Quando se fala de orquestra, o acordeão é talvez o último instrumento que nos vem à cabeça. "Em Portugal, é conotado com a música popular - e com a música pimba também. Mas tem perto de 200 anos, é muito recente. O violino, que é talvez o instrumento que mais associamos à orquestra, de uma erudição superior, também começou por ser um instrumento popular. Daqui a 20 anos o acordeão será um instrumento super-requisitado e já fará parte integrante de vários ensembles de música contemporânea", antecipa João Barradas.
"Esta é uma renovação nas orquestrações que começou há dezenas de anos, com acordeonistas como o finlandês Mika Väyrynen ou a compositora russa Sofia Gubaidulina", diz o solista, que garante que não se arrepende da sua escolha e, apesar de ter tido guitarra como segundo instrumento no conservatório, "hoje tocaria só acordeão". "É uma ferramenta para se passar uma ideia musical e encaro o acordeão dessa forma".
Nesta temporada e na próxima, João Barradas não está a fazer recitais, mas exclusivamente a tocar com orquestras. Tocou com a Sinfónica de Zurique, com a Filarmónica de Londres e agora com a Orquestra Metropolitana de Lisboa. No Music Series tocará Bach e "As Quatro Estações Portenhas", de Piazzolla, primeiro sozinho com a orquestra, depois em conjunto com os solistas Vasco Dantas (piano) e Letícia Moreno (violino), num arranjo do pianista peruano Claudio Constantino, um dos novos nomes da Deutsche Grammophon.
"Uma orquestra é um instrumento vivo, muitas vezes com mais de 100 pessoas"
Tocar em conjunto "tem particularidades". Se num recital é apenas um instrumento a definir os tempos, as dinâmicas e tudo o resto, "numa orquestra acaba por ser uma dança ou um diálogo, neste caso uma conversa a três, orquestra, maestro e solista". O trabalho também não é mesmo de orquestra para orquestra ou de maestro para maestro, "porque uma orquestra é um instrumento vivo, muitas vezes com mais de 100 pessoas. E cada maestro, a figura central da direção musical, tem a sua visão".
"Esta é uma renovação nas orquestrações que começou há dezenas de anos, com acordeonistas como o finlandês Mika Väyrynen ou a compositora russa Sofia Gubaidulina"João Barradas
O maestro titular da Orquestra Metropolitana de Lisboa, e também diretor artístico, é Pedro Neves. "Estamos a falar de um maestro que prima pela preparação, não chega e improvisa", diz João Barradas.
Essa é uma diferença, mas não é a única. Apesar de "já saber o que quer, tem uma coisa de que gosto imenso, que é a abertura para perceber o que o solista quer fazer. Por razões óbvias [32 anos], sou menos experiente do que o maestro e do que a maior parte dos membros da orquestra. Mas o maestro Pedro Neves tem realmente essa abertura. Com este trabalho que tenho vindo a desenvolver na Metropolitana, já lá vão três anos, sinto que tive esse espaço. É uma pessoa altamente cordial e isso traz resultados".
É que nas orquestras também há ditaduras, talvez até mais do que democracias. "Por um lado, seria muito fácil entregar tudo ao maestro e sair com a direção que o maestro entende para a orquestra e para aquele solista. Que não é o caso. O que tem acontecido no nosso trabalho é que existe uma coisa em que a orquestra se revê, em que o solista se revê e em que o maestro também se revê. E isso é um privilégio". Nesta altura da conversa, o maestro Pedro Neves ainda não está na sala, está a dar aulas e chega minutos depois.
O diabo está nos pormenores
Quando produz uma obra, um compositor tem uma intenção. Qual a liberdade ou a margem de manobra que outros músicos têm para alterar essa intenção inicial, até onde pode ir um intérprete? "Essa é uma excelente pergunta e a resposta não é óbvia. Há solistas, musicólogos e maestros que dizem que a partitura é soberana e que a haver improvisação deve ser exclusivamente dentro da linguagem daquele compositor", considera João Barradas.
"Na música de Bach há certas liberdades, a primeira começa logo em tocá-la num instrumento com menos de 200 anos. Acredito que pode existir essa liberdade, não está escrito na pedra que foi escrito para cravo, címbalo ou piano. Daí o salto para outros instrumentos irem buscar um dos génios da música erudita, com resultados melhores e piores, certamente a agradar mais a uns do que a outros. Há versões famosíssimas que não seguem à risca a versão Urtex [original] e que achamos que são as versões originais".
"Obviamente, quando falamos de música contemporânea, e se o compositor está vivo, temos acesso a perguntar-lhe que tipo de abertura temos". E isso faz-se? Faz. João Barradas fá-lo com compositores nacionais e estrangeiros.
"Recentemente, toquei o novo concerto para acordeão e orquestra do compositor português Luís Tinoco. Não há improvisação nenhuma, mas, se calhar, posso fazer três éfes aqui ou piano ali. Pergunto e ele responde, "a minha intenção é que seja um crescendo máximo com orquestra, talvez gostasse que não fizesse o piano". Por exemplo. Mas houve momentos em expliquei que ao vivo é diferente, talvez se pudesse adaptar de determinada forma, e ele aceitou imediatamente", conta o acordeonista.
Mas há outros casos. "Toquei há pouco tempo um concerto de um compositor japonês de topo que adoro, vive em Hamburgo há muitos anos, Toshio Hosokawa. E tive este contato. Na verdade, deu-me até uma liberdade de que não estava à espera, porque não tinha a versão Urtex. E disse-me: "João, tu decides e depois dizes-me"".
"Porque é um trabalho de relojoeiro, são os detalhes, o pequeno espaço que vai do ponto A ao ponto B, que permitem a um solista fazer a diferença. O diabo está nos pormenores, quando ouvimos aquela versão e pensamos: mas como é que ninguém se lembrou disto, seja aquele milissegundo de atraso ou aquele puxar de andamento".
A este propósito, será que a Inteligência Artificial é um aliado ou um inimigo da música? João Barradas lembra que a IA já interfere, nomeadamente na música escrita. "Desde a criação do CD, mais do que as gravações analógicas a fita, o digital permite não só a repetição ad aeternum de takes, mas também a manipulação nota a nota".
"Sabemos que há gravações com orquestra compasso a compasso, de uma perfeição brutal, que, apesar de serem feitas por humanos, têm a ajuda da computação e tiraram quase todo o risco inerente à performance. Com a IA é isso elevado ao cubo. Por isso, cada vez mais vamos querer ter gravações ao vivo sem cortes e aceitar o erro humano como uma coisa natural, obviamente com uma dose de eficácia de que outras músicas não precisam, com rigor máximo. A IA vai colocar na parte da gravação e da edição uma série de surpresas, mas não são humanas. Mas não se perde nada, o somatório dessas duas realidades só vai trazer coisas maravilhosas", acredita.
"O ensino em Portugal é de excelência"
"O ensino da música em Portugal é de excelência", assegura João Barradas. "Tenho 32 anos e cada vez mais fico surpreso com o nível que atingimos, a diferença da minha altura para alguém que agora tem 22 anos é brutal e notória. Não estou a dizer que a minha geração toca pior ou melhor, estou a dizer que a preparação desta é muito mais cuidadosa".
Se olhar para os que chegaram dez anos antes, a diferença é ainda maior. "Estudei na Escola Superior de Música de Lisboa e todos os meus professores eram do meio profissional, davam aulas e eu podia vê-los em concerto, o que muda logo o panorama do professor que gosta de música, mas nunca teve uma carreira. E é diferente até por uma questão de networking, de rede de contatos".
"Hoje, temos professores com carreiras internacionais, que vêm a Portugal entregar essa informação. É uma enorme diferença ter um professor que, de repente, está em tournée pela Europa, dá aulas nos melhores conservatórios lá fora e vem entregar essa informação a Portugal, tanto no clássico como no jazz", diz. Mas não são só os alunos, "o público português é cada vez mais informado".
"Esta coisa de a música clássica ser muito séria, de ter de se ir bem vestido, isso são mitos"
O maestro Pedro Neves concorda, mas acredita que ainda é preciso incutir em quem nos ouve a vontade de ir, não por obrigação, mas como hábito", até porque "ter o hábito faz-nos descobrir". "Para nós, que estamos na área, é impensável viver sem música, mas ainda há muita gente que vive sem ela, que não sabe o que existe".
E há os mitos. "Esta coisa de a música clássica ser muito séria, de ter de se ir bem vestido, isso são mitos. A música clássica tem de tudo, música alegre, triste, feia, azul, amarela, rápida, lenta. Tudo. O que temos é de quebrar o mito e levar as pessoas à sala do concerto. Se a sala boa e causar impacto, as pessoas são sensíveis a isso, só não são se forem de pedra. O envolvimento, estar em cima da orquestra, sentir ao vivo é uma experiência é única. Sem o receio de pensar "isto não é para mim". Porque isto é para todos e não é um bicho de sete cabeças".
"Para nós, que estamos na área, é impensável viver sem música, mas ainda há muita gente que vive sem ela, que não sabe o que existe"Pedro Neves
Neste momento, já há vários festivais de música em Portugal, do Festival Internacional de Música de Marvão ao Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim, passando pelo Cistermúsica ou Festival Internacional de Música de Espinho. Ainda assim, na Alemanha ou em França o festival de pequenas dimensões têm programação de música erudita ao longo de todo o ano. João Barradas confirma: "Estive a tocar penso que em Namur, na Bélgica [com menos população que Barcelos], e tinha programação operática, música de câmara, solistas e ópera. Nós não nos podemos dar a esse luxo, a diferença está aí".
O que nos leva à questão dos subsídios. As orquestras nacionais estão condenadas a depender do dinheiro do Estado para sobreviver Pedro Neves acredita que não. "Tem de haver um equilíbrio entre o apoio do Estado - porque a música é uma manifestação de arte e precisamos da arte para andar no tempo -, e de privados".
"As pessoas perguntam-se muitas vezes para que serve a arte. Pode não nos dar nada palpável, mas serve para nos pôr a pensar. E se soubermos pensar bem, vamos estar melhor a todos os níveis"
"As pessoas perguntam-se muitas vezes para que serve a arte. Pode não nos dar nada palpável, mas serve para nos pôr a pensar. E se soubermos pensar bem, vamos estar melhor a todos os níveis", considera o maestro. "Continuo a acreditar que ainda não exploramos a nossa atividade como devíamos. Se estou sempre a falar numa sala, é porque temos mesmo necessidade de ter uma sala em Lisboa para passar para o degrau a seguir. Ter uma sala custa dinheiro, mas significa vender bilhetes, rentabilizar, até com a massa turística que nos visita. Isso não pode ser numa sala para 100 ou 200 pessoas, tem de ser numa sala para para 2.000, como aconteceu agora em Espanha, onde estivemos, que encheu três vezes seguidas. É este caminho que nos falta fazer", afirma.
"Às vezes temos esta dificuldade, pomos tudo no mesmo saco: "Ah, mas o dinheiro é preciso para outras coisas"... O dinheiro é preciso para tudo, incluindo para a música. Que é necessária. Faz-me confusão que uma massa grande da nossa sociedade não saiba que isto existe. E que o investimento esteja sempre no fio da navalha".
Já aconteceu não ter público numa sala? "Já, várias vezes". O que se faz? "Toca-se para os heróis que apareceram", diz o maestro Pedro Neves "Já fiz um concerto, foi o meu recorde, em que não estava ninguém. Foi na Lourinhã, num domingo à tarde em ao mesmo tempo havia uma romaria".
É também o tal hábito que vai levar as pessoas a sentirem a falta ou a conhecerem coisas novas. "Sentimos muito, sobretudo em Lisboa, que isto tem muito a ver com o repertório escolhido. Mas às vezes uma coisa não chama a atenção, as pessoas vão ouvir e até gostam".
"Até nós que somos da área, de repente, damos com um nome de quem nunca tínhamos ouvido falar e que é fantástico. Porque temos este problema, entre aspas, de revisitar sempre o mesmo núcleo, os mesmos nome. E temos de fazer um esforço para trazer nomes novos, gente que não é conhecida e tem um mérito fantástico", diz o maestro. E tem feito boas descobertas.
"Estamos sempre a conhecer gente jovem que está a fazer coisas novas, esse é o nosso estimulo diário para quando fazemos uma estreia, como aconteceu recentemente com o João [Barradas], no concerto de acordeão de Luís Tinoco. É como nascer um filho, chega o material e começamos a dar-lhe vida. Não quer dizer que aquela peça fique por ali e vá ser sempre assim, vão evoluindo à medida que são tocadas por outras pessoas", explica o maestro.
"Faz parte da nossa atividade continuar a descoberta. Ou seja, a Sinfonia n.º40, de Mozart, que já tocámos milhares de vezes, se continuarmos a estudar a peça, vamos sempre descobrir coisas novas. O nosso trabalho parece uma coisa de museu, mas não é nada disso, pelo contrário. Se pensássemos assim, seria uma seca".
E voltamos à partitura e à margem de manobra. Pedro Neves concorda com João Barradas, "a liberdade é grande". "Mas essa margem descobre-se com o estudo da partitura, a interpretação não está escrita. Temos um código, claro que o respeitamos, não vamos alterar o que o compositor escreveu, mas podemos ampliá-lo com a nossa interpretação, mostrar o que está por detrás das notas. Só que essa descoberta tem de ser feita ao longo do tempo, por isso é que o nosso trabalho acaba por ser de resistência, não é chegar e tocar. Só que as pessoas só vêem o resultado final".
"Muitas coisas em caixotes, muita coisa por descobrir. Porque é preciso pagar. Claro, se queremos uma boa escola, custa dinheiro, se queremos um bom hospital, custa dinheiro"
Temos em Portugal muitos compositores desconhecidos. "Muitas coisas em caixotes, muita coisa por descobrir. Porque é preciso pagar. Claro, se queremos uma boa escola, custa dinheiro, se queremos um bom hospital, custa dinheiro. O que é que vai dar? Vai dar melhor resultado na educação e na saúde. Então, é um bom investimento", conclui. "Uma sociedade que cresce com a noção do seu património cresce mais bem preparada para olhar o futuro. A nossa obrigação é pegar no tudo que temos e fazer melhor para os que vêm a seguir fazerem melhor do que nós".
Tanto Pedro Neves como João Barradas tiveram contacto com a música desde cedo. O maestro começou a aprender música num contexto familiar. "Sou de uma aldeia perto de Águeda, que tem uma uma banda filarmónica. Comecei a aprender na banda com um instrumento de sopro, saxofone. A minha família já tocava, os meus avós, havia um contexto que me levou para ali. Mais tarde fui para o conservatório e já não fui para saxofone, escolhi violoncelo. Depois foi uma coisa natural, o percurso foi surgindo".
"Mas sobre o ensino da música, acho importante a música estar presente no currículo geral da escola, não como uma disciplina que incomoda ou é indiferente, mas como uma disciplina que mexa com os alunos, que suscita interesse. Saber o que é uma semibreve não é nada importante, o que é fundamental é despertar a curiosidade", considera Pedro Neves
João Barradas teve "contato com o acordeão aos seis anos e começou logo como um hobby seríssimo. Sou filho único. Para mim, a música é a única coisa que me faz estar aqui a falar, porque sou bastante tímido. Esta é a oportunidade de poder continuar a tocar e a aprender novos programas", diz o solista. "A música é a desculpa para eu ser um bocadinho menos introvertido". Mas há mais: "Tem um nível de abstração que para mim continua a ser enigmático; por exemplo, uma pessoa ouvir uma composição e sentir a ideia de frio e outra pessoa ter a ideia de calor. Vivo apaixonado com isto e sempre com uma sensação estranha de agradecimento por poder fazer disto vida".
O projecto Music Series Festivals foi criado com o objectivo de promover, a nível nacional e internacional, novas gerações de músicos já consagrados no domínio da música clássica. Este domingo, chega ao Coliseu dos Recreios com obras de Bach, Gershwin e Joly Braga Santos, pelas mãos da Orquestra Metropolitana de Lisboa e do maestro Pedro Neves, também como os solistas João Barradas (acordeão), Vasco Dantas (piano) e Letícia Moreno (violino).
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