As primeiras memórias de filmes são as idas ao cinema com o avô: Condes, Éden ou o antigo Pathé, que também já foi discoteca e agora está transformado em hotel, era aí que Sérgio Graciano, hoje com 47 anos, passava grande parte das suas tardes em miúdo.
Mas o cinema não é a sua única paixão e, por causa do basquetebol, quase deixou para trás a carreira de realizador, que já soma alguns êxitos, como a série "Conta-me Como Foi", que fez para a RTP1 em conjunto com Jorge Queiroga e Fernando Ávila, a telenovela "Laços de Sangue", que venceu o Emmy Internacional em 2011, ou o filme "Perdidos".
O cineasta foi atleta profissional de basquetebol durante anos e tinha tantas certezas que entrou para o curso de Educação Física, que acabou por interromper para mais tarde mudar para Ciências da Comunicação.
Depois, uma coincidência boa na capital do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, o mais importante a realizar-se em Portugal ao longo de três décadas (1972 a 2002), e que durante dez dias do mês de setembro juntava cinéfilos de todo o mundo: "Um dia", conta Sérgio Graciano, "um amigo da Figueira da Foz, o Paulo, estava a fazer uma montagem de vídeos do Michael Jordan" - "Air Jordan", como ficou conhecido um dos melhores jogadores de basquetebol de todos os tempos -, "e comecei a fazer a montagem com ele. Aquilo deu-me algum prazer e talvez tenha sido aí que percebi que não queria fazer só desporto, queria também fazer algo ligado aos filmes".
"Gostava de fazer o meu cinema sem ter de recorrer a lobbying ou a cunhas, isso gostava"
Depois das idas ao cinema com o avô, vieram as idas ao cinema já na faculdade. "Todos os dias ia ao cinema", lembra. São muitos os filmes da sua vida, a começar pelos "típicos" "Star Wars" ou "Indiana Jones", que viu anda em miúdo, "mas houve dois muito da minha geração, "Cães Danados" e "Pulp Fiction", ambos de Quentin Tarantino.
"Tarantino, com tudo o que tem de bom e de mau, trouxe muitas coisas boas nesta volta que deu ao cinema. Para já, havia um carisma à sua volta; não tinha um curso, tinha trabalhado num videoclube, entusiasmou-se, juntou dinheiro, fez um filme", considera Sérgio Graciano. "Vou mentir se não disser que foram dois filmes que mudaram a minha vida".
Dois filmes que marcaram uma época, tal como o cinema onde os viu, o emblemático King (Triplex, inicialmente), que encerrou portas em dezembro de 2013 e - mais uma coincidência - foi construído por Leon Edery, pai do atual dono dos cinemas City, Eyal Edery, que ainda se lembra do dia em que colocou uma moeda israelita no cimento ainda fresco das escadas do primeiro multiplex de Lisboa.
Hoje, como não podia deixar de ser, Sérgio Graciano continua a ir ao cinema, e garante que vê "todos" os filmes portugueses. Concorda que ainda há muita gente de pé atrás em relação às produções nacionais e diz que, em parte, a culpa é de quem as faz. "Temos um problema - eu incluído: o nosso cinema não é sempre narrativo, quase nunca é. E isso faz com que as pessoas não se emocionem e não se aproximem do filme. Se lhe perguntar em quantos filmes portugueses já se emocionou, tenho a certeza de que não vai saber dizer três. A certeza absoluta. Acho que o problema do cinema português é que lhe falta o clique da emoção, as pessoas veem um filme e passado meia hora já se desligaram. E era bom que nos emocionássemos, porque a emoção leva a algum pensamento, a alguma conversa, a alguma reflexão".
É verdade é somos um povo sentimentalão, mas não mostramos. "O homem não chora - embora o homem chore -, é uma coisa cultural não mostrar sentimentos. E quem faz os filmes também não quer mostrar esse lado, essa fragilidade. E se não emocionamos as pessoas, elas não se identificam, não querem saber. Já sabem que não lhes toca e não vão querer ir ver o próximo filme. Por isso acredito que há uma grande responsabilidade dos criadores em as pessoas estarem afastadas do cinema. Quantas vezes chorou num filme português? Se calhar, nenhuma. Temos medo de criar essa empatia - ou, se calhar, temos medo de nos expor. Há qualquer coisa que não funciona".
"Os estrangeiros têm mais tempo para trabalhar, mas os portugueses são igualmente bons. Os estrangeiros, como estão sempre a filmar, podem errar à vontade"
De resto, não há grandes diferenças entre o cinema português e o cinema estrangeiro, a não ser os orçamentos e o tempo que cada um tem para trabalhar, realizadores e atores incluídos. "Os estrangeiros têm mais tempo para trabalhar, mas os portugueses são igualmente bons. Os estrangeiros, como estão sempre a filmar, podem errar à vontade, fazem outro a seguir. Se "Salgueiro Maia - O Implicado" fosse feito nos Estados Unidos, em vez de quatro semanas tinha sido rodado em quatro meses. Nem sequer é comparável".
"Salgueiro Maia - O Implicado" é o filme mais recente de Sérgio Graciano, agora em exibição. Quando recebeu o convite para realizar o filme, a primeira coisa em que pensou foi "quem é que pode fazer este filme? Não o fazer não estava sequer na equação e, automaticamente, na conversa com António Sousa Duarte e José Gandarez, os dois produtores, lembrei-me do Tomás Alves, primeiro porque acho que tem semelhanças físicas com Salgueiro Maia, depois porque é um ator denso - e estou sempre à procura de atores com densidade para os meus filmes".
O desafio foi grande, desde logo por se tratar do primeiro filme a arrancar depois do primeiro confinamento. "Era desde a DGS [Direção-Geral de Saúde] no plateau, a polícia a passar, as máscaras pela primeira vez, o gel, o lavar as mãos, o não poder estar toda a gente junta, os testes... Uma desgraça. Tínhamos indicações da DGS de quantas pessoas podiam estar nas filmagens e onde podiam almoçar, tínhamos de ter vinis de separação... Foi horrível", recorda o realizador. "Um filme dentro do filme".
Tratar-se de um filme de época também não facilitou a vida a Sérgio Graciano. Embora não tenham passado 50 anos sobre o 25 de Abril, "há um rigor histórico que não é fácil de manter, até porque há muita informação contraditória. Toda a gente acha que sabe como foi, mas, depois, uns dão umas informações e outros dão outras, é tudo diferente".
Ao longo do tempo, "as pessoas criam memórias que passam a ser certezas absolutas", diz. "E não são. Isso foi difícil, mas tivemos de fazer uma gestão dessa informação e fazer escolhas". De toda a maneira, "é um filme, não é um documentário". O pior, diz, "foram as fardas - e tivemos muito apoio do Exército, mesmo assim não foi fácil".
"O mercado em Portugal é tão pequeno que às vezes temos de fazer aquilo que não queremos porque precisamos de comer"
Entre começar e acabar mediaram dez meses, "três meses de pré-produção e cinco meses de montagem. Mas revi o filme há uns meses e decidi remontar algumas cenas, tirar coisas que não me pareceram fazer sentido e acrescentar outras. Por exemplo, decidi pôr rádios - durante todo o filme há sempre um rádio a tocar em cada cena... Acho que aconcheguei um bocadinho mais o filme. Parece-me. A distância é ótima, dá-nos outra perspetiva que não temos na altura".
Sérgio Graciano não sabe precisar o orçamento do filme, "mas custou seguramente mais de meio milhão de euros, claro. Fazer um filme custa, em média, à volta de 800 mil euros. O ICA [Instituto do Cinema e Audiovisual] costuma dar 600 mil euros por cada filme, por isso, mais um bocadinho que se vá buscar aqui e ali...".
Concorda que "os subsídios vão sempre para os mesmos", o que "é grave, porque em Portugal os mais novos não têm direito a subsídios nem podem andar a bater à porta do secretário de Estado ou do Ministério da Cultura", o que torna tudo "muito difícil". Ainda assim, "hoje as coisas mudaram muito, fazer cinema é muito mais democrático do que há 25 anos, o preço de uma câmara é muito mais baixo do que era. Muitas vezes falo sobre cinema com alunos das faculdades e estou sempre a dizer isto: o importante é fazer. Porque hoje qualquer pessoa pode ver um filme no YouTube ou noutro lado qualquer".
"Tenho sempre de andar com uma claquete atrás e com o cartão de sócio do Sporting (N.º5202)"
Não gosta de pensar muito nisso, o que sabe é que "gostava de fazer o meu cinema sem ter de recorrer a lobbying ou a cunhas, isso gostava". E tem conseguido. "Não tenho sempre subsídios do ICA, e quando não há subsídios não desisto da ideia de fazer. Tenho ideia que era o Martin Scorsese que dizia que um filme era para ele, outro filme era para eles. E vejo a coisa um bocadinho assim, há filmes que quero fazer e há outros que tenho de fazer. Porque é um engano pensar que escolhemos fazer o que quer que seja em Portugal, porque o mercado é tão pequeno que às vezes temos de fazer aquilo que não queremos, porque precisamos de comer".
Seja como for, acredita que "cada um tem o seu caminho. Tenho a sorte de trabalhar muito em televisão e fazer muitas séries. Gosto de fazer televisão da mesma maneira que gosto de fazer cinema. O que gosto é de contar histórias e por mim passava a vida a fazer isso. E atualmente é o que faço". Tem "nove filmes feitos nos últimos 11 ou 12 anos", o que "não é nada mau".
Entre os três objetos que não podem faltar ao cineasta está "um ipad, porque é lá que planifico a minha vida toda, as cenas todas dos filmes que vou fazer, o guião, o desenho de cena, uma claquete, porque sou tão viciado em filmar - se estou seis meses sem filmar já fico nervoso -, que tenho sempre de andar com uma claquete atrás, e o cartão de sócio do Sporting (N.º5202), para assistir a todos os jogos.
Se nunca pensou em fazer um filme ou um documentário sobre desporto? "Ainda hei de pensar num filme sobre basquetebol. Gosto muito de histórias de superação e quando tiver uma história gira gostava de fazê-la, seja sobre basquetebol, atletismo ou futebol. Mas acho muita piada a desporto, cresci com aquilo, é difícil isso sair de dentro de nós", responde.
Enquanto a história não chega, Sérgio Graciano já está a trabalhar numa nova série de seis episódios para a RTP, a "Codex 632". Ficamos à espera.
Comentários