Em “Companheiros da Penumbra”, o seu novo livro de BD, Nunsky narra a história de um grupo de amigos, fãs de rock gótico, que viveram os melhores anos da sua juventude num Porto que, grosso modo, já não existe, abalroado pelo definhar das subculturas e pela gentrificação. Perto do final do livro, Nunsky lembra um encontro desse mesmo grupo de amigos com Wayne Hussey, vocalista e guitarrista dos The Mission, após um concerto na cidade Invicta. Por entre flirts com o sexo oposto, conversas sobre música e tragos de vinho do Porto e traçadinho, Wayne cria uma certa camaradagem com o grupo, com o qual acabará a passar uns dias. “Durante todos aqueles momentos ninguém realmente se questionara sobre o que levaria alguém que na sua época áurea fora o frontman de uma das mais populares bandas do momento […] a eleger aquele recôndito recanto no cu da velha Europa para desfrutar da companhia de recém-conhecidos sob a penumbra do anonimato”, escreveu o autor.
A contracapa de “Heady Daze”, a nova autobiografia de Wayne Hussey, editada há pouco mais de uma semana, poderá fornecer uma pista. Uma citação do próprio descreve-o, entre outros epítetos mais ou menos deliciosos, como “um livro aberto”, “colorido”, “irreverente”, “amoral”, “bêbedo”, “drogado”, “uma estrela rock abertamente ambiciosa”. A última é capaz de ser mentira. Uma “estrela rock abertamente ambiciosa” nunca se daria ao trabalho de descer ao nível da plebe que o idolatra; permaneceria longe e inatingível, observável apenas em cima do seu palco. Hussey talvez seja todas as outras coisas, mas isso não sabemos, ainda não lemos o livro, limitamo-nos a confiar nas suas palavras. Mas é mais que uma estrela rock, sobretudo para quem, como aquele grupo de amigos, é um devoto do rock gótico: é um deles.
Wayne saca de uma carta que lhe havia sido escrita por um casal, Carina e Fred, juntos há 30 anos, casados há 25. Pediam-lhe que tocasse a sua canção
Notou-se, quando no final do primeiro encore deste concerto dos The Mission no Lisboa Ao Vivo, Wayne saca de uma carta que lhe havia sido escrita por um casal, Carina e Fred, juntos há 30 anos, casados há 25. Pediam-lhe que tocasse a sua canção, o que este fez, depois de aceder a um outro chamamento: alguém, na fila da frente, implorava por uma selfie. Sozinho em palco, apenas com a sua guitarra, Wayne tocou 'Bird Of Passage', tema sobre essa coisa tão portuguesa que é a saudade. Casais que não o da carta abraçaram-se e rodopiaram, solitários aleatórios filmaram o momento com os seus telemóveis, góticos de todas as formas e feitios confirmam essa ideia de base, de que Wayne Hussey é mais do que o frontman de uma das bandas que mais aclamam. Por vezes, pode ser um confidente, que é talvez dos maiores elogios que se pode fazer a um músico.
É a principal diferença entre os The Mission e os Sisters Of Mercy, a banda que os viu nascer quando, em 1985, Wayne Hussey e Craig Adams se fartaram do misantropo Andrew Eldritch, do qual Hussey não guarda boas memórias, e formaram os The Sisterhood, nome que rapidamente se alteraria porque o misantropo em questão o registou para que o não usassem. Eldritch, que nem sequer gosta de ser visto em palco (um concerto dos Sisters Of Mercy é quase sempre enfeitado por uma grossa cortina de fumo), nunca pararia um espetáculo para ler uma carta de um fã.
Wayne não se rala, melhor: tem um notório prazer nisso, em saber que a sua música é tão importante para um determinado grupo de pessoas. Muitas delas estiveram esta noite no Lisboa Ao Vivo e, acreditamos, não foi pela primeira vez que viram os The Mission em palco. O negro, cor predileta, nas t-shirts. Ao fundo do palco, o logótipo dos The Mission, uma cruz onde repousava uma pomba branca, ramo de oliveira no bico, porque poucas coisas há mais góticas que iconografia religiosa.
O público aplaudiu, claro, quando depois de uma intro épica e construída a partir de teclados as luzes se apagaram para deixar passar a escuridão. Com um “boa noite” com sotaque, os The Mission deram início a um espetáculo de quase duas horas, abrindo com 'Beyond The Pale', um dos temas de “Children”, o seu segundo álbum de estúdio.
Sem editar desde 2016, esta nova digressão dos The Mission age como retrospetiva da sua carreira, com um nome apropriado: “Déja Vu Tour”, porque o sentido de humor é uma coisa bonita. A digressão tinha sido interrompida em 2020, por conta da pandemia da covid-19. Aliás, Wayne Hussey lembrou isso mesmo, durante esta noite. O último concerto dos The Mission em Portugal foi em março de 2020, quando ainda andávamos a tentar entender o que raio era um coronavírus, sem pensarmos que daí a algumas semanas iríamos estar trancados em casa.
Os excessos não pareciam ter ficado no passado... Nem as memórias: 'Like A Child Again' levou muitos a erguerem os seus telemóveis e a cantarem como se tivessem regressado à juventude.
Uma partida em falso, ao som de uma máquina de ritmos, levou os The Mission até '(Slave To) Lust', uma das suas canções mais românticas (basta ouvir o primeiro verso). Seguir-se-ia, pouco depois, 'Stay With Me', toda ela guitarras a pingar metal, antes de uma garrafa de vinho – cujo nome, naquela tentativa de português, passou despercebido a quem estava mais atrás na sala – pingar para dentro da goela de Wayne. Os excessos não pareciam ter ficado no passado... Nem as memórias: 'Like A Child Again' levou muitos a erguerem os seus telemóveis e a cantarem como se tivessem regressado à juventude.
Até final, o Lisboa Ao Vivo pintar-se-ia de punhos e braços e vozes ao alto com o ritmo mecânico e a guitarra jangly de 'Butterfly On A Wheel', passando pelos confettis disparados na vertiginosa 'Wasteland' e por uma espécie de coreografia, da parte de quem optou por ver o concerto em cima de um par de ombros alheios, em 'Deliverance', com a sala inteira em uníssono no refrão, um daqueles momentos comunitários que nos faz gostar tanto de música.
No encore, para além do feliz casal, houve – não podia deixar de haver – 'Severina', um dos seus primeiros grandes sucessos radiofónicos. 'Tower Of Strength', com Wayne sozinho, primeiro, e com a banda a juntar-se, depois, deu por terminado um espetáculo criado por e para amigos. Wayne Hussey esteve e continuará a estar ali para nós. E vice-versa.
Coube aos Phantom Vision, banda portuguesa já com mais de duas décadas de existência, fazer a primeira parte do concerto – e isto quando, a partir de novembro, acompanharão Till Lindemann (Rammstein) em digressão pela Europa. Com “Guilty”, o seu último álbum (2019), ainda na bagagem, tiveram a missão sempre ingrata de aquecer o palco para a banda que os presentes queriam realmente ver. Porém, a receção do público foi calorosa, merecendo um “obrigado pela força que estão a dar” por parte do seu vocalista. Para tal contribuiu a presença em palco de uma dançarina ruiva, primeiro vestida de branco, depois com uma capa dourada e vermelha, que deu mais cor a canções como 'Total Eclipse'. O rock gótico nacional esteve bem representado.
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