O Festival de Vilar de Mouros realizou-se pela primeira vez em 1965, tendo ganho projeção nacional três anos mais tarde, ao romper com o modelo de festival folclore. O “Woodstock português”, como ficou conhecido, em alusão ao festival realizado nos EUA em 1969, ganhou outras proporções em 1971, com a vinda de artistas como Elton John ou Manfred Mann. A celebrar o 50º aniversário, ainda que os anos do evento não correspondam ao número de edições, o mais antigo festival português trouxe a Portugal nomes como U2, Sonic Youth, Iron Maiden, Robert Plant, Neil Young, Peter Gabriel ou Bob Dylan.
Muito já se escreveu sobre o festival de Vilar de Mouros, em especial sobre a edição de 1971, mas esta história é desconhecida para a maioria. Ricardo Andrade, estudante de doutoramento do departamento de Ciências Musicais da Universidade NOVA de Lisboa, levantou-lhe o véu - e o SAPO24 ficou curioso e quis saber mais. Tudo começou com uma referência a uma banda que, supostamente, teria emprestado o PA ao festival de Vilar de Mouros.
Sérgio Castro fez parte do grupo musical Síntese, uma banda “mais ou menos local da zona de Santo Tirso”. Em 1971 tinha 16 anos e, na altura, “o grupo estava a ser financiado por um industrial bastante conhecido ali da zona”. Sérgio conta que tinham acabado de fazer um investimento no equipamento de som e backline, em 1971. Naquela época, “havia poucas bandas em Portugal que tinham o equipamento que nós tínhamos, só as bandas de topo é que tinham aquele tipo de material”. E acrescenta que também compraram “o equipamento de PA”.
Segundo o músico, este “era um conceito que na altura nem sequer existia” e, explica, “as bandas da altura, nos anos 60 e ainda nos anos 70, tinham uma coisa que punham à frente, que era a aparelhagem de voz, e eventualmente também tinham um microfone no bombo de bateria para que existisse algum sincronismo com o resto do material”. Como curioso que era e já com algum conhecimento sobre o material que se usava no estrangeiro, conseguiu convencer o filantropo de que tinham de ter um equipamento mais poderoso. Foi nessa altura que teve contacto com uma das mais importantes lojas de instrumentos musicais do Porto, a Casa Ruvina, onde compraram todo esse equipamento, tanto o backline como o PA.
Entrando em detalhes mais técnicos, para que se compreenda a sofisticação do investimento, Sérgio descreve o novo equipamento: “comprámos a primeira mesa de mistura, de uma marca que já não se fabrica, que veio para Portugal”. Acrescenta que “em vez de ser o típico amplificador de voz com quatro ou seis canais, que era o normal, era uma mesa já com uma quantidade razoável de canais, dez ou doze, já tinha já um esquema de amplificadores com potência separada da mesa, que também não era habitual, e umas colunas enormes com uma potência maior do que era normal”.
Não nos percamos na história. Como já referido, esse equipamento chegou a Portugal justamente no ano de 1971. Chegou em maio e, pouco tempo depois, a banda foi abordada pela Casa Ruvina, que lhes disse que “a organização do festival Vilar de Mouros estava à procura de um sistema de som. Os Manfred Mann vinham de Inglaterra e trariam o seu próprio sistema, mas havia essa necessidade para o Elton John e para as bandas portuguesas”. A própria Casa Ruvina não tinha equipamento suficiente e pediu para que a banda juntasse o seu ao deles, até porque “o dos Síntese era melhor”, conta Sérgio. A contrapartida era que tocassem em Vilar de Mouros nesse ano - “o que para nós era uma coisa absolutamente fabulosa”, diz.
“Nós fechámos esse acordo com a Casa Ruvina e com a organização, só que, em simultâneo, a organização precisou também de mais equipamento para o backline”, acrescenta Sérgio. Havia outra banda em Barcelos, os Celos, a quem também foi pedida a cedência de backline. Porém, o desfecho foi um bocado diferente do que esperavam. “Já não sei o que se passou nos meandros, mas quem acabou por não ir tocar ao festival fomos nós e [ao invés] foram os Celos [tocaram dia 8 de agosto de 1971].
Sérgio Castro acabou por ir a Vilar de Mouros como espetador, não tendo o privilégio de ali tocar. Remata dizendo que “a verdade é que foi o nosso PA que em grande parte satisfez o som do Elton John”. Enquanto espetador, recorda que “em termos musicais foi fantástico; o Elton John estava no auge da sua carreira”. E estava também a “crème de la crème da música que se fazia em Portugal”, acrescenta.
Não esquecer que o festival aconteceu antes de 25 de abril de 1974, e “um festival daquela índole, ainda por cima influenciado pelos ventos que vinham dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha”, foi um sopro no panorama musical português. Foi um “escaparate para que a juventude portuguesa, e não só, tivesse acesso e percebesse que em Portugal, naquela altura, fazia-se muito boa música que podia perfeitamente estar ao lado do que se fazia fora das fronteiras”, ressalva.
Sérgio voltou ao festival em 2014, desta vez já não como espetador mas como músico, com os Trabalhadores do Comércio.
Jorge Santos colaborou durante mais de vinte anos com a Casa Ruvina, antiga casa de instrumentos “e uma das mais importantes da cidade do Porto” na altura. Fundada por Luís Ruvina, o pai, a casa cedeu algum do equipamento do festival, como o piano com que tocou Elton John, e também se recorda desta história sobre o PA dos Síntese. “Estivemos lá com com material e com pessoal, e estivemos lá os dias que o festival durou”, conta Jorge. “Naquele tempo era tudo autêntico, o pessoal todo espalhado pelos campos de milho, não é nada do que se faz hoje nos festivais”, acrescenta. Jorge guarda muitas e boas recordações do festival; à data teria “talvez uns vinte anos”, diz, sem querer revelar a idade atual porque “são muitos [anos] para se escrever”.
Fernando Zamith é jornalista e autor de “Vilar de Mouros - 35 Anos de Festivais”, livro de memórias e histórias inéditas sobre o festival, dedicado à memória do seu fundador, António Barge. Segundo o autor do livro, Barge conseguiu fazer “algo que nunca tinham conseguido fazer em Portugal”.
António Augusto Barge, médico de profissão e “pai” do festival, “viu um potencial fantástico para levar música para o Alto Minho, na altura para um paraíso escondido”, recorda o autor. Interrompeu a frequência de festivais anuais que tinha começado em 1965, e decorreram entre 65 e 68, “para se preparar para um grande festival” que viria a acontecer em 1971, a pretexto da comemoração dos 900 anos da doação de Vilar de Mouros à Sé de Tui pelo rei D. Garcia da Galiza, e que viria a ser um sinal de liberdade e uma rutura com o status quo político e social.
Ao longo dos cinquenta anos do festival muita coisa mudou, segundo Zamith. Mudaram as organizações: “Estávamos habituados a ver festivais a serem organizados mais ou menos com mesma estrutura, ainda que com uma ou outra mudança”, mas “como o festival de 1971 nunca se realizou mais nenhum”. A edição desse ano realizou-se ao longo de três semanas; apesar de se falar “muito no fim de semana do meio [7 e 8 de agosto], houve ainda um primeiro fim de semana de música clássica [31 de julho e 1 de agosto] e um outro com os Duo Ouro Negro e com a Amália Rodrigues [14 e 15 de agosto]”. Em 1982, foram nove dias consecutivos com uma “variedade imensa de estilos musicais, pop-rock, música clássica, música popular, ranchos folclóricos, fado, música de intervenção ou até morna de cabo verde”. No entanto, a partir de 1996, “com a chegada dos festivais comerciais mudou imenso”. Depois da edição de 2006, houve um hiato grande, o segundo mais longo na história do festival, e em 2014 voltou “com uma organização semiprofissional”, a Associação dos Amigos do Autismo (AAA), apesar da pouca afluência de espetadores.
Não tem tido regularidade nem um padrão que o defina, mas “tem, isso sim, alguns elementos fortes que fazem com que tenha a sua identidade”, explica o autor do livro. Para Zamith, “os elementos mais fortes são a história, o facto de ter sido precursor, o ecletismo, o facto de conseguir juntar muita gente de muitos géneros e gerações, e o enquadramento paisagístico - a aldeia é lindíssima e atraente, um vale que tem condições acústicas fantásticas para a realização de um festival”.
Sobre a edição deste ano, diz que “é uma experiência diferente de tudo o que se experimentou até agora”. O “cartaz é ótimo”, composto por “nomes da música independente dos anos oitenta de que sempre gostei e acompanhei”. E sobre as expectativas para esta edição acrescenta ainda que há quem vá não só pelo cartaz, mas também pelo saudosismo e por querer reviver velhos tempos. “Vejo gente a ir lá, gente que já comprou os bilhetes, já tratou do alojamento e que já não vai desde 1982”, o ano da estreia dos U2 em Portugal - entre outros nomes, como The Stranglers e Carlos Paredes -, que Fernando Zamith considera ser a banda que mais marcou o festival.
O festival começa hoje, dia 25 de agosto, e decorre até sábado. Pelos três dias passarão por Vilar de Mouros os americanos Waterboys, nomes icónicos da música inglesa dos anos 80 como Happy Mondays, Peter Hook (Joy Division e New Order), Peter Murphy (Bauhaus) ou Echo & The Bunnymen, mas também nacionais, como Samuel Úria, Linda Martini e David Fonseca, entre tantos outros. Os horários podem ser consultados aqui. O preço do passe de três dias custa 50€ e o bilhete diário 25€.
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