Quando Siouxsie Sioux anunciou que iria regressar aos palcos, dez anos após a sua última dança pagã, uma onda gigante de entusiasmo refreado e pontilhado por uma atitude blasé (isto porque os góticos não sentem felicidade) percorreu as almas de todos quantos escutaram discos como “Kaleidoscope” (1980), “A Kiss In The Dreamhouse” (1982) ou “Tinderbox” (1986). É nos Banshees, a banda que formou em pleno período punk para acabar com o (seu, dos outros) marasmo existencial, que ainda se pensa quando se pensa em Siouxsie Sioux. É no baixo de Steven Severin que se pensa quando canções como 'Metal Postcard' nos corroem as entranhas, seja na versão alemã ou na inglesa. É na guitarra de John McGeoch que se pensa quando 'Spellbound' nos sacrifica ao altar de um deus desconhecido. E se a questão for o ritmo, olhe-se para todos os artistas que não fazem rock n' roll que se sentiram inspirados pelos britânicos: Tricky, LCD Soundsystem, Depeche Mode, Massive Attack, The Weeknd.
Os Banshees são, eram, uma instituição do período pós-punk, quando três acordes e uma qualquer verdade passou a ser uma coisa muito chata. E ao seu leme estava Siouxsie, cujo nome artístico era colado ao do grupo, olhos pintados de um negro egípcio e a atitude de uma bruxa que, ao mesmo tempo que afiava a faca e metia o caldeirão ao lume, nos cantava uma serenata pop com a ajuda de uma voz, ainda hoje, incomparável. Em 2022, a Sky Arts elegeu-a como um das 50 artistas mais influentes do Reino Unido, nos últimos 50 anos. A lista das pessoas que tocou é infindável, o rol de imitadores e imitadoras também. É o que acontece quando uma presença é maior do que o seu redor.
Siouxsie: Poderia ter sido muito maior, mas foi à mesma imensa
No MEO Kalorama, a presença de Siouxsie Sioux poderia ter sido muito maior do que aquilo que realmente foi – não fosse pelo facto de ter tocado a uma hora imprópria para sonoridades como a sua (as seis da tarde), de não ter tido uma quantidade considerável de fãs genuínos (gente que veste de preto e usa espartilho) a vê-la, de ter abandonado o palco após cerca de uma hora, cortando do alinhamento canções como 'Israel' ou 'Hong Kong Garden', deixando alguns fiéis à beira de um ataque de nervos. Poderia ter sido muito maior, mas foi à mesma imensa. Auroras boreais no ecrã de fundo, ouvimos o início de 'Night Shift', vimos Siouxsie a entrar, glorioso vestido prata a adornar-lhe um corpo cuja idade não reflete a atitude, algo semelhante a um sorriso largo corroeu-nos a face. A voz ainda lá estava, praticamente, mesmo que o som (uma queixa constante, ao que parece) não fosse o melhor.
A coreografia esvoaçante dessa veterana Lilith antecipou o primeiro momento punk de um dia deles repleto. “Que faz este espaço vazio aqui?”, perguntou, referindo-se ao corredor que separava lado esquerdo e direito, em frente ao palco. 'Arabian Knights' trouxe pontapés na atmosfera, movimento que repetiria ao longo do concerto. Depois, lançou-se à jazzística 'Here Comes That Day' (uma de duas canções de sua autoria, e não de todos os Banshees, que fizeram parte do alinhamento) e à excecionalmente dançável 'Kiss Them For Me', uma bola de espelhos a surgir no ecrã, outra, a dos Arcade Fire, já montada, a invejá-la lá do alto.
Não houve 'Israel', 'Hong Kong Garden', 'Voices (In The Air)', 'Jigsaw Feeling', 'Metal Postcard', 'Tattoo', 'Make Up To Break Up', 'She's A Carnival' e tantas, tantas outras. Mas houve aquela que é provavelmente a melhor versão dos Beatles alguma vez feita: 'Dear Prudence', a Prudence que lhe dá nome a ganhar contornos verdadeiramente psicadélicos, os mesmos que inspiraram a canção original. Se 'Lands End' soou quase claustrofóbica, 'Spellbound', uma canção «especial, porque vocês foram incríveis», pôs centenas de pessoas a flutuar (bruxaria é isso mesmo). A imprescindível 'Happy House' viu-a lançar o tripé para fora do palco, antes de 'Cities In Dust' e 'Into a Swan' darem por terminada uma séance lamentavelmente curta mas que, ainda assim, encheu as medidas de quem a viu pela primeira vez ao vivo e sabe que esse momento dificilmente se repetirá. Num festival de coisas terrenas, Siouxsie, que nem se deixou fotografar, foi a teologia que faltava.
Ao longo de três dias de festival, passaram por aqui ícones como Karen O, sempiterna vocalista dos Yeah Yeah Yeahs, que levou à histeria quem sonhava em ver 'Y Control' ao vivo. Passou por aqui Aphex Twin, eletrónica caótica mas dançável, metal chocando contra metal e montagens assustadoras de figuras públicas. Passou por aqui Ethel Cain, jovem norte-americana que contou com a presença em palco de Florence Welch e que assinou um daqueles concertos para mais tarde recordar, narrativas onde peso e pop caminhavam de mãos dadas. Passou o vento, erguendo poeira por tudo quanto era sítio, passou a indignação, ao constatar-se que a comida e a bebida eram vendidas a preços absolutamente impróprios para um país onde o salário mínimo se cifra nos 760 euros.
A última banda de rock n' roll ainda em funções
Mas passou também um furacão chamado Hives, que se apresenta ao público como a última banda de rock n' roll ainda em funções. Rock n' roll no sentido mais rasgado e mais divertido que a expressão pode ter, sobretudo esta última: ver os Hives ao vivo é como passar uma tarde a ver a Cartoon Network. O nível de animação e gargalhadas é exatamente o mesmo. A música acaba até, por vezes, por ficar para segundo plano. O modus operandi (ou será 'Bogus Operandi'?) dos Hives é a figura do seu vocalista, “Pelle” Almqvist, homem capaz de dizer as maiores barbaridades do mundo com o maior sorriso na cara – e ter gente que realmente acredita ou finge acreditar no que ele diz, porque o mundo é mais divertido quando levamos a sério o braggadocio.
Isso é, aliás, magia: se acreditarmos genuinamente as coisas acontecem. E é por isso que acreditamos que os Hives são a maior banda do mundo, porque eles assim o dizem, e dizem-no com toda a convicção do punk tornado canções-bomba de garagem. Acreditamos, porque não só tinham ninjas a fazer o soundcheck e não só entraram ao som da marcha fúnebre de Chopin, como 'Walk Idiot Walk' soa tão bem que nem parece que os seus autores já levam 30 anos de carreira. «Somos lendas do rock, ok?», atira Pelle, ou Presidente Pelle, como um fã amavelmente escreveu num cartaz.
O mote era a apresentação do seu novo álbum, “The Death Of Randy Fitzsimmons”, e a este anúncio seguiu-se um imediato e hilário «de nada!», porque a sociedade só tem que lhes prestar vassalagem (e só as fãs de Pabblo Vittar que já se encontravam nas grades o não fizeram). A toda a panóplia de tiradas juntou-se o sarcasmo: «não importa o que eu diga, vocês vão responder com um yeah!», e eis que o yeah! surgiu. 'Good Samaritan' é interrompida a meio para que o público aplauda as poses dos cinco elementos dos Hives, 'Go Right Ahead' é dedicada por Pelle a uma pessoa muito especial, ele próprio. 'Stick Up', uma canção sobre tudo ser um nojo, antecedeu um tema a pedido de um fã, 'Two-Timing Touch and Broken Bones', e uma novidade: os Hives regressarão a Lisboa já no próximo dia 6 de outubro, para um concerto no Capitólio. 'Hate To Say I Told You So', um dos pontos mais altos do concerto, desaguou imediatamente na rasgadinha 'Trapdoor Solution', com uma diatribe anti-encores a anteceder 'Come On!' e 'Tick Tick Boom', o moshing a fazer levantar uma gigantesca nuvem de poeira e os suecos a saírem do palco como reis absolutos. Cartoonesco, sim, aborrecido, nunca. Longa vida aos Hives.
Em Lisboa, os Arcade Fire voltaram a ser jovens
Para aquele que foi o seu décimo concerto por cá, os Arcade Fire vieram munidos de todos os êxitos, ou quase. Num alinhamento semelhante ao do festival Cala Mijas, em Espanha, que se realizou nas mesmas datas que o MEO Kalorama e com este partilhou praticamente todo o cartaz, os canadianos vieram com fome de algo: à sétima canção já tínhamos ouvido 'Neighborhood #3', 'Rebellion (Lies)', 'Reflektor' e 'Afetrlife', esta última com uma pequena incursão lírica por 'Temptation', clássico dos New Order.
Para trás parecem ter ficado as acusações de má conduta sexual feitas contra o vocalista Win Butler, para trás ficou a depressão de uma banda que parecia ter o coração no sítio certo a passar por um dos piores momentos da sua carreira. Em Lisboa, voltaram a ser jovens. Canção atrás de canção, em registo acelerado, sem parar, com poucas frases ditas por Butler para além de uns “obrigados”, o muito público a reagir com a efusividade que a música dos Arcade Fire exige. Foi como se esta fosse a primeira vez, e não a segunda no espaço de um ano.
Vale a pena continuar a ver concertos dos Arcade Fire mesmo que não tenham nada de novo, nem em termos de canções nem de espetáculo, a apresentar? 30 ou 40 mil fãs dirão que sim, os próprios concordarão, tendo entregue uma vez mais a quem os veio ver o suor que lhes é característico. Logo em 'Age of Anxiety (Rabbit Hole)', com que abriram o espetáculo, a comunhão entre artista e público foi por demais evidente, milhares de braços ondulando na noite. «Dizemos a todas as bandas que conhecemos para tocarem em Portugal», diria o vocalista mais tarde.
'Neighborhood #3', que terminou em registo free, foi o momento alto de um concerto que sofreu com o som mas não com o espírito. Depois de se atirar para o público para um curto crowdsurf, depois de pedir a alguém para que lhe segurasse o microfone em 'Rebellion (Lies)', Win Butler ainda se dignou a passear pelo meio da multidão, guitarra erguida no alto como um punho revolucionário. Se ainda existe confiança para o seguir nessa demanda é outra história, e é uma discussão que já se teve em 2022. Por agora ficamo-nos pelo maravilhoso ofuscar das pequenas explosões de luz durante 'The Lightning I', pela dedicatória a David Bowie em 'The Suburbs' e pela apoteose com 'Wake Up'.
O MEO Kalorama regressa em 2024, a 29, 30 e 31 de agosto.
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