"Sei bem que estou rodeada de pessoas que acham que fariam melhor do que eu. Pessoas fortes, personalidades fortes, líderes mais naturais, talvez mais adequados para liderar e deixar uma marca. Mas, para o bem e para o mal, a coroa aterrou na minha cabeça".

A linha do episódio 8 ("Pride & Joy"), da primeira temporada de "The Crown", interpretada de forma assertiva — que faz eriçar o pelo no braço — pela atriz Claire Foy, sumariza da melhor forma o que a série de Peter Morgan trata: os dramas da família real britânica. Neste caso específico, trata-se de uma resposta da rainha ao marido durante uma discussão em que esta sente a pressão vinda de todos os lados, de parentes a políticos oprimidos.

Tal como o título implica, a série que já conta com 30 episódios distribuídos por 30 horas - em breve 40 - é sobre a família real britânica e cobre um vasto período (70 anos) da vida dos famosos monarcas, sendo que os episódios perscrutam os momentos que o criador da série considera serem os mais perenes ao longo da vida da rainha. 

A curiosidade percebe-se: Isabel II é a soberana com o reinado mais longo da história britânica, ultrapassando a bisavó, a rainha Vitória, que permaneceu no trono até à morte, em 1901, e é também aquela que viveu mais tempo. A morte prematura do pai, aos 56 anos, fê-la ascender ao trono mais cedo do que esperava, em 1952, com apenas 26 anos, menos de metade da idade de Carlos, o príncipe herdeiro, que hoje já conta 72 anos.

Todavia, este destino não estava traçado: quando nasceu a 21 de abril de 1926, Elizabeth Alexandra Mary Windsor — "Lilibeth", como era chamada na infância —, não estava na linha direta de sucessão. Foi só depois de o tio Eduardo VIII abdicar da coroa em 1936 para casar com Wallis Simpson, uma americana divorciada, que o pai se tornou no rei Jorge VI, colocando no topo da linha de sucessores a primogénita, Isabel, então ainda uma criança.

Convém salientar que não se trata de um documentário, nem a série pretende sê-lo. Existem, como acontece sempre nestas altas instâncias narrativas, certas liberdades criativas que não passam de rumores vazios e pouco factuais. Mas isso não quer dizer que os atores não tenham feito o seu trabalho de casa e não existam algumas personagens que se confundam com figuras reais tal é a exatidão de certos maneirismos característicos. Talvez essa seja uma das razões que faz desta uma das melhores séries dramáticas dos últimos anos - que merece todo o alarido que recebe.

Só que "The Crown" vai além destes acontecimentos e mostra ao espetador, qual mosca alcoviteira insaciável que poisa no sofá à espera do próximo desenrolar de cena, os meandros do luxo e os deveres que utilizar a coroa na cabeça implica — um dos pontos fortes é precisamente a experiência de vasculhar o seio pessoal da família. Podem pertencer a uma família real, ter títulos e castelos, mas, no fundo, são apenas pessoas como qualquer um de nós. Com todos os defeitos e virtudes que isso aplica.

Este domingo, que marca o primeiro de dois fins de semana com recolher obrigatório à tarde decretado pelo Governo português, dá-se a estreia da nova temporada das intrincadas histórias do reino britânico. Por outras palavras, se há altura para uma boa estreia no pequeno ecrã, particularmente num momento difícil para muitos, este 15 de novembro parece ser esse dia.

Assim, diga-se que este último segmento da narrativa, revisita acontecimentos históricos passados entre 1979 e 1990, abrangendo uma década que atormentou a família real com rumores e batalhas eternas com os chamados tablóides ingleses — que é como quem diz vai abordar-se o divórcio da Princesa Margarida (Helena Bonham Carter), a morte de Lord Mountbatten (Charles Dance), e, claro, o casamento do Príncipe Carlos com Lady Diana Spencer. Ou seja, a série arranca dois anos após o fim da terceira temporada. Mas, mais importante do que isso, a Coroa dá as boas-vindas a duas figuras incontornáveis do séc. XXI: Margaret Thatcher e a Princesa Diana.

Emma Corrin (Princesa Diana) 

Embora não seja tecnicamente a estreia televisiva de Corrin, a Variety nota que se trata efetivamente da sua introdução à maioria dos espetadores. A revista especializada enfatiza que a vida de Diana deu uma volta de 360.º quando se tornou Princesa de Gales, e Corrin está ciente de que o mesmo lhe poderá acontecer.

Aos 24 anos, embora não provenha de uma família nobre como Diana, o seu passado não é assim tão diferente. Tirou um curso em Cambridge, frequentou colégios internos tal como a figura que interpreta, e estudou teatro. Mas nada a poderia ter preparado para interpretar Diana. Afinal de contas, Olivia Colman, Helena Bonham Carter e Gillian Anderson não estavam nas suas peças universitárias, e nenhum dos seus papéis anteriores tinha exigido uma metamorfose de uma menina com pouca noção num ícone filantrópico.

"Entrei [no set de filmagens] como Emma para um grupo muito estabelecido de pessoas, a maioria delas com nomes familiares insanos, e penso que foi vantajoso para mim criar esta personagem e perceber como ela se teria sentido", revelou à Variety. "Houve momentos em que senti que era demasiada areia para a minha camioneta. Mas fizeram-me sempre sentir como se estivesse em casa, embora a situação fosse interessante", disse.

Até aqui, o papel mais conhecido de Emma Corrin era um personagem recorrente em "Pennyworth", série do Universo Batman, além de ter feito participações noutra congénere britânica, "Grantchester". Agora, vai ser a "Princesa do Povo" dos 16 aos 30 anos. A Hollywood Reporter diz que entrega das cenas mais poderosas e memoráveis dos novos episódios. Na próxima temporada, contudo, dará a vez à australiana Elizabeth Debicki ("Tenet").

Margaret Thatcher (Gillian Anderson)

Enquanto atriz é muito mais do que isso, mas a maneira mais simples, ainda que incrivelmente redutora, de fazer a sua apresentação, é escrever que Gillian Anderson é para o grosso público a Dana Scully de "Ficheiros Secretos". No entanto, como se trata de uma série Netflix, a geração mais nova poderá dizer que é a Jean Milburn de "Sex Education" — talvez sem ter noção de que a atriz já aguçava a mente de muito adolescente na década de 90 enquanto parceira de Fox Mulder, ainda que ruiva.

Seja como for, o caminho pela frente é duro. Duro por causa da personagem em si, pelo que representa, mas também porque, não há muitos anos, Meryl Streep ganhou um Óscar por interpretar a mesma personagem em "A Dama de Ferro". A escolha de uma americana para dar vida a uma figura britânica desta dimensão gerou muito sururu no Reino Unido, a família da ex-ministra ficou indignada como o guião e as críticas não foram muito favoráveis para o filme. No entanto, para Streep, o papel rendeu uma estatueta.

Mas em "The Crown", o The Guardian pensa que a sua Thatcher vai dividir opiniões, mas que o tom frio e gélido, a par dos maneirinhos e postura, estão maldosamente certeiros — assim como o seu tom de voz inabalável. Isto, além de frisar que os encontros com a rainha de Olivia Colman são uma das verdadeiras relíquias da temporada. Ou seja, ao que parece, caberá ao espetador decidir se consegue esquecer a cara de Gillian Anderson e seguir o guião. 

Contudo, enquanto os episódios não chegam, fica a curiosidade de como é que se interpreta e prepara um papel como o de Margaret Thatcher. 

The Crown
créditos: Netflix

Que dizem os críticos da nova temporada

O The Times (o britânico) diz que é a melhor de todas as temporadas e elogia o trabalho de Peter Morgan. Mas não é o único: o The Hollywood Reporter (THR) segue o trilho traçado e a Vanity Fair não fica fica atrás. Estes são três exemplos, mas na generalidade a opinião é consensual e elogia o conteúdo dos novos episódios.

Desde que anunciou o seu noivado com o príncipe de Gales, em 1981, até a sua trágica morte num acidente de carro num túnel parisiense a 31 de agosto de 1997, a popularidade da educadora de infância que se tornou na "Princesa do Povo" nunca parou de crescer. E mesmo depois disso o seu legado perdura. A prova são as atenções da série centradas na sua figura. 

O The Times frisa que, inicialmente, a "nossa primeira visão de Diana é francamente irritante" mas que depois eleva a temporada e a história. "As duas novas bolhas dramáticas da última temporada de The Crown vêm sob a forma de Margaret Thatcher e Princesa Diana. Mas fiquem avisados. Inicialmente não fervilham. Na verdade, são bastante desbotadas". Mas, tal como acontece com Diana, com o andar da carruagem, torna-se peça central da trama.

O The Guardian escreve que Emma Corrin, recém-chegada da escola de teatro, é "uma maravilha como Diana". O jornal britânico explica que Diana "aparece vestida como uma árvore, escondida atrás de um vaso de plantas, impetuosa e jovem ao ponto de se parecer com uma criança". A seguir fala em histórias de espionagem amorosa. "O papel é exigente, e pede muito a Corrin; com a ajuda de Josh O’Connor [o Príncipe Carlos], que surge como uma das verdadeiras estrelas da série, ela consegue fazê-lo com notável habilidade", salienta ainda. 

A crítica da Collider dá outro ângulo e visão dos novos 10 episódios. É talvez a menos positiva delas, mas ajuda a perceber o que se pode esperar. Primeiro, salienta que do ponto de vista técnico, "The Crown continua a ser um dos melhores dramas da Netflix. O desenho de produção é inigualável, o elenco é notável, e coloca o prestígio em prestige TV". Todavia, salienta que todo este requinte visual faz com que a escrita (menos boa) do guião seja mais evidente. 

"Uma vez que a temporada está dividida em grande parte entre Thatcher e Diana, há alguns episódios fantásticos de Thatcher e alguns episódios de Diana realmente instáveis, e ao contrário da temporada 2, que tem sido a mais forte da série até agora, não há um grande arco que ligue tudo. A Coroa tem sido sempre um pouco episódica, mas nas temporadas anteriores cada episódio foi espantosamente forte, só que 4.ª temporada já não é esse o caso", pode ler-se.

"A 4.ª temporada atinge o seu melhor quando aparece a Thatcher de Anderson — o espectáculo lança delicadamente a agulha entre mostrá-la como uma força política formidável, ao mesmo tempo que não faz nenhum elo de ligação com as suas políticas de coração frio e míopes que colidem com as tendências mais generosas (se bem que algo ingénuas) da Rainha Isabel II", remata, antes de frisar que a série brilha quando explora a relação da rainha com as figuras do espectro político britânico, e esta temporada nada muda em relação a esse aspecto.

Então, mas e a rainha? E o Príncipe Felipe? E a irmã Margarida? 

Quem segue a série, já sabe que para acompanhar o envelhecimento de Isabel II, houve mudança no elenco: nas primeiras duas temporadas a Rainha é protagonizada pela atriz Claire Foy, na terceira e na quarta é representada pela atriz Olivia Colman. O mesmo acontece com outras personagens como o Príncipe Filipe, o Príncipe Carlos e a Princesa Margarida (irmã da Rainha).

Quer isto dizer que vamos ver mais do Duque de Edimburgo (Tobias Menzies) e da Princesa Margarida (Helena Bonham Carter), mas o tempo de antena dos seus papéis não será o mesmo da última temporada. Estão lá, figuram e brilham; só que o cerne da quarta temporada está focado nas tensões domésticas entre Diana e Carlos  e naquilo que se desenrola fora dos portões do Palácio de Buckigham.

Os últimos episódios decorrem durante os 11 anos de Thatcher (1979-1990) enquanto força maior da sede do governo de Sua Majestade em Downing Street. O que quer dizer que Isabel II tem em mãos muito com que se preocupar. Nem que seja porque além da Dama de Ferro, tem de lidar com uma jovem Diana — que implora pelo tipo de calor familiar e fidelidade conjugal que são a "anátema dos Windsors", segundo a THR.

O criador Peter Morgan (e a sua equipa, pois não escreve sozinho) continua capaz de condensar e transformar eventos nacionais em autênticas crises convincentes ao nível dramático, assim como as suas palavras dão corpo a personagens da vida real apenas com recurso a algumas cenas. Claro que, para conseguir tal façanha, é importante ter atores com talento para o fazer. E disso Helena Bonham Carter e Tobias Menzies têm para dar e vender.

Em suma, de acordo com a Variety, Morgan tem vindo a escrever uma autêntica novela real, notavelmente viciante e furtivamente tola, que só ocasionalmente compreende o quão óbvio pode ser. No entanto, complementada com interpretações notáveis e mobilada com o mais luxuoso (cenários, guarda-roupa, etc) que o dinheiro da Netflix pode comprar, The Crown vendeu-se com sucesso como sendo um dos dramas mais sérios da televisão. E, segundo aquela publicação, a quarta temporada vigora “em toda a sua glória sem vergonha”.