Assaltado por uma curiosidade, meti na cabeça que tinha de ir à procura dos “Capitães de Abril”. No entanto, o máximo que encontrei foi um furriel. Que, ainda por cima, o papel que lhe esteve reservado na história acabou por não ser necessário. Veremos mais à frente.

Fui ao desfile. Um carrossel preenchido maioritariamente por gente que nasceu num Portugal europeu, gente muito jovem, uns de bicicleta, com cães à trela e, até, uma arara colada no ombro de quem dela trata.

Senti falta de cravos. Esperava ver mais. Talvez o colorido das roupas dos marchantes e os cartazes em punho roubassem espaço. Ou desviassem a atenção. Não fui de cravo na lapela, reconheço.

A componente bélica e militar da Revolução dos Cravos resumiu-se a dois Chaimites. Não subi a nenhum. Utilizei a mota para chegar, primeiro à Praça Duque de Saldanha, para assistir à partida da Iniciativa Liberal. O mesmo meio de transporte levou-me até à rua de outro Duque (de Palmela), para fazer do Marquês o epicentro da operação.

O Saldanha estava vestido de azul com as camisolas da Iniciativa Liberal. As bandeiras distribuídas pouco antes do desfile emolduraram o pelotão constituído maioritariamente por jovens aglomerados entre os limites de uma agência do Novo Banco e outra do Santander. It’s all about Money ou não estivesse na ala liberal.

Alguns estreavam-se. Margarida Caldeira da Silva, 75 anos e Gabriel Vaz, 18 anos, estudante de cinema que tem na 7ª arte um hábito da noite de 24. “Vejo sempre os Capitães de Abril na televisão com a minha família”, contou-me.

João Cotrim Figueiredo, deputado do IL, um habitué nos desfiles, depois da polémica da edição 2021 do 25A, deixou escapar um desejo para o ano: “Pensar se é possível recuperar a democracia no desfile”, atirou.

No meio do mar azul, uma bandeira chamou-me à atenção. As cores da Venezuela. O interlocutor não se apresentou nem se deixou fotografar. Informou-me estar ali para “celebrar o processo democrático”, porque sabe o que “é perder a democracia”, disse. Engenheiro eletrónico, com mestrado, está há 16 meses em Portugal à procura de emprego, de vigilante a ajudante de cozinha, uma vaga negada, até à data, em qualquer área, por causa do IEFP. “Escreveram que não sei ler, nem escrever, porque não tenho comigo os papéis da universidade venezuelana”, lamenta este filho de portugueses com dupla nacionalidade.

Às 15h46, início do desfile. Não esperava ouvir gritos de intervenção, confesso. Mas esperava algum toque a rebate que agitasse. O aviso do megafone; “máximo de oito pessoas por fila”, foi o que se arranjou.

“25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”

Percorrida uma centena de metros na “claque” da Iniciativa Liberal, na Fontes Pereira de Melo, voltei para o Saldanha para colocar o capacete e acelerar até à rotunda do Marquês, local de início do desfile a quem foi atribuído o direito inicial a desfilar.

Aí, fiquei com um olho virado para cima para ver os Liberais vindos da Fonte Pereira de Melo, e outro, apontado para baixo, espreitando uma maioria de esquerda, a desaguar, até perder de vista, nos Restauradores.

Já com o Marquês de Pombal e o Leão pelas costas, a sensação de entrada no Chapitô é quase imediata. São milhares Avenida da Liberdade abaixo num corso onde era suposto, inicialmente, estarem só representantes das mais de 40 associações, grupos, estruturas sindicais, partidos e juventudes partidárias. Mas eram muito mais. Milhares e não o tal milhar anunciado.

As idas ao Marquês fazem-me sempre lembrar futebol. Vi três camisolas do Sporting Clube de Portugal e só uma do Sport Lisboa e Benfica, este último um ciclista vestido a rigor.

Marcos Cardão, “entusiasta de esquerda” e adepto leonino, tem 20 anos de desfile a gritar liberdade, já do Sporting  campeão, contas feitas, teremos de tirar o zero. Mas a esperança de acrescentar um número é grande depois da vitória em Braga.

O distanciamento social nem sempre foi seguido à risca. Até porque as danças e batuques não se fazem a um braço de distância. Isso era no tempo da outra senhora.

Máscaras, sim. Tapavam a boca de todos, mas não os sons que sabiam de cor as músicas e gritos de intervenção, intercalados com uma lista de discos pedidos.

“25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”. É o slogan da ordem. Intervala com a música de Zeca Afonso. “Venham mais cinco”. De José Mário Branco, "eu vi este povo a lutar, para a sua exploração acabar”, cantava Carolina Serrão, artista independente e proprietária da companhia “Além Mundus”, associação cultural.

A cultura marchou em peso. Isabel Zuaa, atriz, e Martim Pedroso, encenador. Abraçam-se e abraçam os mesmos sonhos. “Igualdade, respeito e equidade”, são palavras que lhes saem repetidamente da boca.

Deparo-me com gritos de alerta em forma de cartazes contra o racismo, xenofobia, lutas pela igualdade de género, direitos das mulheres, dos homossexuais, emigração, casa para todos, SNS e mesmo um apelo à alimentação vegan. Algumas das mensagens quase que tocam na cepa das árvores.

São as novas causas de Abril. Francisco Louçã deslizando entre a Juventude do Bloco refere isso mesmo. “É compreensível estar aqui em peso gente da cultura. E jovens, porque vivemos um período de confinamento. O 'fascismo nunca mais' tem um significado novo, um alerta no século XXI contra os racismos e a extrema-direita”, disparou.

Fico atento à imaginação para cantarolar. Os sons saem da jukebox andante. “Oh não, oh não ... opressão”, escuto. “Primeira, segunda e terceira geração, nós somos todas filhas de emigrantes”. “Bolsonaro genocida”, gritam cidadãos brasileiros, fazendo da letra um samba. “Há aqui, aqui capitalista” e “a nossa luta é todo o dia e contra o nazismo e a xenofobia”.

Onde estava na madrugada do 25 de Abril? A dormir

Mais formal e institucional, o Volt estreou-se como partido nas celebrações de Abril. Miguel Macedo é um deles. “Chegou o dia para lembrar que a liberdade é uma opção que devemos exercer todos os dias”, mostra a mensagem no Twitter, ele que já tinha umas quantas descidas na qualidade de alguém da sociedade civil.

Alfredo Fernando, 93 anos, está vestido a rigor. De fato bege, um cravo na lapela e uma bandeira que toca no céu prende as atenções. Não resisti e perguntei: "Onde estava no 25 de Abril?". “Na madrugada, estava a dormir como a maioria das pessoas. Os militares fizeram a revolução e o povo aderiu”, recuou.

Estava dado o mote. Tinha de encontrar o tal Capitão de Abril. Passaram mais de duas horas. E mais parecia estar a jogar ao “onde está o Wally?.

Ora, o Wally apareceu com a ajuda da filha. Um cartaz “o meu pai não fez o 25 de Abril para eu ainda ter de lutar hoje contra o fascismo” denunciou-o. Saltei de alegria. Tinha ali o “captain, my captain”. “Tinha 21 anos. Participei no dia da Liberdade. Era segundo furriel”, recordou Fernando Santos. “Cortei a estrada Porto-Lisboa, mas não foi necessário”.

Bom, não se pode ter tudo, pensei. Tinha encontrado o capitão à minha medida. Alguém que participou no Dia. “Mais que nunca é necessário reavivar a memória”, avançou a filha, 28 anos, em estreia nas celebrações, tal como eu.

O letreiro da peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas", em cena no Teatro Nacional Dona Maria II, fez-me parar. Não avancei mais. Foquei-me na Liberdade e voltei aos Restauradores.

Dois chaimites, pertença da Associação 25 de Abril, empurraram-me até ao Marquês de Pombal. Aproveitei a boleia a pé.

Em passos largos e já com o asfalto despido deparo-me com o retirar das tropas da IL debaixo da rotunda onde se celebra títulos de futebol. Os carros militares passam ao som do slogan “25 de Abril sempre, Fascismo nunca mais”, acrescentado por “Portugal, Liberdade”.

As luzes e sons dos batedores da PSP, de mota, anunciam que a circulação será retomada na zona. O megafone avisa. “saiam da estrada, o Marquês ainda não está reservado”.

Em maio espero voltar aquela zona da cidade de Lisboa e andar cima e baixo pela Avenida da Liberdade. Um percurso feito no passado em duas ocasiões. Por causa do futebol.