Isto vai tudo para um lado e para o outro. Numa linha, parte o suburbano para Braga, noutra, para São Bento. Ao lado, chega, brilhante, o Alfa de Santa Apolónia. Atrás, passa um comprido comboio de carga de vagões vazios.
Campanhã, 11 horas. É agosto, a plataforma enche-se de turistas. O cheiro a protetor solar mistura-se com o cheiro do trabalho, dos trabalhadores. As malas pesadas embatem nos sacos de serapilheira sintética dos supermercados. Mas os fluxos correm todos com rigor ferroviário.
Alheias ao rebuliço, umas quantas carruagens de garridos tons estão paradas na linha número três. A máquina, a diesel, deixou-as ali e foi dar a volta por outro lado. E elas lá estão. Quem passa põe-se a ver as velhinhas Schindler do Miradouro (o comboio turístico do Douro cujo fim a CP anunciou em março).
Metendo pelos subterrâneos, atravessamos a estação para chegar à beira desse comboio. Entretanto, já a automotora a ele se agarrou, pronta a puxar carruagens e passageiros até à Régua, no coração do rio. Entrando, chegamos ao glamour, ao bom gosto, ao conforto e espaço dum tempo onde havia tempo para o conforto e para o espaço.
Os cadeirões largos, as janelas panorâmicas — que abrem, permitindo cheirar o rio (e o gasóleo) —, a elegância da maquinaria pesada. Tudo encaminha o passageiro lá para trás, para a memória do que fora isto (mesmo sabendo que estas carruagens suíças chegaram a Portugal entre 1948 e 1950 para a Linha de Sintra).
11:25. As colunas da gare anunciam a saída do comboio especial com destino a Peso da Régua. A desengonçada locomotiva vai puxando, então, as carruagens para fora de Campanhã. Aos buzinões, atravessa Rio Tinto, Ermesinde, Valongo… Apressada, deixando a cidade para trás. Cedo, as empenas dão lugar aos montes; os jardins urbanos ao mato. Breve, o mato dá lugar ao vale.
Este comboio leva logo na primeira carruagem uma mão cheia de jornalistas. Uns vieram de Lisboa, outros do Porto, a ver como se vai para a Cambres, em Lamego. É no Porto Comercial que se realiza, nos dias 14 e 15 de setembro, a primeira edição do Wine & Music Valley, um festival que procura “juntar a gastronomia, o vinho e a paisagem à música”.
Quem o explica é Edgar Gouveia, um dos três promotores de uma ideia que surgiu em 2015 a olhar para os terrenos onde a APDL (Administração dos Portos do Douro, Leixões e Viana do Castelo, SA) deitava os sedimentos das dragagens, ali à beira do tal Porto Comercial de Cambres.
O espaço é comprido — e plano. Uma raridade na paisagem duriense, cheia de socalcos e vales apertados, de ribanceiras altas e penedos a mirar as ondinhas do rio. Vê-lo ali, sem grande uso, dava pena. Os cruzeiros que se arrastam rio fora fazem lá as suas paragens técnicas. E o 15 de agosto vê de lá sair o fogo-de-artifício que ilumina a marginal da Régua — mas mesmo assim, faltava qualquer coisa.
Inspirados por experiências no estrangeiro, os promotores, homens da região, cismaram na ideia de montar um festival em honra do vinho: e é isso que está a nascer no descampado de Cambres.
Para lá chegar, porém, há que atravessar o rio. Hoje, não vamos de barco. Um atraso ditou que tal fosse impossível. Mas a distância dá para fazer de carro — e mesmo a pé — sem prejuízo maior que atravessar uma ponte e sair numa rotunda.
Nos dois dias do festival, um barco cruzará o Douro com frequência, para permitir que quem chegue de comboio possa atravessar com rapidez.
Uma coisa diferente, uma coisa bem feita
Quem olha para aqui, não vê nada. Um deserto de erva cortada rente. Vai crescendo o que será um palco, nascem umas barraquinhas para os convidados VIP. Um lounge para os outros VIP. E umas quantas casas de banho portáteis.
Hoje, o Porto Comercial de Cambres não tem grande interesse. O calor pode ser culpado, é certo, mas os homens martelam na mesma as estacas. Na beira do rio, a tripulação dum cruzeiro vai tirando lixo do barco.
“Estes seis hectares só serviam para abastecimento dos barcos-hotéis. Nós vimos sempre neste espaço uma potencialidade enorme, com a Régua e o rio Douro como pano de fundo”, explica Manuel Osório à agência Lusa, que também está no passeio.
“Vimos neste espaço a potencialidade de fazer um evento com a grandiosidade que o Douro merece e que juntasse a música, a gastronomia e os vinhos, com um cenário idílico”. Osório é outro dos mentores do projeto — e assegura não estar à procura de “um festival nem melhor, nem pior, do que os outros, mas [de] um festival diferente”.
“No que respeita à gastronomia, queremos promover aquilo que é nosso, dando um toque de modernidade”, referiu o empresário, dando o exemplo do arroz de pato gratinado com queijo mozzarella confecionado num recipiente de barro preto de Bisalhães [Vila Real], da autoria do chef Tiago Moutinho.
“Conseguimos encontrar um parceiro, a Better World (responsável pelo Rock in Rio), que assimilou esta ideia e verificou que aqui teria de ser um cartaz muito ‘sui generis’. E foi isso que criaram, incluindo desde um ‘vintage’, o Bryan Ferry, a um Wet Bed Gang, para um público mais jovem”, afirmou Manuel Osório.
Osório acredita que “estas três vertentes — música, gastronomia e vinhos — aliadas a esta paisagem, fazem do Wine & Music Valley um festival único no país”.
O festival tem um orçamento de dois milhões de euros, mas o objetivo da organização não é o retorno imediato. “Sabemos que é um ano de implementação, mas foi nossa ideia não criar uma coisa pequena. Se fôssemos criar uma coisa pequena nunca chegaríamos a ser grandes, nunca chegaríamos a ter um festival com a dimensão que o Douro merece”, considerou o empresário.
Este é “um projeto a cinco anos”, estando a organização preparada “para crescer duas ou três vezes”. “O nosso objetivo é criar bases e fazer as coisas muito bem feitas”, realçou Osório.
Música, gastronomia — e vinho do Douro
Três palcos, uma roda gigante, comida, e vinho. Esta é a receita da primeira edição do festival (produzido pelos responsáveis do Rock in Rio). O rei é o sumo de Baco. Todavia, apenas aquele que é produzido nestes socalcos. Não há vinhos doutras regiões. Nem bebidas destiladas. Nem cerveja.
Edgar conta que houve produtores de outras regiões a mostrar interesse, no entanto, por agora, o festival só se quer concentrar no vinho duriense e em toda a sua variedade: brancos, tintos, rosés, espumantes — e Porto, claro. As propostas incluem experiências com cocktails e mesmo um Porto tónico, para revistar a bebida obrigatória de todos os encontros nas margens deste rio.
Se há vinho, tem de haver farnel. E haverá com fartura: sejam os chefs (Rui Paula, Miguel Castro e Silva, Vítor Matos, Pedro Pena Bastos, Tiago Bonito e Tiago Moutinho), sejam as carrinhas com comida (15).
No palco dos Chefs vai haver espetáculos protagonizados por cozinheiros de renome — acompanhados por música. No primeiro dia, Fernando Alvim ficará com o comando da banda sonora do Chef’s Stage. No segundo dia, o som fica a cargo do projeto Rua das Pretas, criado pelo franco-brasileiro Pierre Aderne.
Os pratos cozinhados podem depois ser provados pelos visitantes.
No recinto, tudo é pago: o copo, os vinhos, a comida — e a entrada, claro está. Os preços variam: um vinho pode ficar por três euros, um arroz de pato por sete. No interior do recinto, os pagamentos serão feitos através de uma pulseira recarregável.
Grátis serão algumas experiências, bem como a roda gigante, que permitirá um vislumbre diferente da região.
Quanto à música, o Douro Stage e o Wine Stage (palco Douro e palco Vinho, respetivamente) recebem artistas nacionais e internacionais como Brian Ferry, Seu Jorge, Mariza, António Zambujo, Xutos e Pontapés, Salvador Sobral, Carolina Deslandes, Wet Bed Gang, Dj Vibe & Rui Vargas, The Black Mamba, HMB, Fogo Fogo, Xinobi & Anna Prior, entre outros.
Mesmo à beira do Porto Comercial de Cambres, a Quinta da Pacheca, cuja origem remonta ao século XVIII, convida ao passeio e à degustação. Mas nem sequer é preciso andar os poucos metros até à propriedade, porque o cartaz dos vinhos também tem nomes de peso no festival — e a Pacheca é só um dos 80 nomes.
CARM, Ramos Pinto, Porto Cruz, Quinta do Portal, Casa dos Varais, Adega de Favaios, 100 Hectares, Quinta da Rede, Casa dos Fontes, Quinta das Lamelas, Quinta do Mourao, Quinta da Barroca, Quinta do Pessegueiro, Quinta da Serôdia, Quinta Seara D’Ordens e Quinta de Cottas são só alguns dos presentes na Wine Village, no centro de toda a ação — vigiada pelo omnipresente e vigilante homem da capa, o Don da Sandeman (que está na verdade em terras que não lhe pertencem).
Boleia para o resto
O recinto abre às 14 horas. Chega para ter as manhãs livres e partir à descoberta do mais que há em torno do festival. No centro da mais antiga região vinícola do mundo, há um mar de história escondido nos socalcos e nos vales que se põem à espreita.
Atravessando o rio, há a Régua. A cidade corre cheia de prédios altos e direitos. Mas no meio esconde algumas joias — que podem valer a paciência.
Mas se é no Douro Sul que estamos, seja para sul que vamos. No centro de Lamego, claro está, o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios é visita obrigatória. Os degraus são bastantes — mas nada que uma boa bôla e um doce da Teixeira não consigam vergar.
Se preferir o caminhar pelo campo, cruze, então, para a margem norte. Encha os bolsos de rebuçados da Régua e rume até Aregos (ou Tormes). Suba o caminho de Jacinto — o trilho que Eça de Queiroz fez para ver a casa que lhe legaram — e conheça a história do autor de ‘Cidade e as Serras’.
Tornando a descer, por apenas um euro atravessa na Barca D’Aregos para o concelho de Resende. Aqui, na estância termal das Caldas de Aregos, uma apelativa piscina convida ao mergulho — e os (poucos) restaurantes da zona prometem o almoço recheado.
Se de carro, suba, então, ao Penedo de São João: uma rocha equilibrada no topo duma pedrinha. Depois do fascínio com a aparente impossibilidade física, é olhar à volta.
Já que ali está, siga para o centro da pequena vila duriense e procure pelas cavacas. Fofas, espécie de pão de ló embebido em calda de açúcar, são vendidas em caixas de quilo e meio quilo — e merecem a prova.
Pensar o Douro, chegar ao Douro, investir no Douro
Em julho, na apresentação deste festival, Luís Pedro Martins, presidente da Turismo do Porto e Norte de Portugal (TPNP), dizia ao SAPO24 que era importante "valorizarmos e melhoramos alguns meios de transporte” para chegar à região demarcada do Douro.
O comboio é uma alternativa, mas precisa de investimento: "Claro que o comboio e a linha do Douro terão de merecer uma aposta muito forte por parte das entidades governamentais, porque é um meio de transporte por excelência para poder levar turistas das portas de entrada da região para esses destinos, que, não sendo muito longe da cidade do Porto, tornam-se longe pela dificuldade de lá chegar".
Ciente dos desafios, Luís Pedro Martins vê neste Wine & Music Valley mais um passo para rasgar os muros que faltam. Até porque "o Douro e Trás-os-Montes e o Minho têm tudo para dar certo".
Comentários