Óbidos; Hélio Silva, cavaleiro de combate apeado; Maria João Rodrigues e Beatriz Jacinto, escudeiras, e Mariana Vieira, técnica de som que ajuda a recriar o ambiente medieval através da música.
Manuel explica que os combates “são exigentes e requerem bastante treino. É preciso treinar os cavalos e prepararmo-nos também. Até porque isto é muito psicológico. É preciso muito trabalho da parte de todos. Insistir e insistir para correr tudo bem”.
Quando aos combates apeados, Joaquim refere que o que ali se faz é designado por “combate cénico ou coreografado”. Tudo é estudado de forma a que “a segurança dos artistas que executam o combate não seja posta em causa. São técnicas de espetáculo executadas para que corra tudo bem”.
Beatriz e Maria João, as mulheres do grupo, são alunas do mestre da liça. Para elas, praticar uma atividade que é muitas vezes considerada de homens não tem problema algum. E são cada vez mais as interessadas. Os Cavaleiros do Tempo estão a expandir-se.
Com escola nas Caldas da Rainha, Joaquim ensina todas as técnicas de combate medieval “a partir de manuscritos da época e de muito rigor histórico com as técnicas com a espada. Hélio, o cavaleiro que tem na espada a melhor amiga, refere que tudo isto “é uma arte marcial que não é chinesa nem japonesa, mas europeia”. Para aprender treino a cavalo, “o melhor em Portugal é o Olivier Bidault”, afirmam todos sem pestanejar.
Uma loira por dois camelos e cinco cabras
Por todo o Mercado, as mulheres destacam-se. Nos arrabaldes, as excluídas. Uma bruxa pendura-se numa árvore à espera que um nobre cavaleiro se descuide e seja atraído até à sua gruta. Lá dentro, os feitiços. Uma panela de três pés em lume alto, adagas e mezinhas que não divulga. “Vinde, vinde. Vinde que daqui já não sairás”.
Já dentro da cerca, atentas à passagem das comitivas de cavaleiros ou dos simples visitantes de ar atento ao que se passa, as prostitutas. De aspeto desleixado e alegre, não há vergonha em arranjar um pretendente. “Senhor, sois tão belo! Vinde comigo”, diz uma. Mas surge logo outra mulher que, com um puxão e em tom de segredo, diz ao cavaleiro que se quer ver livre da companheira e que até a vende por “três torreões e meio”, câmbio monetário utilizado por aqueles que assim quiserem dentro do Mercado Medieval. Sem conseguir concretizar casamento, seguem o seu caminho em busca de mais alguém.
Numa das encostas, o acampamento mouro. Ali as tendas de panos mais coloridos contrastam com o rigor nobre medieval. As mulheres têm extremos: caladas, submissas e com trajes de deserto, ou sorridentes odaliscas que deambulam por entre os homens de barbas fartas e turbantes. Os camelos não ficaram esquecidos e repousam entre as tendas, com os cães, burros e a falcoaria. Com os homens que passam acompanhados por mulheres, seja qual for a idade destas, há sempre a tentativa de fazer negócio.
Para um mouro, as mulheres são mercadoria. E, por isso, vendem-se e compram-se. “Uma loira por dois camelos e cinco cabras”, diz um. Mas, se for morena, também não há problema. No tempo em questão, a cor do cabelo é apenas um pormenor para “aumentar o preço do produto”. Aqui, como caricatura, nem as princesas e rainhas entre o povo escapam. É mulher, pode ser vendida. Porque é a olhar para o passado que se veem os contrastes com o presente. E que se aprende a agir no futuro.
Horário e preços
5.ª e 6.ª feira: 17h00-01h00
Sábado: 10h00-01h00
Domingo: 10h00-24h00
Entrada gratuita até aos 11 anos (inclusive)
Entrada para maiores de 12 anos: € 7,00
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