Uma pessoa que tenha apenas o mais vago conhecimento da palavra grunge, se instada a dar exemplos de bandas que estejam relacionadas com a cena de Seattle que ganhou esse nome, providenciará apenas uma: os Nirvana, cujo sucesso global – alicerçado em “Nevermind” – ultrapassou em larga escala quaisquer amarras que pudessem ter com esse rótulo. Quase como se os Nirvana tivessem ido para além do grunge, e criado o seu próprio estilo e a sua própria (sub)cultura. Outras poderão ainda indicar os Pearl Jam, que ao longo dos últimos 30 anos conseguiram sobreviver a todos os percalços que se lhes depararam. Nem pensar em recordar aquelas que a história tratou de colocar nas sombras, como os Tad.
Outros, cujo interesse no grunge não se limita à raiva e ao bom aspecto de Kurt Cobain, e sim à música, poderão mencionar os Mudhoney, os Alice In Chains, os Screaming Trees... E, talvez acima de todas estas, os Soundgarden. Apesar de a génese da sonoridade grunge estar, na opinião de muitos, naquilo que os Green River fizeram nos anos 80, a verdade é que os Soundgarden não podem senão ser tratados como verdadeiros pioneiros. E porquê? Porque, de todas as bandas que alimentaram Seattle e das quais Seattle se alimentou, os Soundgarden foram os primeiros a recolher algo de extrema importância no que à disseminação do grunge, e de tudo o que o rodeou, diz respeito: o interesse das grandes editoras.
Diz-se do grunge que há quatro bandas que se impuseram, comercial e culturalmente falando, sobre as outras: Nirvana à cabeça, claro, seguidos pelos Pearl Jam, pelos Alice In Chains e pelos mesmos Soundgarden que, à sua maneira, influenciaram todas as outras três. Kurt Cobain admitiu certa vez que “Bleach”, primeiro álbum dos Nirvana, foi bastante influenciado pelo que os Soundgarden já vinham fazendo anos antes, e chegou a pensar candidatar-se ao lugar de baixista do grupo. Os Alice In Chains “copiaram-lhes” a afinação das guitarras, mudando a corda mais grave de mi para ré (em inglês, drop-d tuning), algo que os Soundgarden já tinham ido buscar aos Melvins. E os Pearl Jam seriam hoje uma banda muito diferente caso Eddie Vedder não tivesse tido a “benção” de Chris Cornell, que lhe deu um papel curto no disco dos Temple of the Dog e o apresentou à cidade.
Desde a morte de Chris Cornell, em 2017, que dos Soundgarden só temos tido más notícias: a disputa dos restantes membros do grupo com a viúva do seu vocalista, Vicky Cornell, tem colocado uma sombra má naquilo que era o legado do grupo – uma série de temas fabulosos, pesados, negros, metálicos, que culminaram no êxito que foi 'Black Hole Sun', a canção do ano de 1994. E os discos? Há “Superunknown”, também desse ano, há “Louder Than Love”, de 1989, e há “Badmotorfinger”, o álbum que os levou para a ribalta mesmo com a forte concorrência de dois dos seus pares, o inescapável “Nevermind” e ainda “Ten”, dos Pearl Jam. Até aí chegarem, fizeram tudo à sua maneira: de forma cautelosa e pensada, sem cederem à tentação ou ao desespero. E, como um sol, fizeram com que todos gravitassem à sua volta.
De olho aberto e à procura
A história começa e acaba com Chris Cornell, como não poderia deixar de ser. Afinal de contas, estamos a falar de alguém que, a par de Layne Staley, foi durante muito tempo considerado (e ainda o é) como o detentor da maior voz de entre todos os vocalistas de Seattle, capaz de um alcance ao alcance, passe a expressão, de poucos. Um Chris que não começou por ser Cornell, mas sim Boyle, alterando o apelido para o nome de solteira da mãe, ainda na adolescência, aquando do divórcio dos pais. Como costuma acontecer com qualquer pessoa, foi nessa altura que se começou a interessar pela música, passando dos Beatles, dos Rush ou de David Bowie para o punk que então despontava. E também para as drogas – pouco mais havia nos subúrbios de Seattle –, que cedo abandonou após uma má experiência com PCP, ou pó de anjo (fenciclidina).
De início, não foi o microfone, mas sim a bateria aquilo por que se apaixonou. Após tocar em alguns projetos que mal chegam a ser nota de rodapé, Cornell responde a um anúncio no jornal local “The Rocket” e junta-se aos Shemps, onde já estavam Kim Thayil e Hiro Yamamoto, que haviam partido de Chicago para Seattle. «Fomos à procura de aventura», afirma Thayil em “Everybody Loves Our Town”. O objetivo era o de se reunirem com Bruce Pavitt, o grande mago da Sub Pop, que também havia migrado para o noroeste. «Ele mandava-nos cassetes de bandas que adorávamos, como os Blackouts ou os Beakers».
Os Shemps são hoje vistos, por alguns, como fazendo parte da cena de Seattle, mas a verdade é que não passavam de uma banda de bar que tocava alguns temas blues e um ou outro sucesso dos Doors ou de Jimi Hendrix. «Não foram influenciados por nada em Seattle e não influenciaram nada em Seattle», admitiu Thayil. Mas foi aqui que Cornell decidiu testar-se enquanto vocalista, espantando mesmo aqueles que não viam nos Shemps nada de especial, como Mark Arm, dos Mudhoney: «O que quer que tocassem, o Chris soava ao vocalista dessa banda. Se tocassem Doors, soava exatamente ao Jim Morrison. Só pensava: 'este gajo sabe cantar'».
Com o fim do grupo, Cornell muda-se para a casa de Hiro Yamamoto, com quem trava algumas jam sessions ao mesmo tempo que ia ganhando a vida com o seu trabalho num restaurante. Kim Thayil depressa se juntaria à dupla, e a química entre todos é instantânea. «Da primeira vez que tocámos juntos, compusemos três canções», conta o guitarrista. «No dia seguinte, compusemos mais duas. Só sorríamos e pensávamos que esta era a experiência mais fixe que já tínhamos tido. Foi tudo tão natural e espontâneo».
Como tal, o trio não poderia senão seguir em frente e mostrar-se ao mundo sob o nome Soundgarden, retirado a uma instalação artística presente em Seattle. Após alguns meses de ensaios, com o autodidata Cornell a comprar uma guitarra para o melhor ajudar a compor os temas que tinha na sua cabeça, os Soundgarden reúnem quinze temas e estreiam-se ao vivo a 21 de dezembro de 1984, a abrir para uma banda de Nova Iorque, os 3 Teens Kill 4. Mesmo que a música não tenha causado grande impressão à primeira, o facto de serem uma das poucas – ou mesmo a única – banda interracial no auge do underground norte-americano (Kim Thayil é de origem indiana, Hiro Yamamoto japonesa) colocava-os à parte de todas as restantes. «O Kim e eu falávamos sobre isso muitas vezes. A cena rock era praticamente toda branca», explica Yamamoto.
Ser baterista e vocalista acabaria por ser um trabalho demasiado árduo para Chris Cornell, que naqueles tempos não conseguia ser – digamos – perfeito a fazer ambas as coisas. É então que entra em cena Scott Sundquist, mais velho, casado, pai de filhos, para tomar conta das baquetas. Da bateria para o centro do palco, Cornell depressa se tornará famoso pelas suas performances: tronco nu, investidas na direção do público, ginásticas várias. E a voz, claro. «Houve uma altura em que as pessoas começaram a dizer que ele era um grande vocalista, talvez o melhor vocalista da cena rock», afirma Thayil em “Total F*cking Godhead”, biografia de Chris Cornell lançada em 2020. «Foi aí que ele se começou a focar a sério em ser o melhor vocalista possível, de forma a ser ainda melhor».
Bruce Pavitt, porém, lembra as coisas de forma diferente em “Sub Pop USA”, um compêndio de todos os textos que elaborou nos anos 80, na fanzine e na coluna de jornal que daria o nome à sua editora. «A cena de Seattle reagiu de formas diferentes ao Chris Cornell, porque ele não soava a um vocalista amador inspirado; soava profissional. E isso era algo que parecia deslocado, dentro dos infames clubes de Seattle», escreve. Uma inspiração, ou um profissionalismo, que se estenderiam aos demais membros do grupo, sobretudo quando algumas editoras começam a prestar-lhes atenção. «O burburinho em torno da banda estava a crescer, e as editoras começaram a mostrar interesse. Eles estavam prestes a lançar pela Sub Pop, e previram que iriam precisar de advogados e de um contabilista», escreve David de Sola em “Alice In Chains: The Untold Story”. Os destinos do grupo passam então a ser geridos por Susan Silver, à altura namorada de Cornell, que após alguma insistência aceita ser a manager dos Soundgarden, tendo tido alguma experiência prévia com os U-Men e os First Thought.
Angariando fiéis
A história dos Soundgarden está intrinsicamente ligada não só ao grunge, mas também à editora que mais fez pela cena de Seattle, a Sub Pop. Bruce Pavitt era amigo de longa data de Kim Thayil (foi até seu cunhado por algum tempo), e Jonathan Poneman, que se tornou sócio de Pavitt a conselho de Thayil, havia ficado pasmado com o que testemunhou num dos primeiros concertos do grupo. «Ele foi a primeira pessoa a plantar-nos aquela semente que dizia: 'vocês vão ser o futuro da música rock'», contou Cornell, citado em “Total F*cking Godhead”.
Com o financiamento de Poneman e a astúcia de Pavitt, a Sub Pop acaba a lançar o primeiro single dos Soundgarden ('Hunted Down' / 'Nothing To Say'), ao qual se segue o EP “Screaming Life”. Foi Pavitt quem convenceu a banda a começar por um EP, em vez de se atirar de cabeça para o maravilhoso mundo dos LPs. Segundo Thayil, o raciocínio de Pavitt era o de que «existia uma miríade de bandas independentes desconhecidas a lutar por um grupo minúsculo de fãs». «Para quê cobrar nove dólares por dez ou doze canções, quando se pode facilitar-lhes a vida e levá-los a apostar no grupo por apenas seis dólares?».
“Screaming Life” é editado já sem Scott Sundquist, que saiu da banda para se dedicar à família. O substituto? Matt Cameron, que já era um nome conhecido através do seu trabalho nos Skin Yard. O EP acaba a gerar algumas ondas, atraindo editoras com algum peso dentro da cena independente norte-americana, como a SST, que com grupos como os Black Flag tanto haviam alimentado os sonhos punk adolescentes dos membros dos Soundgarden. «Éramos um bocado a banda 'da cena'», contou Cornell a Greg Prato, autor de “Dark Black and Blue”, biografia dos Soundgarden lançada em 2019. «Até estávamos preocupados em sermos demasiado falados. Foi a primeira vez que uma banda local recebeu tanta atenção».
Se isso os incomodava, mais essa atenção cresceria após Faith Henschel, radialista da KCMU, ter gravado uma cassete apropriadamente intitulada “Bands That Will Make Money” - ou, em tradução literal, “Bandas que Vão Fazer Dinheiro”. Essa cassete acabará a passar de mão em mão por entre os A&Rs de diversas grandes editoras, com os Soundgarden a deixar bocas abertas dado o apelo daquele rock, bojudo e negro. Entre as editoras que a ouviram, foi a A&M aquela que mais agressivamente “perseguiu” o quarteto. «O que me entusiasmou foi a energia, a crueza e a voz do Chris Cornell», afirma Aaron Jacoves, diretor de A&R da A&M, em “Everybody Loves Our Town”. «Fui falar com o Chris, dei-lhe 600 dólares e disse-lhe: façam mais canções. Sei que outros discordarão, mas a verdade é que [a A&M] foi a primeira a chegar à cena de Seattle».
Danos novos
No entanto, e apesar de Seattle se ter enchido de A&Rs – Corbin Reiff alega em “Total F*cking Godhead” que os Soundgarden foram os catalisadores no que à atenção das editoras sobre Seattle diz respeito –, o grupo rejeita todas as propostas. Não se sentiam preparados para dar o salto. «Não queríamos ser colocados numa posição onde alguém nos diria para fazer algo que não queríamos», contou Cornell em entrevista à revista “Spin”. «E não éramos uma banda comercial. Não tínhamos, à altura, um público comercial».
Jacoves não desistiu, e continuou a financiar as maquetas dos Soundgarden, que acabariam por dar origem a “Ultramega OK”, o seu primeiro álbum, lançado pela SST. O contrato que os Soundgarden assinam é válido apenas por um disco, e para Jacoves não havia mal nenhum em deixar o grupo assentar ainda mais o seu nome antes de voltar à carga. “Ultramega OK” valeu-lhes, de forma algo surpreendente, uma nomeação para um Grammy, e foi também um crucial primeiro passo na definição da sonoridade dos Soundgarden – ainda que a banda não tenha ficado satisfeita com a mistura final.
O seu sucessor, “Louder Than Love”, de 1989, marca a estreia dos Soundgarden na A&M, e leva a banda a fazer as suas primeiras grandes digressões, deixando boas impressões por onde quer que passasse. Não só: vale-lhes também a atenção de um senhor prestes a tornar-se numa das maiores estrelas rock do planeta, Axl Rose. Em entrevista à “Rolling Stone”, Axl deixa rasgados elogios a Chris Cornell, marcando um ponto de viragem na forma como os Soundgarden eram encarados pela sua própria editora. «Achámos que podíamos ter em mãos uma banda maior que o que pensávamos», afirma Aaron Jacoves em “Total F*cking Godhead”.
Porém, o caminho traçado pelos Soundgarden depressa embateria em algo que não o amor. Primeiro, Hiro Yamamoto decide sair da banda, enfastiado não só com a direção sonora que esta estava a seguir – demasiado “metálica” na opinião do baixista – mas também com as performances de Cornell, que ameaçava tornar-se mais conhecido pelo seu tronco nu que pela sua voz. Após um concerto em Pisa, na Itália, Yamamoto bate com a porta e as restantes datas da digressão europeia são canceladas. É substituído por Jason Everman, que já tinha feito parte dos Nirvana, e que nunca conseguiu deixar a sua marca nos Soundgarden; um ano depois, também ele sairia, entrando para o seu lugar Ben Shepherd.
Outra parede na qual os Soundgarden, e sobretudo Chris Cornell esbarrariam, foi a morte de Andrew Wood, em 1990. A banda estava em digressão quando soube da morte do amigo e colega de quarto do seu vocalista. «Foi pesado. Não foi um momento nada bom», afirma Eric Johnson, tour manager dos Soundgarden, em “Total F*cking Godhead”. «O Chris estava desolado. De todos nós, era o mais próximo do Andy». O próprio Cornell admitiria, mais tarde, não ter lidado bem com a morte do vocalista dos Mother Love Bone. «Muitas vezes iria a conduzir, e olhava pela janela e pensava que o tinha visto».
Uma gaiola enferrujada
Para Kim Thayil, a morte de Andrew Wood mudou radicalmente a carreira dos Soundgarden, e sobretudo de Chris Cornell, que se tornou mais focado no seu trabalho. «Deixou-se de tretas. Tornou-se mais prolífico», diz o guitarrista em “Everybody Loves Our Town”. Por alturas da morte de Wood, em 1990, Cornell passou a trabalhar tanto no disco dos Temple of the Dog como em “Badmotorfinger”, o terceiro álbum de estúdio dos Soundgarden. A inclusão de Ben Shepherd, que ao contrário de Everman mostrava-se disposto a contribuir para o processo criativo do grupo, também ajudou. «A banda recuperou algum do espírito que tinha tido nos bons velhos dias com o Hiro. Transformámo-nos naquilo que nos tornámos no “Badmotorfinger”».
Bom é que o tenha feito, dado que este foi sem sombra de dúvida «um dos períodos mais tumultuosos da história da banda», conforme admitiu o próprio guitarrista à “Spin”. Como tal, aquilo que se escuta em “Badmotorfinger”, lançado a 8 de outubro de 1991 (e não a 24 de setembro, no mesmo dia de “Nevermind”, como algumas fontes indicam) é o som de uma banda à procura de expurgar os seus demónios: um «jardim de sons», como lhe chamou Lauren Spencer para a “Spin”, alicerçado numa determinada ideia de metal – ainda que os elementos do Soundgarden viessem mais do punk – e com letras inteletuais o suficiente para que a Geração X perdesse tempo a decifrá-las, e a decifrar-se.
Letras essas que surgiram durante uma estadia de Chris Cornell em Kalaloch, um pequeno resort no estado de Washington, com vista para o Oceano Pacífico, semanas antes do início das gravações. Na sua bagagem estavam já algumas ideias para temas e para melodias, juntamente com as maquetas gravadas por Thayil, Shepherd e e Cameron. «Muitas pessoas gostam de ir para sítios que as inspirem, onde aquilo que os rodeia irá fazer com que se sintam relaxados. Comigo é o contrário: quanto menos coisas a acontecer, melhor me sinto a escrever», explicou Cornell, citado em “Total F*cking Godhead”. Em poucos dias, as páginas brancas do caderno que havia levado consigo estavam repletas de ideias.
Ainda antes da explosão Nirvana, já a A&M acreditava ter em mãos um diamante em bruto, opinião transversal à própria banda e à imprensa especializada, se não mesmo aos fãs. Certo é que a pressão gerada por esse estado de espírito pode ser insuportável para qualquer grupo relativamente novo, mas os elementos dos Soundgarden nunca se deixaram abater; aliás, Cornell parecia estar definitivamente preparado para se tornar, talvez não numa estrela rock, mas reconhecido o suficiente pela sua arte. Nem o seu casamento com Susan Silver, pouco antes do início das gravações, o fez parar.
“Badmotorfinger”, o título, nasce de um trocadilho com 'Bad Motor Scooter', canção dos Montrose, banda hard rock dos anos 70 onde despontou um jovem Sammy Hagar. E, de acordo com Corbin Reiff, Chris Cornell foi de facto o “motor” que deu origem ao disco. «Durante dias e meses a fio, ficou obcecado com dar forma e melhorar cada elemento de cada canção», escreve. «O “Badmotorfinger” tornou-se na sua vida: uma paixão na qual depositou cada pedaço de si, ao ponto de chegar a perder objetividade sobre a qualidade do que estava a fazer».
De uma jam session entre Ben Shepherd e Matt Cameron surgiu 'Jesus Christ Pose', uma das canções mais aclamadas do álbum. O título é uma crítica aos messias de plástico – como estrelas rock, ou modelos – que, até hoje, adornam capas de revistas procurando imitar Cristo. É uma das poucas faixas dos Soundgarden cuja composição foi creditada a todos os membros do grupo, e gerou alguma polémica quando o seu respetivo videoclip chegou à MTV: a figura de uma mulher pregada a uma cruz não agradou aos setores mais conservadores. «Enquanto aspeto visual, leva as pessoas a pensar, já que as mulheres têm sido basicamente perseguidas desde tempos imemoriais», explicou Cornell. Mas a polémica teve o efeito que as “polémicas” costumam ter: levou o grande público a falar dos Soundgarden... E isso traduziu-se em mais cópias vendidas.
Outra, 'Rusty Cage', nasceu durante uma digressão na Europa e de algum cansaço sentido por Cornell. Antes de lhe dar o título pelo qual é hoje conhecida, o músico começou por nomeá-la 'Hillybilly Sabbath', em homenagem aos titãs do heavy metal, os Black Sabbath. O som e a fúria fez dela uma das canções mais aclamadas de “Badmotorfinger” - tanto, que Johnny Cash, rei da música country, pegou-lhe anos mais tarde e ganhou com isso uma nomeação para um Grammy. «Quando o Johnny Cash fez uma versão da 'Rusty Cage', foi a primeira vez que me elogiaram em relação às minhas letras», admitiu Cornell.
Poses de Cristo
Seattle nunca tinha vivido um ano como aquele de 1991. A música ouvia-se em cada esquina, e até Hollywood começava a olhar para o Noroeste; em março, com os Soundgarden à volta de “Badmotorfinger”, Cameron Crowe dá início às filmagens de “Singles”, filme lançado em 1992 que age como uma espécie de carta de amor à cena de Seattle. O realizador havia pensado, aliás, em Chris Cornell para o papel do jovem músico fictício Cliff Poncier, que acabou por ir para Matt Dillon. «O Chris não queria abandonar o seu trabalho para andar em busca de um sonho Hollywoodesco, que nunca havia sido seu», explica Corbin Reiff. Mas o vocalista acaba por ter uma curta participação em “Singles”, interpretando-se a si próprio – sem t-shirt, claro – e entregando uma canção intitulada 'Seasons', para a banda-sonora do filme, que acabou por marcar a sua primeira incursão pelo mundo dos artistas solo.
Com “Badmotorfinger” terminado, faltava mostrá-lo ao mundo. Entra em cena um “velho conhecido”: Axl Rose. Os Guns N' Roses, prestes a editar os dois tomos de “Use Your Illusion”, precisavam de alguém que os acompanhasse em digressão, e Susan Silver conseguiu o lugar para os Soundgarden. Quando dada à banda pela manager, que transportava uma caixa com novas t-shirts dos Soundgarden, a notícia foi recebida com a indiferença típica de um punk: ninguém disse uma palavra durante meio minuto... Até que alguém pergunta o que levava ela na caixa. As peripécias que viveriam na estrada com os Guns N' Roses, que dariam outro artigo, não os entusiasmaram muito mais.
De forma a ajudar nas vendas, a A&M cria um conceito de marketing que os U2 praticamente copiariam mais de 20 anos depois: colocar à venda 1500 unidades de um Walkmen especial, com uma cópia de “Badmotorfinger” trancada no seu interior. Cada unidade vinha acompanhada de um número de telefone para o qual os fãs podiam ligar, e partilhar a sua canção favorita do disco; alguns tiveram a oportunidade de assistir a um concerto dos Soundgarden, com tudo pago.
Se 'Jesus Christ Pose' e 'Rusty Cage' fizeram as delícias de alguns, juntamente com 'Slaves & Bulldozers', foi 'Outshined' – tema onde o verso I'm looking California and feeling Minnesota, que o próprio Cornell apelidou de «imbecil» – que se tornou no maior sucesso de “Badmotorfinger”. E foi também 'Outshined' que o fez perceber que havia deixado de ser Christopher John Cornell, o jovem com bom gosto musical e aptidão para a coisa, para passar a ser Chris Cornell, o vocalista de uma das maiores bandas do mundo. Certa vez, conta Corbin Reiff, Cornell passeava-se pelas ruas às quatro horas da madrugada quando foi reconhecido por um “simples” talhante. «Foi um momento surreal, mas importante; foi o início da sua vida enquanto figura pública».
«Esse foi um dos símbolos de que as coisas, na indústria, estavam a mudar», afirma Susan Silver em “Grunge Is Dead”. «Noutra editora, com menos apoio, talvez a 'Outshined' não tivesse passado tantas vezes na rádio como passou – porque a equipa de promoção não estaria tão focada, ou porque a relação com a MTV não teria existido». Juntamente com “Nevermind”, com “Ten” e com o que já vinham fazendo os Alice In Chains, 'Outshined' junta-se a uma panóplia de lançamentos que mudaram para sempre o rock n' roll alternativo e a forma como este era acolhido pelos grandes públicos.
Quando a “Spin” coloca Chris Cornell na capa, no outono de 1992, já o grunge dominava as rádios, a MTV e as conversas de melómanos espalhados por quase todo o planeta. A ascensão de “Nevermind” ao topo tinha significado a vitória do modo alternativo de fazer a música, e havia arrastado todos os que oscilavam na órbita da cena de Seattle. «Chris Cornell e os Soundgarden criaram música e andaram em digressão pelo mundo relativamente escondidos, à espera que a cultura pop os acompanhasse. Nesse momento, fê-lo», escreve Reiff.
«Fomos aposta durante alguns anos. De repente, existiam muitos como nós», completa Kim Thayil em “Dark Black and Blue”. «Não tínhamos chegado sequer a disco de ouro, e os Nirvana já tinham conquistado múltiplos discos de platina. Fomos disco de ouro por volta da mesma altura dos Pearl Jam, e a carreira deles disparou pouco depois».
Esta frase poderá dar a indicar algum rancor por parte de uma banda que foi sobretudo pioneira, e Matt Cameron, que depois até se juntaria aos Pearl Jam, parece caminhar nesse sentido: «Só me chateia quando as pessoas pensam nas bandas de Seattle sem a ordem cronológica certa. Fomos os primeiros a assinar por uma grande editora, mas pensa-se que os Nirvana foram a primeira banda de Seattle», diz. Pois: uma pessoa que tenha apenas o mais vago conhecimento da palavra grunge... Só se recordará dos Nirvana. Mas quem viveu a cena no seu auge nunca se esquecerá dos Soundgarden – daí que a morte de Chris Cornell tenha abalado todo um mundo rock, daí que ainda se sonhe com um disco póstumo que só deverá ver a luz do dia quando os Soundgarden e Vicky Cornell resolverem os seus problemas judiciais. Cornell chegou a dizer que nunca havia pensado em Seattle, ou na sua própria banda, como um fenómeno à escala mundial. “Badmotorfinger” provou que o vocalista estava errado – e mais estaria, quando três anos depois, 'Black Hole Sun' disparou nas rádios, na MTV, nos walkmen. Como que para dizer que os primeiros é que são sempre os últimos.
Ao longo de 2021, o SAPO24 publica uma série de artigos focados no grunge, fenómeno e género musical que atingiu o seu apogeu há precisamente trinta anos: “1991: E Tudo o Grunge Mudou”. Acompanhe-nos nesta viagem.
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